(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



sexta-feira, 29 de maio de 2009

DA URBE E DO BURGO, 5

A Quinta Amarela

"Uma frondosa magnólia, ao lado de algumas salas de aula, quase se metia pelas janelas dentro. Era uma silenciosa ouvinte das lições de lógica, de filosofia grega, de história das religiões, de psicologia experimental que o hierático Newton de Macedo, ou o erudito Teixeira Rego, ou o eloquente Leonardo Coimbra (três homens mortos na pujança do talento, ao dobrar dos cinquenta) nos ofereciam, alternadamente, a certas horas. Tal era a estranha e tão discutida Quinta Amarela, sossegada moradia suburbana, rodeada de muros e arvoredo, ocupada, até 1910, por uma dúzia de freiras de não sei que Ordem e que uma década depois, mercê de um acto de certa audácia de um político-filósofo, se converteria em provisória sede da tão promissora Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Ali se conversava e estudava num ambiente por assim dizer de família, isento de doutorismo. Os professores eram todos novos e improvisados. Alguns, como o pesado e inolvidável autor da Nova Teoria do Sacrifício – autêntico sósia espiritual e somático de Sampaio Bruno –, eram genuinamente autodidactas que o «catalizador» da Faculdade havia ido buscar aos seus obscuros cacifos de trabalho, sem quaisquer respeitos humanos, persuadido como estava, e com profundo acerto, que um bom professor «nem sempre» precisa de passar pelas forcas caudinas da Sala dos Actos Privados ou da Sala dos Capelos.

fotografia colhida em Do Tempo e da Luz

Outros eram humildes professores do liceu de província. Tal era o caso de Hernâni Cidade, então simples professor do ensino secundário em Leiria.
Outros ainda – como Damião Peres, Ângelo Ribeiro, Newton de Macedo –, levara-os Leonardo consigo da rumorosa sala dos professores do liceu de Gil Vicente, apesar dos protestos dos guardiões das chaves da Sala dos Doutoramentos e até dos ressentidos assobios de muitos espíritos liberais que barafustavam contra a «falta de concurso» na improvisada escola de Humanidades do Porto.
À distância de meio século se vê hoje claramente quem tinha razão.
Aqueles que sustentam que o nosso país é tão pobre de ascetas de especialização humanística ou filosófica que dificilmente se pode constituir uma escola superior («uma única», sublinham) de Humanidades e Filosofia, ignoram, ou fingem ignorar, que o exemplo mais interessante, entre nós, de uma experiência de ensino (para não dizer antes: de convívio) especulativo superior, é justamente essa estranha aposta de improvisação docente que Leonardo Coimbra, com singular desassombro, jogou, em 1919, numa fugitiva passagem pelas cadeiras do Governo ao catalisar essa atmosfera de estudo, tão discreta e levitante, no velho e pesado burgo do Porto.
Aparentemente, a escola era frustre. A sua própria instalação suburbana, numa moradia de arquitectura simplória, parecia dar-lhe um certo ar de envergonhada. As carteiras eram mesquinhas, as salas exíguas, as cátedras quase ridículas. Por isso nas outras Faculdades se dizia com ar displicente: – «É a Faculdade das Tretas.» «É a capelinha de Leonardo.»
Claro está, na discutida Escola, nem tudo era Espírito puro, nem puro amor do saber, nem simpatia sem sombras. Havia também o seu quinhão de boémia e de diabolismo, para não dizer de banalidade e de rudeza; mas, o lado pior nunca serve para definir. Cada coisa (como dizia o velho Estagirita) conhece-se profundamente pela sua «enteléquia» e não pelos seus defeitos.
Na «aposta demiúrgica» de que resultou a «primeira» Faculdade de Letras do Porto, o que interessa ter presente é a sua «enteléquia» e não as suas mazelas.

*

Na verdade, o que houve de mais relevante naquela estranha experiência do ensino foi o indefinido encanto da pedagogia discreta de certos professores, a par do indefinido prazer de os ouvir na inesquecível atmosfera da boa vizinhança de um maciço de arvoredo habituado ao silêncio e à intimidade.

Se não fora a passagem, de vez em quando, dos carros eléctricos na rua contígua, em regra sossegada, o apito estrídulo, em mi menor, dos comboiozinhos da Póvoa que chegavam ou partiam da Boavista, ali ao pé, teríamos ali vivido verídicas «horas intemporais».

Dir-se-ia que a experiência de Platão (ou a do filósofo do Jardim e da Amizade) se tornara a repetir por virtude de um certo verbo de bom timbre e de uma dada respiração vegetal de sabor mediterrânico.

A grande distância, no tempo e no espaço, das libérrimas escolas gregas, voltava-se a ensinar e a aprender filosofia, livremente, na propícia proximidade de algumas árvores.

A majestosa magnólia, de carnuda folhagem e belas flores brancas de marfim, era a rainha. Ao seu lado havia velhas japoneiras que, pela Páscoa, se cobriam de camélias rubras e brancas; tufos de mirto e loureiro; maciços de alecrim; caneleiras de flores rubicundas e essência adocicada; festões e glicínias; dois ou três velhos castanheiros ao fundo, no extremo da antiga cerca e, pelo meio, conduzindo a diversos recantos, pacatas veredas flanqueadas de buxo que, a cada passo, eram estremunhadas por vivas discussões metafísicas (pois, na juventude, toda a discussão tem sabor metafísico) e, uma vez ou outra, por discretos idílios que, com o tempo, se converteriam em meia dúzia de casamentos felizes e dois ou três dramas camilianos (como foi a morte enigmática e nocturna do mais brilhante aluno do primeiro curso da Faculdade (1) ou a morte wertheriana de outro nosso condiscípulo, em pleno dia e em plena via pública).

*
Nesse tempo, para nós, o céu era profundo e o destino improvável. Ao longe, rente à copa do arvoredo, avistava-se uma fímbria azulada do mar. Alguns dos mestres, o Newton, sobretudo, não descolavam os olhos desse fundo. Durante as lições, a sua voz anasalada e monocórdica, correndo como um fio de azeite, fazia perpassar no nosso espírito lembranças indefinidas dos «físicos da Jónia», do «orfismo», dos «mistérios de Elêusis», mantendo-se inalterável, de perfil, com o olhar preso na longínqua orla atlântica da Boa Nova. Ao fim de alguns minutos, a aula decorria em transe, tal era a força estranha daquele impressivo afastamento do prelector, sempre de perfil, com os olhos fitos nos fragmentos de céu e mar que a ramagem da magnólia recortava.
Em presença de Leonardo, a experiência era outra. Suas aulas eram inteiramente diferentes. Eram lições de intensidade, portadoras de extraordinária força catalisante. O mestre não queria saber de quem o percebia ou seguia. Tão-pouco lhe interessava o «programa», o «regulamento» ou a mesquinhez da sala. Sua palavra erguia-se como se estivesse no cimo de uma montanha, face a face com a imensidade do céu e a do tempo. Ao lado, a magnólia ouvia em silêncio. Dentro de cada um, a ansiedade de compreensão e levitação ardiam também. As escaladas por vezes eram violentas. Tanto melhor. Embora não compreendendo tudo, sentíamos que o verdadeiro modo de ensinar cada um a encontrar o seu ritmo – era aquele mesmo."

Sant’Anna Dionísio

(texto integral de “A Quinta Amarela”, capítulo XXXIX de Da Urbe e do Burgo, Lello, 1971, pp. 259 e ss.)
____________
(1) Referimo-nos a Alberto Brás, cujo suicídio, ocorrido em circunstâncias jamais esclarecidas, ao fundo de um quintal da Rua do Almada, a horas mortas, consistiu profundo choque para toda a Faculdade, ainda incipiente, e na qual ele se revelara como personalidade de indefinidas virtualidades. Leonardo Coimbra, que o considerava e tratava como tal, tão impressionado se mostrou com a sua dramática morte que, na companhia de alguns íntimos, muito poucos, tentou, em dramático esforço metapsíquico, fazê-lo falar, estando já lívido e frio.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

A IDEIA DE PÁTRIA NO «57», 5

Pedro Martins




Pátria, razão e movimento
Relembremos a definição proposta pelo Manifesto. Nele se diz que uma pátria é “uma razão viva a mover-se para um fim, e não um aglomerado de interesses egoístas.”
Ao consignar, em Agosto de 1957, que a Pátria é uma razão, no mesmo lance em que nela divisa um espírito, uma alma e um corpo, o autor do Manifesto (presumivelmente António Quadros) sugere-nos uma aproximação terminológica à obra-prima de Álvaro Ribeiro, A Razão Animada, livro que viera a lume alguns meses antes. Deste modo, o 57 coloca a ideia de Pátria em franca analogia com o conceito de homem (já se viu que assim é), e, nessa medida, apresenta-a como um corpo com alma espiritual, para aqui se empregar a justa expressão de Pinharanda Gomes.
Enquanto razão, a Pátria é uma entidade espiritual. Razão é também razão de ser, ratio essendi – aquilo que dá o ser a um país; que o define, individualiza e identifica; e que, desse modo, confere sentido à acção do seu povo, tão certo ser a Pátria, na definição proposta, uma razão viva, uma razão que se move.
A Pátria move-se, no tempo, pela nação, que, sendo alma, é princípio de movimento. Manifesta-se a Pátria através daqueles que, nascendo (e morrendo), vão sendo a nação. Por isso, para o Manifesto, a Pátria é também “a longa fila de homens que vem do fundo dos séculos e vai para o fim dos séculos, onde já não haverá então pátrias porque os homens terão subido mais um degrau.” Eis a Pátria: os antepassados, os egrégios avós, os pais.
Sem pretender ser exaustivo, o Manifesto identifica quatro formas de manifestação da Pátria, que constituem uma gradação ascendente de manifesta inspiração alvarina. São elas a língua, a tradição, a escala de valores e a filosofia.
No seu livro sobre A Filosofia Política de Álvaro Ribeiro, Elísio Gala enuncia uma outra classificação dos “modos de expressão, existência e perduração” da Pátria. São eles:
– a língua – onde se manifestam os modos de conceber e pensar;
– a arte – onde se manifestam os modos de imaginar e sentir;
– e a história – onde se manifestam os modos de agir e viver.
E é por eles, diz o autor, que se acerta a relação da cultura com o culto. É que a ideia de Pátria está relacionada com a ideia de Deus. A Pátria é uma entidade intermediária e mediadora. Como tudo mais, depende de Deus; mas está acima dos homens, que, enquanto nação, lhe ficam vinculados pelas formas espirituais assinaladas. Dessa adstrição retiram, de resto, o sentido comum da sua acção. Assim se compreende que, n’O Brasil Mental, Sampaio Bruno afirme ser a Pátria “um princípio de solidariedade colectiva”.
Razão viva, a Pátria move-se, na história, para um fim: a redenção da humanidade. Não foi outro o corolário extraído da síntese com que o 57 rematou o enunciado do teorema relativo à Filosofia da História. Mais do que um telos, o movimento redentor persegue um escathon, um fim sagrado: redimir o homem, ente decaído, é realizá-lo na sua humanidade, cumpri-lo na sua enteléquia, religá-lo ao seu princípio, pela plena libertação espiritual, ao cabo da evolução cíclica. Assim se compreende que, n’O Brasil Mental, Sampaio Bruno afirme ser a Pátria “uma religião”.
Mediadora do humano e do divino, a Pátria é via. Por ela terá de passar quem quiser chegar a Deus. Não é outra a doutrina de um Pascoaes, n’A Arte de Ser Português. Mas já n’O Encoberto nos ensinara Sampaio Bruno que, na perpétua senda da luz, todas as pátrias são chamadas a dar o seu contributo redentor. Concertadas em harmónica colaboração, cada qual preserva, porém, a sua específica singularidade espiritual. Assim se compreende o propósito brunino da Unidade na Liberdade.
No derradeiro capítulo d’O Brasil Mental, o mesmo Sampaio Bruno, evocando a noite do malogrado golpe de 31 de Janeiro de 1891, diz-nos, em dado momento, que “o anjo-da-guarda da pátria, soluçando, escondeu o rosto, na dor, desesperada e alucinante, da derrota”. Quem puder pensar que se trata aqui de mera imagem literária, melhor fará em ponderar as sequentes laudas angelógicas d’A Ideia de Deus.
A cada povo é proposto um ideal diferente de realização da humanidade, escreveu Álvaro Ribeiro. Podendo ser inscrita no ideário brunino, a afirmação do filósofo portuense lembra, de modo irresistível, os conhecidos versos de Fernando Pessoa: As nações todas são mistérios / Cada uma é todo o mundo a sós, que encabeçam o poema “D. Tareja”, da Mensagem. Ciente de que anjo, pela etimologia, significa mensageiro, o leitor atento poderá, por certo, deduzir o que aqui ficou por dizer.

DA URBE E DO BURGO, 4

O amanhecer da Renascença Portuguesa e o seu crepúsculo

“(…)
O grupo promotor da chamada Renascença Portuguesa constitui um exemplo típico de uma geração de certo modo heterogénea mas, em dado momento, fortemente convergente na atitude de anseio de uma palavra que, taumaturgicamente, quebrasse a modorra do viver pátrio, erguendo de novo a alma da gente lusíada àquela atmosfera de gratuidade e de esperança quase messiânica que já noutras eras teria sido, por assim dizer, seu avatar.

Nesse indefinido ponto místico se fixava, nos melhores momentos de sintonização, a confraterna ansiedade desse agrupamento de homens novos tão diversos, mas fortemente ligados por um fremente propósito de acção catalítica.

Se se quiser entender, na sua mais íntima força espiritual tal movimento, ter-se-á de sentir vivamente que nessa plêiade de homens novos – poetas, tribunos, professores, artistas, militares, comerciantes – de tão diferentes índoles e idiossincrasias, latejava uma autêntica aspiração de apostolado.

E dizemos assim –, «de tão diferentes índoles e idiossincrasias» –, porque, na verdade, nesse agrupamento se cruzavam e associavam temperamentos de vigorosa inspiração idealista e eloquente (como Leonardo Coimbra e Jaime Cortesão) com alguns vultos de pacata compleição positiva ou fria formação científica (Teixeira Rego, Marques Teixeira, Augusto Martins), fazendo-se notar, de permeio, alguns outros de fortes impulsos combativos (Raul Proença e Manuel Laranjeira), poetas de singela inspiração lírica (Augusto Casimiro, Afonso Duarte, Mário Beirão), pedagogistas da puritana disciplina (António Sérgio), ao lado de discretos professores, ricos de bonomia, tranquilos e lhanos (Álvaro Sampaio, Coelho de Magalhães, Mário de Vasconcelos e Sá, Luís Cardim); individualidades nocturnas e tímidas (como Raul Brandão e António Carneiro), esquivando-se, em silêncio, entre os gestos e as palavras cortantes de um personagem de forte pendor pragmático (uma espécie de brasseur d’affairs), – o temido e imperativo Álvaro Pinto, o homem dos caixotins e das máquinas de imprimir, armadas, por artes do diabo, num escuso barracão, perante o pasmo dos poetas e filósofos que andavam na Lua e não percebiam como dali podiam sair – e saíam – os seus poemas em tão belas edições, de papel de linho…

*

Propositadamente deixámos de apontar entre esses homens novos e tão diferentes uns dos outros, mas solidários na solicitude com que procuravam atear e manter essa singularíssima «fogueira espiritual» que há setenta anos, em dado momento, surgiu, nãos e sabe como, no meio sonolento e húmido do Porto –, propositadamente deixámos de citar, íamos a dizer, a figura quase mirrada, somaticamente o vulto de menor figura, de voz cavernosa e perfil magríssimo, de olhos encovados e trejeitos semidemoníacos, frenético e febril, e que todavia, na sua aparente pequenez, seria um dos que mais contribuíam para erguer essa «fogueira» a alturas imprevisíveis.

O pintor António Carneiro, autor do ex-libris da Renascença Portuguesa, acima reproduzido, e o poeta Teixeira de Pascoaes

Queremos, enfim, referir-nos ao poeta Teixeira de Pascoaes.
Como S. Paulo, esse outro punhado de ossos e de nervos, enfermiço e raquítico, alucinado e alucinante, o poeta das Sombras e da Vida Etérea não surge logo no primeiro momento do apostolado da Renascença. Tal momento parece ter pertencido a Jaime Cortesão, a Augusto Casimiro e a Leonardo Coimbra, três vultos imponentes e distintos, pela ênfase, pelo quixotismo, pelo fulgor eloquente. Tanto assim, que, segundo alguns «genealogistas da Literatura», a Renascença Portuguesa teria nascido de um passeio dos três pelos arredores de Coimbra. Terá sido assim? Não o cremos. Tal certidão de baptismo afigura-se-nos mais apócrifa que a certidão das Actas de Almacave.
A aragem do Choupal de modo algum poderia dar uma «ideia-força» dessa natureza.
De raiz, a ideia geradora do que poderemos talvez designar o «apostolado de A Águia», é uma flor dialecticamente nascida da atmosfera húmida e do chão rochoso do Porto.
Um terreno, quanto mais duro e mais ingrato, mais propício é à aparição, aparentemente teratológica, de uma realidade prodigiosa.
Quem diria que das tabernas e ruelas lôbregas do Tamisa nasceria o talento singularíssimo da Marlowe, ou o génio imperecível do Autor do Hamlet? E quem diria que a mais estranha e a mais majestosa rainha das flores – a raríssima Vitória Régia – só aparece, de longe a longe, nos mais inóspitos e abafados recantos da Amazónia?
A obra enorme e prodigiosa de Camilo, por exemplo, – verdadeira réplica de uma Vitória Régia –, que é ela senão uma compensação e uma consequência, por assim dizer dialéctica, do meio, tão impregnado de vulgaridade, que o Romancista, com o seu terrível génio satírico, procurou redimir?
Não tenhamos a menor dúvida: a «ideia-força» de que seria necessária uma verdadeira aposta de espiritualização para que a alma do povo português de novo reencontrasse o seu rumo esquecido só poderia surgir num meio como este: o meio portuense, tão rico de dialécticos contrários.
Saber, com precisão, como foi, onde foi, como nasceu tal ideia-mística, não é fácil, nem tão-pouco importa perder tempo a indagar. As indagações fácticas, nestes assuntos, não servem para nada. O que importa é apreender ou vislumbrar o inefável sentido que moveria tantas pessoas diferentes a participar, embora por pouco tempo, de uma dada alucinação.”
Sant’Anna Dionísio
(excerto de “O amanhecer da Renascença Portuguesa e o seu crepúsculo”, capítulo XXXVI de Da Urbe e do Burgo, Lello, 1971, pp. 241 e ss.)

quarta-feira, 27 de maio de 2009

A IDEIA DE PÁTRIA NO «57», 4

Pedro Martins


O espelho eloquente
Ubi libertas, ibi patria; onde a liberdade, aí a pátria”. A frase, inscrita por Sampaio Bruno numa das últimas páginas d’O Brasil Mental, presta-se a constituir penhor inequívoco do liberalismo que perpassa a sã doutrinação nacionalista e republicana da Escola Portuense. E, no entanto, quase meio século de odiosa ditadura terá contribuído sobremaneira para que muitos se recusem hoje a querer ouvir falar da ideia de Pátria e do conceito de nação.
Claro está que nem tudo deve ser atribuído a Salazar e ao seu estreito nacionalismo positivista. Avisadamente, a tese do teorema sobre a Pátria refere-se aos “chamados internacionalistas, democráticos e parlamentaristas”, cuja base eleitoral reside na noção de colectividade. O exegeta do teorema não está impedido de tomar duplamente tal substantivo basilar, considerando-o quer na sua acepção abstracta, quer na concreta.
Colectividade exprime a qualidade do colectivo e, nessa medida, opõe-se à individualidade, que é o todo do indivíduo, o conjunto das suas qualidades individuais. Colectividade, para o 57, é noção susceptível de designar o socialismo, tomado este com tal alcance que lhe permita abarcar o comunismo, a social-democracia e a democracia cristã. Não por acaso, Álvaro Ribeiro considerava a existência de um socialismo cristão a par do socialismo ateu.
A prevalência da noção de colectividade é a situação que hoje se verifica, visto que somos mandados por internacionalistas, democráticos e parlamentaristas. A despeito dos matizes, move-os a mesma hostilidade ao nacionalismo cultural e místico que culmina na ideia de Pátria.
Semelhante hostilidade é terrivelmente desagregadora. Ela tende a separar a nação da Pátria: combatendo a memória, desvirtuando o ensino, pervertendo a educação – suprimindo, em suma, os vínculos espirituais. E a degradar o território enquanto referência conformadora da nação (os que nascem num determinado território): enfraquecendo-lhe os contornos, pela diluição das suas fronteiras no perímetro da União Europeia; fragmentando-o pela criação de regiões político-administrativas, aliás pequenos estados cujas veleidades autonómicas passam até pelo estabelecimento de vínculos transfronteiriços com entidades congéneres; e desfigurando-lhe a paisagem pelo cosmopolitismo dos materiais e da traça arquitectónica. No transe de um tal esquartejamento, procede-se com frio rigor laboratorial à implosão do Estado-nação.
Num quadro de explosão migratória, e sob contínua pressão crematística, o futuro há-de mostrar até que ponto a aquisição da nacionalidade se irá reger razoavelmente pelos princípios clássicos do jus sanguinis e do jus soli, sendo certo que iniciativas recentes – a pretexto daquelas boas intenções que enchem o inferno – apontam, aqui e ali, em sentido diverso...
A quanto foi sendo dito oferece a realidade da indústria desportiva um espelho sumamente eloquente. Será bom não esquecer que os clubes de futebol, cujas equipas profissionalizadas podem hoje alinhar só com jogadores estrangeiros e – ou – naturalizados (as selecções, ditas nacionais, seguem timidamente pelo mesmo caminho), eram até há pouco apelidados de colectividades, aqui se tomando o substantivo na sua acepção concreta.

Segundo o 57, como se viu, será precisamente na noção de colectividade que os políticos internacionalistas, democráticos e parlamentaristas, como os que, presentemente, mandam em nós, se hão-de apoiar eleitoralmente. Possa a coincidência suscitar a meditação…

Entretanto, muitos daqueles clubes tornaram-se sociedades anónimas, que, como é sabido, constituem aglomerados de interesses egoístas, realidade que o Manifesto coloca nos antípodas da ideia de Pátria…

Inscrevendo-se na tendência, hoje progressiva e dominante, para a supressão das diferenças, a contínua desconsideração da realidade nacional equivale a uma perda de alma (visto ser a nação a alma que medeia o corpo da mátria e o espírito da Pátria). Consequentemente, tal desprezo uniformizador, gerado pelo ódio às formas, há-de implicar uma supressão do princípio do movimento, visto ser a anima aquilo que faz mover. E assim se demonstra como, no nosso teorema, o corolário da tese resulta rigoroso: sem a presença de uma alma, já não se pode actuar (o acto é movimento). Apenas agitar. E o que é que se agita? Poeira. Os ossos de um cadáver. O caso é de demência.
(continua)

DA URBE E DO BURGO, 3

Um Homem do Porto

"O vulto de José Sampaio Bruno ia em breve desaparecer quando começou a ser publicado, capítulo por capítulo, no órgão da cultura da Renascença Portuguesa, a decantada A Águia, um singularíssimo estudo que se apresentou sob este asquipático título: Nova Teoria do Sacrifício. Seu autor, Teixeira Rego, andava então pelos seus trinta anos e, apesar da sua vasta erudição, não possuía qualquer título académico ou curriculum universitário. Era um genuíno autodidacta que vivia, meio encolhido, num subúrbio do Porto, para as bandas de Leixões, de todo entregue à família numerosa (que sustentava com umas terras herdadas e úberes das margens do pequeno rio Leça e com o provento de uma ou outra prelecção particular), educando e cuidando da numerosa prole que lhe enchia a casa e vivendo principalmente para a discreta ruminação de algumas centenas de livros exóticos, uns modernos, outros antigos, que lhe atravancavam a sala de trabalho.
Era uma espécie de novo Bruno, pelo volume somático, pelo desleixo da vestimenta e, acima de tudo, pelo insaciável gosto da leitura e do estudo.
Sem qualquer ambição ou sombra de vaidade, acumulava uma estranha cultura esotérica, que ia desde a filosofia à matemática, das línguas mortas à filologia.
Vivia das referidas terras e do ensino liceal. Dava «explicações» de Matemática a rapazes do último ano do liceu, soletrava o Grego e o Sânscrito, ensinava o Alemão, discutia com Carolina Michaëlis pequenos enigmas de etimologia (como o da origem da palavra gonzo), conversava ombro a ombro com o seu vizinho Leonardo Coimbra acerca de alguns problemas de sociologia e religião; ia uma vez ou outra ao Porto, à tertúlia do Lello ou da padaria filosófica do Bonjardim, para ouvir a vozinha fina do volumoso autor da Ideia de Deus –, e nisto vivia, ocupado e sossegado, no seu pesado alheamento de homem reflexivo e bonacheirão.
Politicamente, era um republicano de quatro costados; como tal, incapaz de simpatizar com a menor violência ou acto de intolerância. Nisso se distinguia do seu mestre Bruno, que, como se sabe, a si mesmo, um dia, mais ou menos nestes termos, se definira:
– Nunca almejei ser esteta ou filósofo. O que sempre fui e sou é um sectário, um jacobino.
Como diz o povo, o que está na massa do sangue só com a tumba adormece e acaba. Bruno jamais pudera libertar-se da fracassada jornada de 31 de Janeiro. Até os derradeiros dias sempre o perseguiu o desgosto de que a República só vinte anos depois aparecesse – e não no Porto…
Teixeira Rego, homem de outra cepa, tolerante e benévolo, sorria dos sectarismos e só sonhava uma humanidade em que todos os pecados do homem, incluindo o pecado original, se resolvessem cientificamente, acreditando poder porventura, um dia, obter-se um conjunto de verdades e de condições de vida tão simples, que seriam como que o equivalente ao regresso ao Paraíso.
A sua «teoria do sacrifício», nas suas mais recônditas intenções, era precisamente a expressão dessa ideia-crença.
Enquanto a dois passos da sua casa, o autor do Criacionismo, no seu veemente idealismo cristão, procurava demonstrar que o mal é uma necessidade correlativa do indefinido trabalho de aproximação do que, na escatologia do Cristianismo, se designa por «redenção», e um pouco mais adiante, num casinhoto desse mesmo prolongamento suburbano do Porto, batido nas invernias pelo estrondo lúgubre das vagas de Leixões, outro espírito meditativo, mas soturno, o ascético Basílio Teles, tentava mostrar, pelo aprofundamento do mito de Job que «o mal é um irracional» –, Teixeira Rego vivia absorvido pela sua ideia de que o mal não teria nascido com o primeiro homem ou agregado humano. Tal erro (ou crime), cuja lembrança, sob mil formas mitológicas, se poderia vislumbrar nas mais diversas e afastadas tradições religiosas, teria ocorrido provavelmente em uma fase já relativamente maturada do homem originário. Por um acidente, decerto meramente fortuito, o homem tranquilo e ingenuamente sábio, habituado a uma alimentação exclusivamente radicular e frugívera, teria sido atentado, por um fugitivo capricho ou acesso de demência, a experimentar outro tipo de alimentação: a carnívora. As consequências e os mimetismos suceder-se-iam em cadeia. Aqui e além seria repetido e imitado o acto insólito. Desse modo teria seu fim a Idade de Oiro. Em breve se verificaria no ser humano uma profunda alteração tanto espiritual como orgânica. O homem, até aqui pacífico, faz-se agressivo. O uso moderado da carne, como sustento, repercute-se na alma e no corpo. A procura de outras espécies, algumas possantes e ágeis, requer da criatura humana, até aí inocente, certas qualidades de audácia e astúcia, de crueza e perversidade. Ao fim de algum tempo, o homem parece outro. O seu corpo adquire singulares e imprevistas modificações. A criatura humana, até então, revestida por uma espessa cobertura pilosa, adquire estranha brancura. Faz-se nua. A caça astuciosa e temerária, aos bichos, torna-se-lhe duplamente necessária: pela carne e pela pele que lhe servirá de agasalho e encobrimento da nudez. Uma das repercussões mais dramáticas do novo regime alimentar da espécie humana seriam as dores cruciantes da maternidade. Sem confronto algum com a fêmea de outra espécie, a mulher, a partir do final da Idade da Inocência ou Idade do Oiro, paga em demorados e violentos transes, o erro terrível do primeiro homem carnívoro.
Tal era a intuição matricial do singularíssimo e infortunado Filólogo e Filósofo das Religiões, nado e criado a dois passos do velho burgo, pátria de Bruno."

Sant'Anna Dionísio

(texto integral de “Um Homem do Porto”, capítulo XXXVII de Da Urbe e do Burgo, Lello, 1971, pp. 249 e ss.)

NO CORAÇÃO DA ARTE, 5

Cynthia Guimarães Taveira



O Sonho
Deitou-se e sonhou. Sonhou com o azul. Azul nas águas agitadas, azul no céu do crepúsculo. Sonhou com a cor misturada noutras cores. Nessa água volteavam rosas e cores de salmão, dourados e pratas pareciam querer saltar e ofuscar o olhar. E esse céu do crepúsculo deixava apenas adivinhar a bola de fogo escondida. Nesse azul vivia o lilás, o laranja, o amarelo-fogo, o verde a fugir. E a onda do mar estava de frente para ele. Se o engolisse não se importaria. A noite passou. Acordou. E, dirigiu-se ainda meio adormecido, cambaleando com o sono, para o atelier. À sua frente estava uma tela feita de azuis marinhos e crepusculares. Não sonhara. Era verdade. Nunca abandonara o real. Pelo menos o seu real. Qual era a sua verdadeira vida? Perguntou-se. A do sonho ou a outra? Haveria diferença? Teria sido ele que nunca abandonara a tela ou teria sido a tela que nunca o tinha abandonado a ele? Onde começava a sua obra e acabava ele? Perdera-se. Perdera a consciência de si. Porque ele era grande e infinito como o mar e como o céu, e o mar e o céu, suficientemente finitos para caberem nele. Já não havia diferença. Já não fazia diferença. Será Deus assim com a sua criação?

Na imagem: Onda (Vaga), de António Carneiro (1872-1930)

PARA LER

Tradição. N'O Lugar da Alma, de Abdel Hayy, a evocação de Salomão Molco, outro notável judeu e cabalista português, que haveria de morrer longe da pátria, às mãos dos inquisidores italianos.

terça-feira, 26 de maio de 2009

A IDEIA DE PÁTRIA NO «57», 3

Pedro Martins


O ódio à liberdade
A rigidez cadavérica explica o centralismo e a burocracia, maleitas que execram a liberdade e a invenção. Este ponto é decisivo, na medida em que nos ajuda a compreender a pérfida e porfiada perseguição que a ditadura irá mover ao livre-pensamento criacionista da Escola Portuense. José Marinho esteve preso, durante o Estado Novo, por motivos políticos; e viu-se impedido de ganhar o seu pão como professor, conforme, no póstumo Caderno de Lembranças, nos adverte Agostinho da Silva, que, pela sua parte, preferiu oportunamente mudar de ares, não sem antes ter sido demitido do ensino oficial (por se recusar a assinar a lamentável Lei Cabral) e haver conhecido os calabouços do regime. Jaime Cortesão, um bravo que escrevia Nação com letra grande, esteve exilado, anos a fio, em terras de Vera Cruz, onde, com Agostinho, seu genro, pontificou entre os maiores. Álvaro Ribeiro, o tão invocado Álvaro Ribeiro, não obstante deter um título de licenciatura, sofreu as passas do Algarve, até conseguir um emprego razoavelmente digno, porém modesto. Motivações políticas pesaram na sorte de exílio que, na década de sessenta do século passado, António Telmo viveu em Brasília, ele que, poucos anos depois, já no tempo de Marcello Caetano, enquanto fundador e director de uma escola no Redondo, não hesitará em nomear docentes que se opunham ao regime.

Mas há mais! Leonardo Coimbra foi ironicamente aconselhado por Salazar a fazer versos… Melhor seria que este tivesse endossado o alvitre a Fernando Pessoa, que sobre o ditador escreveu alguns poemas dardejantes que todos conhecemos: um deles intitula-se Liberdade, outro fala do tiraninho que não bebe vinho, e por aí adiante… E Pascoaes, já agora, o tão citado Pascoaes, já perto do fim da vida, no final dos anos quarenta, concedeu uma significativa entrevista de imprensa que é p-á-pá Santa Justa: nela, o poeta recusa-se a admitir a ideia de poder continuar a viver sob o jugo da opressão e, por consequência, apoia abertamente a candidatura presidencial do General Norton de Matos.

Claro está que o golpe fundamental fora rudemente desferido pela Ditadura Militar, logo em 1928, com a publicação do decreto que determina o encerramento da Faculdade de Letras do Porto, prova de que o ultramontanismo emergente sabia como fazer as coisas. Salazar – prosélito dilecto dos militares revoltosos, que, logo em 3 de Junho de 1926, o nomeiam Ministro (segundo parece, apenas recusa o cargo por razões de saúde) – irá levar três décadas bem contadas a abrir outra casa com o mesmo nome e diverso espírito na capital da liberdade. De permeio, fora mister que o veneno do esquecimento se insinuasse no curso das gerações, para que, ao cabo e ao resto, no velho burgo nortenho já pouco sobrasse da luminosa herança leonardina.

(continua)

DA URBE E DO BURGO, 2



O drama de Bruno

“Sampaio Bruno surge no campo das ideias, em Portugal, no começo deste século, como um caso estranho de polemista actuante e de místico teodiceico. Para melhor dizer: é um escritor republicano ao serviço de uma vigorosa vocação jacobina e ao mesmo tempo de uma ansiedade incoercivelmente religiosa.
Por isso, a sua posição, em face de alguns vultos novos do novo regime, pelo qual lutara e comera o pão amargo do exílio, seria cada vez mais difícil e, por fim, após o lamentável corps-à-corps com o autor da Lei da Separação, se tornaria nitidamente dramática.
Como filósofo, Bruno não concordava com a feição irreligiosa e menos ainda com a doutrinação por vezes ateística que precedera o advento da República e, após a revolução de Outubro, a suficiência positivista de alguns dos homens mais representativos do novo regime.
O facto de Teófilo Braga exercer as funções culminantes do governo provisório dar-lhe-ia de certo modo a intuição de que a transmutação política realizada poderia tomar, logo de início, orientações concretas em seu entender erróneas no plano do pensamento.
O filósofo temia o espírito do positivismo e considerava incompatível com o verdadeiro (ou o melhor) espírito da República as chamadas exigências ateísticas do «livre-pensamento», pois a República, a seus olhos, constituía uma forma sui generis de actuação religiosa.
No valor da liberdade e da justiça, da fraternidade e da tolerância, o autor da Ideia de Deus (tornada pública em 1903) via as condições fundamentais para que o homem – o homem ecuménico, não apenas o português – tomasse a consciência daquela transcendente missão que nas páginas finais dessa sua obra aponta: a de concorrer para que o mundo dos plurais, afastado do Ser Perfeito, se reintegre na pureza da sua fonte, ou seja na forma primordial de ser, tranquila e homogénea.
Em muitos passos da obra de Bruno se verifica, com efeito, que, para o seu espírito, a dita política constituiria uma espécie de discreta concretização da «necessidade» dialéctica (dando-se a esta palavra o mais substancial sentido da profunda metodologia platónica), de transição do mundo impuro e truncado, ininteligível e precário, para o plano do perene e do compreensível.
A acção política seria uma espécie de tácita guerra santa a favor de tudo e de todos, sem exclusão dos chamados seres inferiores. Daí o seu enérgico requisitório:
«A moral religiosa é falsa, porque é a moral do indivíduo. A moral filosófica, à maneira materialista, positivista, evolucionista, livre-pensante, é falsa, porque exclui os animais. A moral ascética é falsa, porque exclui as coisas. O ascetismo e o abandono são falsos, porque importariam ou a salvação pessoal ou, tão só, a sectarista. A não-resistência ao mal é falsa, porque, precisamente, eliminar o mal é o fim do homem, único e supremo.»
Bruno detestava, por isso mesmo, a ordem puritana e seca (tão valorizada por Aug. Comte como pelos doutrinários do autoritarismo ultramontano ou diamático) pensando que, até certo ponto, convém e sempre convirá que ao corpo social das nações haja uma certa margem de corajosa complacência para as fecundas inquietações, desentorpecedoras do vulgar hedonismo para que tende todo o regime ilusoriamente definitivo ou satisfeito.
As próprias democracias poderiam tornar-se viciosas se o seu rumo viesse a ser marcado pela agulha do exclusivo e pragmático sossego.
O filósofo tinha diante dos olhos o exemplo flagrante de algumas repúblicas modernas a convencê-lo de que o seu mal de raiz provinha de um falso conceito de progresso. Que seria da França, por exemplo, se todo o peso da sua possante burguesia, das suas caisses d’épargne, dos seus duros brasseurs d’affaires, não fosse compensado pelo ímpeto levitante dos seus poetas, dos seus idealistas, dos seus actos de indisciplina e de gratuitidade?
E outro tanto diria das democracias das Américas.
A sua obra Brasil Mental, publicada em 1898, é um vivo ataque (envolto embora nos costumados circunlóquios, tão peculiares do seu estilo esquipático e barroco), dirigido contra a mentalidade política aí dominante, apontando os paralogismos dos políticos e juristas que maiores responsabilidades lhe pareciam ter na feição pragmatista da grande república sul-americana de língua portuguesa.
Saber se o filósofo portuense viu ou não certo quanto ao Brasil, se foi justo ou injusto quanto aos republicanos portugueses de 1910, se o seu pensamento político terá sido bem fundamentado e inteligível, ou inorgânico e utópico –, é assunto que não se pode tratar num escrito desta natureza. (…)”
Sant’Anna Dionísio
(excerto de “O drama de Bruno”, capítulo XXXIII de Da Urbe e do Burgo, Lello, 1971, pp. 221 e ss.)

segunda-feira, 25 de maio de 2009

A IDEIA DE PÁTRIA NO «57», 2

Pedro Martins

O erro nativista
Aqueles que adoptam o conceito de nação como base jurídica das estruturas políticas centralistas – assim se enuncia, como se acabou de ver, a antítese do teorema do 57 – degradam o nacionalismo em nativismo. Deste modo, exaltam a circunstância de se haver nascido num determinado território, de se pertencer a uma certa nação. Claro está que essa exaltação não surge ex nihilo: estriba-se numa realidade sentimental; traduz o orgulho nativo num passado glorioso, reconhecível em certas formas de realização da Pátria.

O erro imputável a semelhantes teorias é o de quererem transpor, ou transportar, essas formas, tal e qual elas se concretizaram no passado histórico da sua manifestação, para o presente. Estamos perante doutrinas formalistas – pois que privilegiam a forma em detrimento do espírito; e passadistas – pois que concebem a pátria como uma “intrusão do passado no presente”, para aqui se empregar a justa expressão utilizada no Manifesto. Por este documento, ficamos ainda a saber que, para o Movimento de Cultura Portuguesa, a Pátria “não é sentimentalismo atávico, não é resistência do hábito, não é cómoda posição de reaccionários, não é «o conceito mais bestial e menos filosófico».”
Exemplo histórico evidente de um movimento cultural nativista vem a ser o chamado integralismo lusitano, que pretendia levar a cabo uma restauração monárquica de tipo miguelista, em óbvio contraponto à Renascença Portuguesa, de militância republicana e liberal.

Mas os mentores do 57, ao visarem as estruturas políticas centralistas próprias do nativismo – cujo corolário vem a ser o burocratismo das instituições, da cultura e do ensino –, pretendem sobretudo atingir a situação política vigente à época – o regime autoritário do Estado Novo, a ditadura salazarista. Cientes do perigo, fazem-no com prudência, de modo dissimulado. Mas o emprego de expressões como resistência do hábito ou cómoda posição de reaccionários não consente dúvidas. Pois não foi Salazar quem procurou levar a nação portuguesa a viver habitualmente, de acordo com a ordem estabelecida, calmamente, sem sobressaltos?

O propósito do ditador resulta congruente com a doutrina nativista, formalista e passadista que tende a reduzir a Pátria à contemplação extática das formas cristalizadas em que outrora se manifestou. A Pátria é o domínio do facto ou do feito histórico (daí brotando a vocação panegírica do regime), do movimento perfeito num tempo imobilizado. Perfeição, bom será lembrá-lo, quer dizer morte. Por isso, a Pátria não é uma razão viva, como pretende o autor do Manifesto; é uma razão morta, que se adora num ataúde, em celebrações diuturnas a que Roma irá emprestar a predicação zelosa dos seus oficiantes. O nativismo é mortificação e, o que é mais, necrofilia.

Antecedentes: 1. Pátria, nação e mátria

(continua)

DA URBE E DO BURGO, 1

Pensadores portuenses

"Por «pensadores portuenses» não devemos entender somente os que nasceram neste velho burgo, mas também aqueles que, pelo espírito, se tornaram filhos espirituais adoptivos deste meio singularmente antinómico, terrenal e sideral, mercantil e lunar, pesado e levitante.

Entre outros filhos adoptivos há que incluir, por exemplo, Antero, Amorim Viana, Pascoais, Leonardo – quatro vultos do nosso pensamento vindos de lugares diversos, e que, em certos momentos, chegam a dar a entender que não se davam bem com o ar do burgo, a ponto de um deles (Antero) ter dito, um dia, com solenidade, que não se sentia compatível com as «terras impossíveis do Porto» e outro (Pascoais), num acesso de humor satírico, ter-lhe consagrado uma extraordinária novela, autobiográfica e sarcástica (Os Dois Jornalistas), em que define, de um modo insuperável, a atmosfera nocturna da Praça Nova, a fumaceira de tabaco e de sonho das antigas redacções dos jornais, o travo «metafísico» da velha Rua do Almada, cheia de forjas e de armazéns de ferro, o dandismo romântico e um tanto frustre do passeio das Cardosas, o sentido astral da Torre dos Clérigos que o poeta aponta, causticamente, como sendo o Porto espremido para cima

A verdade, porém, é que, com todos os seus «senãos», objecto do clássico escárnio tanto camiliano como queirosiano, o velho burgo sempre foi reconhecido como um inestimável ambiente de trabalho, não apenas transitivo, mas perene.

Um misto de burguesismo e de satanismo boémio paira na cidade inconfundível. É o ar húmido que, por um lado, endurece aqueles homens que fecham a sete chaves as suas burras, mas, em certos momentos, as abrem de par em par, para erguerem um Palácio de Cristal ou financiarem, por puro amor do risco, uma obra estupenda como foi a conclusão da via-férrea do Douro – e, por outro lado, inspira os tribunos de fulgor demosténico ou os poetas de olhos encovados e febris, profundamente religiosos, mesmo quando se dizem ou julgam servos de Satã.

Pois, – que é ser religioso?

Nas limitações do nosso espírito laico, julgamos poder responder:

Ser religioso é sentir, vivamente, que existe (ou deverá existir) uma fortíssima relação de solidariedade entre todas as formas ou expressões de ser, desde as realidades aparentemente inanimadas ou dormentes às formas mais levitadas ou anímicas: os génios, os anjos, as almas, as divindades, ou divindade.

Aqueles que pressupõem que as religiões são expressões puramente mitogónicas não consideram a verdadeira face dessa realidades; ou seja, não vêem o mais íntimo sentido do que se poderá chamar religião.

Há temperamentos que, de nascença, são constantemente atentos ao pressentimento da solidariedade universal. Outros, pelo contrário, são destituídos desse sentido.

O homem autenticamente irreligioso é o que, por idiossincrasia, se reconhece avesso ou alheado ao sentimento da incoercível força de conexão do visível com o Invisível. Por outras palavras: é aquele que admite somente a existência de um plano do ser.

Por isso é lícito dizer que todo o espírito panteísta é de raiz irreligiosa, visto que, para esse, não há senão um plano ontológico que podemos chamar simplesmente a Substância.

Entre o ser religioso e o ser irreligioso há o tipo idiossincrasicamente ambivalente ou de compromisso, normalmente de índole trágica ou dramática, que (à falta de melhor palavra) designaremos por tipo antinómico. Antero, Pascoais, Raul Brandão, foram, exemplarmente, espíritos dessa estirpe. São homens que, em regra, lutam entre o sim e o não. Ora aceitam o Possível, ora o recusam; ora crêem no Inalterável, ora reconhecem que a existência é uma espécie de voragem. São os poetas e escritores do tipo exasperado do autor do Hino à Manhã, das Sombras, dos Pobres, do Húmus. A frio, ninguém os pode ler – porque as suas obras e confissões são gritos vindos do interior sacro de uma floresta.

Os espíritos irreligiosos são naturalmente os que estão fadados a viver mais em perigo, pois cumprem o fatum separativo. (...)"

Sant’Anna Dionísio

(excerto de “Pensadores portuenses”, capítulo XXXI de Da Urbe e do Burgo, Lello, 1971, pp. 209 e ss.)

domingo, 24 de maio de 2009

A IDEIA DE PÁTRIA NO «57», 1

Pedro Martins

Pátria, nação e mátria
Sobre a ideia de Pátria incidiu um dos doze teoremas formulados pelo 57. O tema e o respectivo problema eram de tal modo importantes para o Movimento de Cultura Portuguesa que aquele jornal lhes dedicou ainda um manifesto próprio. Com excepção do manifesto geral da publicação, vindo a lume no seu número inaugural, este será caso único no historial do título.
No Manifesto sobre a Pátria – assim se intitula o escrito mencionado, que passarei a designar por Manifesto – sugere-se algures que esta integra um espírito, uma alma e um corpo. Deste modo, torna-se evidente o estabelecimento de uma analogia com o composto humano. E, em compreensível extensão da metáfora, ali se afirma também que a Pátria é uma “razão viva a mover-se para um fim, e não um aglomerado de interesses egoístas”. Desde já, fique dito que a Pátria, stricto sensu, é espírito, razão ou alma espiritual.
O corpo da Pátria é o seu território: a terra, a matéria, a “mater”, a mátria. Não por acaso, o 57, no citado Manifesto, fala em “grandes parcelas da carne africana da pátria portuguesa”, votadas a um “abandono ignominioso e humilhante” (em 1890, por ocasião do Ultimato britânico). Guerra Junqueiro assistiu ao triste espectáculo, numa experiência que o motivou a compor Pátria, a “segunda grande epopeia dramática” da nossa literatura, no dizer do Manifesto.

O vocábulo mátria é antigo. Tê-lo-á engendrado o Padre António Vieira, no Sermão de Nossa Senhora da Conceição, pregado na Igreja da Senhora do Desterro, da Bahia, em 1639. Ali se consigna que “o mesmo nome de Pátria nos está ensinando que só o Céu o pode ser. E porquê? Porque o nome de Pátria é derivado do pai e não da mãe: a terra em que nascemos é a mãe que nos cria, o Céu para que fomos criados é o lugar do Pai que nos dá o ser; e se a pátria derivara da terra, que é a mãe que nos cria, havia de chamar-se Mátria, mas chama-se Pátria, porque deriva do Pai, que nos deu o ser e está no Céu.”
Temos, por fim, a alma da Pátria, que é a nação, isto é, o conjunto dos que nascem num determinado território, tão certo é a alma mediar o corpo e o espírito. E não são os homens quem está entre a Terra e o Céu?
A elucidação da metáfora não é exercício gratuito. Ela ajuda-nos a compreender o teorema que o 57 consagrou à Pátria. Neste momento, é conveniente tê-lo presente:
TESE
Noção de colectividade: base eleitoral dos chamados internacionalistas, democráticos e parlamentaristas.
Corolário: Abandono da pátria ao livre arbítrio que agita, mas não actua.
ANTÍTESE
Conceito de nação: base jurídica das estruturas políticas centralistas.
Corolário: Burocratismo das instituições, da cultura e do ensino.
SÍNTESE
Ideia de pátria: princípio espiritual da autonomia portuguesa.
Corolário: Criação das instituições necessárias ao desenvolvimento social da actividade do espírito e da cultura. Reforma radical de todo o ensino.
(continua)

«DA URBE E DO BURGO»: REVISITAR O PORTO COM SANT'ANNA DIONÍSIO

Homenagem. Na semana que antecede a apresentação de Universalidades no Clube Literário do Porto, os Cadernos de Filosofia Extravagante evocam Sant’Anna Dionísio, nome importante, e hoje um tanto esquecido, entre o discipulado de Leonardo Coimbra na Faculdade de Letras do Porto. Fá-lo-emos a partir de amanhã, e até sexta-feira, através da publicação, nesta página, de uma série de excertos do livro Da Urbe e do Burgo, que, com a chancela de Lello & Irmão, veio a lume em 1971 (trata-se de uma colectânea de crónicas, publicadas inicialmente entre 1960 e 1970, no jornal O Primeiro de Janeiro) e é um das obras mais notáveis na vasta bibliografia dedicada à história da Cidade Invicta. Nele, o leitor poderá encontrar um acervo precioso, repleto de testemunhos e evocações, que, numa escrita límpida e vívida, lhe devolve a memória das pessoas e dos lugares que, ao longo dos séculos, definiram o Porto. A nossa selecção privilegiou naturalmente os escritos que respeitam à gesta da Escola Portuense.

Sant’Anna Dionísio (Porto, 1902-1991) foi um dos vultos mais eminentes da geração de Álvaro Ribeiro, José Marinho e Agostinho da Silva. Na série “Vidas Portuguesas”, que publicou no blogue da Nova Águia, Romana Valente Pinho dedicou-lhe um interessante apontamento crítico e biobibliográfico. Pode ser lido aqui.

NO PRÓXIMO SÁBADO, ÀS 21:30, NO CLUBE LITERÁRIO DO PORTO

Norte. O primeiro número dos Cadernos de Filosofia Extravagante, Universalidades, será apresentado no próximo sábado, dia 30, pelas 21:30, no Clube Literário do Porto (à Ribeira), numa sessão que contará com a presença de António Telmo, Pedro Sinde e Alexandre Teixeira Mendes e que, em princípio, será a última escala a efectuar nesta primeira viagem da inquietude. Ao Clube Literário do Porto, agradecemos, uma vez mais, o magnífico acolhimento dispensado ao nosso projecto.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 9

António Carlos Carvalho
Ainda a propósito da recente visita de Estado do Presidente da República à Turquia: não vi, não li, não ouvi (mas não se pode estar atento a tudo) referências ao mais importante, as relações entre os portugueses e a Turquia, que datam de vários séculos. Note-se, não falo das relações históricas entre os dois países, igualmente multiseculares, mas marcadas pela hostilidade até ao início do século XX (a Turquia era aliada da Alemanha na I Guerra); falo de muitos portugueses e do que eles viam na Turquia.
Abrimos o «Diálogo Evangélico» de João de Barros, escrito por volta de 1542, e lemos esta passagem:

«Evangelho – Para onde caminhas tu?

Talmude – Para Veneza, e daí para a Turquia.

Evangelho – Para a Turquia? De que nação és?

Talmude – Hebreu, povo escolhido de Deus.»

Para muitos portugueses, judeus, nessa época, e nas seguintes, era esse o destino natural do seu exílio forçado. Por várias razões. Porque viver sob domínio islâmico, ainda que com o estatuto de tolerados e com as restrições inerentes (imposto especial, limites na construção de sinagogas e de casas e no vestuário, proibição de montar a cavalo), era uma experiência que eles conheciam dos tempos da chamada «Idade de Ouro» islâmica na Península; porque preferiam passar por algumas dessas humilhações do que sofrer as perseguições e o medo dos inquisidores; porque a sua situação era, em muitos aspectos, semelhante à que tinham experimentado nos reinos cristãos até ao século XV; e porque sabiam que a sua presença em território turco convinha também ao sultão, que se aproveitava dos conhecimentos científicos, técnicos e económicos desses portugueses, assim como dos seus contactos comerciais e da rede de ligações que eles tinham com os países europeus. Sobretudo, agradava-lhes poderem praticar a sua religião sem ser em segredo e regerem-se pelas suas leis próprias em matéria religiosa ou em questões de matrimónios e de sucessão.


Judeus da Turquia

E assim os judeus portugueses exilados na Turquia acabaram por prestar importantes serviços ao Império Otomano, como médicos, diplomatas, financeiros, artesãos especializados, agricultores, fomentadores das indústrias têxtil e tipográfica (publicando obras de autores peninsulares que tinham levado consigo) e até mesmo cortesãos, líderes e protectores das suas comunidades.
Entre eles destacaram-se Grácia Nassi e Joseph Nassi.
Sobre Grácia Nassi, ou Grácia Mendes, ou Beatriz Luna, nascida em Lisboa em 1510, podemos ler um magnífico romance de Cathérine Clément, «A Senhora», ed. Asa (que a autora fez questão de lançar em Belmonte, terra de cripto-judeus) e um ensaio biográfico de Marianna Birnbaum, «A Longa Viagem de Gracia Mendes» (Edições 70). Um e outro contam-nos a extraordinária vida dessa mulher portuguesa que ficou conhecida como «A Senhora» e que salvou a vida a milhares de judeus portugueses e espanhóis, resgatando-os das garras dos perseguidores a peso de ouro. Foi também mecenas cultural – Samuel Usque dedicou-lhe «Consolação às Tribulações de Israel», edição patrocinada por ela em Ferrara –, fundou uma sinagoga e uma escola talmúdica em Constantinopla e apoiou a instalação de portugueses em Tiberíades.
Joseph Nassi, ou João Miques, também nascido em Lisboa no ano de 1524, era sobrinho e genro de Dona Grácia Nassi e tornou-se o favorito do sultão Selim II (de quem recebeu o título de duque de Naxos), chefiando a sua diplomacia.
Em 1553, o viajante alemão Dernschwam encontrou em Constantinopla 42 sinagogas e cerca de 15 mil judeus (sem contar com as mulheres e crianças), na sua maioria de origem peninsular.
Se estendermos o nosso olhar ao imenso Império Otomano, temos o caso especial de Salónica, onde ainda havia judeus de origem portuguesa nos anos 40 do século XX (e daí partiram para campos de concentração, onde foram exterminados – mas ninguém fala disso). No século XVI havia aí as congregações «Lisboa» e «Évora», a cidade era um centro cultural que rivalizava com Constantinopla e Safed, e o português e o espanhol eram as línguas correntes. Por lá passou Diogo Pires (Salomon Molkho) e lá viveu e morreu Amatus Lusitanus (João Rodrigues de Castelo Branco).
Só mais um pormenor: há poucos anos, o cônsul de Portugal em Istambul era um senhor de apelido... Abravanel, certamente da mesma família de Isaac e Judah Abravanel.
A História de Portugal é também feita de muitos exílios e exilados que nunca perderam a saudade da pátria perdida. Como esse outro Diogo Pires, poeta de Évora (assinava Didacus Pyrrhus Lusitanus ou Iacobus Flavius Eborensis), do século XVI, que morreu exilado em Ragusa (actual Dubrovnik) e que escrevia:
«(...) Então eu devo suportar um exílio longo e cruel? E de regresso nenhuma esperança me resta? (...) Mas bem longe, e separada por enorme extensão de terra, fica Évora; oh! terra conhecida da minha infância! Salve, terra, memória do meu nascimento! Salve, terra que meus olhos não mais verão! (...) Acaso porque celebro os solenes ritos e as cerimónias sagradas dos meus antepassados é que vagueio exilado da minha pátria? (...) Aqui gostaria eu que mão amiga enterrasse em paz os meus ossos, não tocados do ferro nem das negras brasas. E que não seja trabalhosa a construção do meu túmulo, mas tenha, no cimo do mármore, um pequeno poema:
“Aqui jaz Diogo, longe da cidade de Évora e de sua casa. Não lhe foi permitido guardar os membros em solo pátrio. Mas tu, que recolhes ao porto, ou levantas amarras da praia, diz, ó marinheiro, para sempre um adeus!”»

quinta-feira, 21 de maio de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 18

Quos Jupiter vult perdere prius dementat
António Telmo

Assiste-se, nestes anos do fim e do princípio, a dois movimentos que se combinam e misturam perigosamente: o de uma vastíssima corrente, invasora de todo o humano, que se pode caracterizar pela intenção, progredindo de uma consciência oculta para uma subconsciência superficial, de cindir do divino o homem, afundando-o e submergindo-o no sórdido e no macabro, e o de outra, excessivamente obcecada pelo esotérico e seus mistérios, que aceita todas as ligações com o divino desde que este não seja tido e entendido como tal. A ciência tecnológica ou tecnomágica marca o passo e o ritmo de uma e de outra, ela que, na sua pureza newtoniana original, não foi mais do que só isto: uma expressão superior do espírito erguendo-se das trevas para a luz.

Uma e outra, aparentemente contrárias, estão fabricando a demência dos homens, demência que pode ser entendida de dois modos rigorosamente etimológicos: como corrupção da mente humana ou como separação dela da realidade. Quos Jupiter vult perdere prius dementat. Não é a poluição do respirável, do audível, ou do comestível agredindo e consumindo lentamente a vida o propósito primeiro do espírito que nega. É a dementação que persistirá para além da morte, nos prolongamentos subtis do género humano. Para tanto dispõe de múltiplos e indefinidos mecanismos: o do ruído que ensurdece, desorienta e desequilibra, ferindo, como os franceses bem sabem através da sua língua, o entendimento; o da imagem que hipnotiza ou adormece as resistências da alma pondo no íntimo de uma memória esquecida de si múltiplos obstáculos à faculdade de pensar; são constituídos por tudo o que o leitor facilmente reconhecerá invadindo-lhe a casa pela televisão, pela rádio, pelas máquinas de uso doméstico, actuando na escola, no café, nos congressos, no desporto. Para o espírito que nega, se a demência for conseguida tudo o mais virá por acréscimo e consequência. É falso que o homem moderno viva em inquietação. Tornou-se indiferente ao que de monstruoso se vai produzindo, ao crime que perverte a natureza, a todas as formas de homogeneização que lhe destroem a individualidade.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 4

Cynthia Guimarães Taveira

O Público
Há duas espécies de público. O que conhece o artista e o que não o conhece. Ele olha agora pelos vidros antes de entrar na galeria. As pessoas formam pequenos aglomerados em frente a alguns quadros. Têm um copo na mão e conversam. Esse público é o desconhecido e será sempre um mistério para ele. Quase como se fosse um desdobramento das obras. Em cada um deles vive uma impressão diferente. Para cada um, a mesma obra é fonte de um outro olhar. Vêem coisas que ele nunca viu, comentam o que nunca se lembrou de pensar, atentam em pormenores como se fossem revelações até aí ocultas. São as asas de borboleta agitadas e inesperadas que pousam nos quadros-flor. Por fim, vão-se embora, a pouco e pouco, cada qual levando consigo o segredo encontrado.
Depois há os outros. Aquele público que está presente durante o trabalho. Os íntimos que partilham com ele refeições. Esses conhecem o universo por ele criado como se fosse o seu. Esses não se espantam nem descobrem segredos imprevisíveis. Esses respiram o mesmo ar e, na crítica, atentam na fidelidade que o pintor tem, ou não, perante si mesmo. Para eles, mais importante que a obra é essa pessoa que a cria, essa pessoa que amam. Esses não pensam que conhecem. Conhecem quase sem pensar. E, de alguma forma, estão sempre lá, algures no quadro, espreitando em exigência.

terça-feira, 19 de maio de 2009

PENSANDO À BOLINA, 4

Pedro Sinde


O Deus da nossa infância
A ideia infantil que formámos de Deus é, simultaneamente, um obstáculo e uma ajuda. É uma ajuda porque o pensamos como a fonte da bondade, da beleza e da verdade; e isto é causa de esperança. Acalenta-nos a ideia de que, havendo injustiça no mundo, há, no entanto, uma justiça transcendente, uma justiça que transferimos para o outro mundo. Tudo isto é bom, descansa-nos.
Porém, o pensador, o filósofo, deve olhar para a ideia de Deus com coragem, deve superar a imagem infantil que se entranhou na sua alma em criança. Para o filósofo, essa ideia é um obstáculo que não o deixa pensar livremente, que não o deixa pensar seriamente.
A parábola do filho pródigo mostra-nos nitidamente estas duas possibilidades: o filho que fica em casa é aquele que conserva a ideia infantil de Deus; o filho que sai de casa, percorre o mundo e é recebido, para escândalo do outro irmão, com uma festa, assim que retorna a casa, é aquele que não se contentou com a imagem recebida em criança. Estes são o caminho da religião e o caminho da filosofia.

O filósofo andará sozinho, será rejeitado, caluniado, será visto como um louco, mas será livre e procurará verdadeiramente. Errará, certamente, várias vezes, mas o ímpeto da demanda é mais forte do que ele; quem sabe se não é o próprio Deus a procurar-se a si mesmo no filósofo?
A maravilha do mundo, tal como nos aparece vertida na natureza, é certamente um pensamento divino - de que estranho acaso poderia ter saído tanta magnificência? -, mas nessa maravilha esconde-se o horror da morte e do sofrimento dos inocentes: é o veado perseguido pelo leão ou a criança que sofre horrores que nós nem imaginamos.
Ao filósofo cabe o duro papel de pensar o mundo como um todo, sem corpetes, sem palas, num esforço heróico e tremendo. Quem alguma vez passou pela experiência de pensar verdadeiramente o mal não poderá mais fingir que o mundo é apenas fruto da harmonia. Vemos nele essa harmonia, manifestada de um modo insuperável na natureza, mas um vento gelado, caótico, tende a infiltrar-se nela a todo o tempo.
É fácil ver a causa do bem em Deus, difícil é pensar a causa do mal.
texto originalmente publicado no blogue Maranos

segunda-feira, 18 de maio de 2009

SAUDAÇÃO A ANTÓNIO TELMO, 12

Encontro com António Telmo*
Helder Cortes

O encontro com o Professor António Telmo? Tudo aconteceu com a grande viagem a Granada. Após essa campanha e longa travessia por deserto onde o não encontrava, recebi certo dia de Verão, em lar que não esqueço, o telefonema do Professor António Telmo: Que sim; que ali vivia e que se disponibilizava a receber-me. Foi a porta que se abriu e o convite para de imediato entrar em sua casa.

Esse banquete há longo tempo iniciado à mesa de António Telmo, do qual me ausento para inúmeras leituras e cogitações, é perpétuo caminho de grande provocação, que nunca poderá ser via fácil. A amizade com este grande Homem que pressente o mundo com lucidez embriagante representa permanente confronto com o local que se ocupa, naquilo que é o constante questionar do presente. De tudo isto resulta ou a mudança de rumo, ou reforço da posição assumida e o continuar desse caminho. O que em qualquer dos casos (como se apenas duas opções existissem?!) resulta na óbvia mudança de local. O que sempre significará elevar-se na profundidade de seu Ser: Porque é descendo que se sobe! Só sendo pequeninos poderemos ser melhores.

António Telmo é uma grande janela aberta para o mundo da filosofia Portuguesa. Esse grande mundo no qual, como a mais pequena semente silvestre, tento absorver a primeira gota de água que a faça germinar. É essa permanente disponibilidade que torna qualquer encontro coisa geradora de novo momento.

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*título da responsabilidade do editor; o presente texto, destinado à Saudação a António Telmo, só agora nos chegou para publicação. Vem fora do tempo, mas não vem tarde. Fica sendo o décimo segundo e último daquela série. Por ele se torna o círculo perfeito.

domingo, 17 de maio de 2009

À BEIRA DO SADO, OU ALÉM DO TEJO: «CADERNOS» E TEOREMAS DO «57» ESTIVERAM EM FOCO

Apresentações. Em duas cidades de Além-Tejo, uma das quais à beira-Sado, duas sessões bem diferentes em pouco menos de dois dias. Em Setúbal, na Prima Folia, na noite da passada quinta-feira, a assistência era escassa para a apresentação de Universalidades, mas o jantar estava primoroso, o acolhimento foi caloroso, e o debate revelou-se aceso, intenso, controverso. Percebeu-se que o projecto dos Cadernos, ali apresentado e representado por Luís Paixão e Pedro Martins (na companhia amiga de Roque Braz de Oliveira), não é, nem pretende ser, politicamente correcto, como agora se diz. É um bom sinal. Teo gratia!

Ontem, em Montemor-O-Novo, apesar de não se ter repetido o público copioso de 1 de Março (a fraternal hospitalidade da Maria do Resgate e do Bernardo é que se manteve intocável!), a sala da Livraria Fonte de Letras (uma vez mais, o nosso agradecimento à anfitriã, a livreira Helena Girão) estava bem composta. Raros seriam os que ainda não conheciam Universalidades, que Elísio Gala apresentou com sóbria e elegante brevidade, numa exposição rica de imagens, mas que não passou ao lado dos aspectos essenciais a reportar no primeiro número dos Cadernos de Filosofia Extravagante, uma publicação que, como o orador lembrou, não deixa de se inserir na linhagem do 57. Também Rodrigo Sobral Cunha usou palavras de beleza, que fazem ver, para, já no âmbito do II simpósio sobre o Movimento de Cultura Portuguesa, apresentar o teorema da Filosofia da História. A imagem de uma árvore, crescendo na sua axial verticalidade, serviu de ilustração à recusa, pelo autor da Filosofia do Ritmo Portuguesa, da concepção moderna da história linear e horizontal. Helder Cortes e Pedro Martins completaram a apresentação, o primeiro acentuando a actual problemática da Universidade (o teorema que lhe coube) e o segundo privilegiando a exegese do teorema da Pátria, à luz do Manifesto sobre a Pátria que veio a lume no segundo número do jornal 57. O período de debate, que transferiu o simpósio para os convivas, foi profícuo, com António Telmo a evocar a figura maior de Leonardo Coimbra e Carlos Aurélio, Pedro Sinde e Pedro Paquim Ribeiro, entre outros, trazendo importantes contributos ao colóquio. No dia 30, a inquietude subirá ao Douro!

sexta-feira, 15 de maio de 2009

OS POETAS LUSÍADAS, 11



COLEGIAL

Em cima da minha mesa,
Da minha mesa de estudo,
Mesa da minha tristeza
Em que, de noite e de dia,
Rasgo as folhas, leio tudo
Destes livros em que estudo,
E me estudo
(Eu já me estudo…)
E me estudo,
A mim,
Também,
Em cima da minha mesa,
Tenho o teu retrato, Mãe!

À cabeceira do leito,
Dentro dum lindo caixilho,
Tenho uma Nossa Senhora
Que venero a toda a hora…
Ai minha Nossa Senhora
Que se parece contigo,
E que tem, ao peito,
Um filho
(O que ainda é mais estranho)
Que se parece comigo,
Num retratinho,
Que tenho,
De menino pequenino…!

No fundo da minha mala,
Mesmo lá no fundo, a um canto,
Não lhes vá tocar alguém,
(quem as lesse, o que entendia?
Só riria
Do que nos comove a nós…)
Já tenho três maços, Mãe,
Das cartas que tu me escreves
Desde que saí de casa…
Três maços – e nada leves! –
Atados com um retrós…

Se não fora eu ter-te assim,
A toda a hora,
Sempre à beirinha de mim,
(Sei agora
Que isto de a gente ser grande
Não é como se nos pinta…)
Mãe!, já teria morrido,
Ou já teria fugido,
Ou já teria bebido
Algum tinteiro de tinta!

José Régio
Na imagem: A Virgem e o Menino, de Hans Memling (c. 1430/40-1494)

quinta-feira, 14 de maio de 2009

PENSANDO À BOLINA, 16

Pedro Sinde


Second life: a vida que não se vive ‘aqui’ para viver ‘lá’
Tanto por natural compleição, como por formação, desconfio dos “progressos” daquilo a que se chama “novas tecnologias”, por oposição às velhas e, graças a Deus!, arcaicas técnicas artesanais. Não creio que com isso o homem ganhe alguma coisa de essencial e, antes pelo contrário, estou mesmo convencido que com isso perde ou de que isso é sinal de que já perdeu qualquer coisa de vital.

Por esta razão, já fui acusado, por incompreensão ou má vontade, de querer regressar ao passado. Não pretendo de modo algum voltar atrás – o que, de resto, seria um absurdo lógico até –, porque acredito saber que cada um de nós vive no tempo que escolheu viver. Há quem muito se lamente do tempo em que vive, correndo o risco de se tornar como aquele soldado a quem o general entregou a difícil missão de ir para a linha da frente e, uma vez lá chegado, sentou-se a resmungar com as condições que encontrou e se esqueceu, desse modo, de cumprir a alta e difícil missão para que foi especialmente eleito.
Não acredito na opinião ingénua de que tudo depende da utilização que se faça das “novas tecnologias”, por exemplo, da internet (alguma coisa no fundo de mim me alerta para a perversidade do meio em si mesmo independentemente do tipo de uso e a razão me convence que é assim). Sei que alguma coisa de mim estou a dar ao cão ao utilizá-la. Mas tudo tem um limite.
É aqui que começa o tema deste texto: o second life. Diz-se assim à inglesa como se não houvesse tradução para português; é por esse modo que se vai ocultando ou o ridículo ou o sinistro que se escondem por trás de expressões estrangeiras. Devemos dar-nos ao trabalho de traduzir. Pascoaes, o grande Pascoaes, chamava ao futebol o bola-pé; mostrava, por este modo, o ridículo que o termo inglês esconde – dito assim, bola-pé, logo se vê que se trata apenas de um jogo infantil que não devia ter mais importância do que esta: a de ser um jogo infantil. Está bem que um adulto brinque a um jogo de crianças, às vezes isso é saudável, momentaneamente, mas se esse adulto não faz nem pensa outra coisa – como se vê e ouve tanta gente –, então isso é já um caso de psiquiatria. Fisiologicamente é um adulto, mas cujo crescimento psíquico bloqueou a certa altura da sua maturação, tendo ficado fixado no jogo do bola-pé. Se em vez do bola-pé disséssemos o jogo da macaca, logo o leitor veria que se trata de um caso patológico: imagine um país que pára para ver um grupo de pessoas a jogar a macaca e terá todo o ridículo da coisa.
Os leitores de René Guénon, que foi quem claramente ou de um modo mais sistemático alertou para este tipo de coisas, não poderão deixar de ficar inquietos ao verificar a macaqueação que acontece com esta coisinha a que chamam a segunda vida. Trata-se da macaqueação e mesmo, o que lhe confere um carácter particularmente sinistro, de uma apropriação do mundo a que a tradição tem caracterizado, na pluralidade dos mundos, como aquele em que o nosso destino se decide de modo mais difícil, onde estamos mais desamparados, isto por ser aquele em que a ilusão pode ser maior. Podemos chamar-lhe o mundo subtil, mundus imaginalis, malakut dos sufis ou yezirah dos cabalistas. É sempre o mundo das almas, aquele lugar onde nos encontramos antes de nos encontrarmos neste nosso mundo.

Na imagem: Anunciação, de Fra Angelico (aprox. 1400-1455)

Este mundo subtil, particularmente bem caracterizado por Henry Corbin e descrito por dentro, digamos assim, por Pascoaes, é o mundo onde os corpos se espiritualizam e os espíritos se corporalizam. É isto, mas às avessas, o que acontece na segunda vida, onde o bonequinho, a que sinistra e erradamente chamam avatar, dá a ilusão de ser uma projecção astral, para me servir de uma linguagem que por ser ocultista mais pessoas julgam compreender, daqueles que por lá andam; trata-se na realidade de um bonequinho grotesco (chegará o tempo em que esse bonequinho vai ser a três dimensões e surgirá como uma aparição ente nós). Por ele, através dele, pode cada um levar até onde quiser as suas fantasias – desde as mais razoáveis (se se pode falar em razoabilidade dentro de domínios tão infantis) até aos devaneios do tarado. Ali, finge-se que se vive em “outra vida” o que não se vive nesta. Ali, se pode dar azo ao nosso “ser verdadeiro”, que ali não é mais do que o corpo de desejo levado ao paroxismo da demência.

Ali até temos aquela característica paradoxal, própria do mundo subtil, que é a de as coisas terem espaço mas não ocuparem espaço.

Dir-me-ão que se trata apenas de um mundo virtual. Sim, mas esse “mundo” existe realmente desde que tenha existência mental, isto é, passa a existir a partir do momento em que alguém lá entra e “anima” o bonequinho. Aquele que está sentado em frente ao monitor (devemos ter em mente que dizemos “ecrã” para a televisão, mas “monitor” para o computador!) do computador a andar com o bonequinho dentro da outra vida está a realizar o processo de dar alma a esse bonequinho: é um processo bem conhecido no mundo da magia como um fenómeno de vampirização – dando alma ao boneco, pensam controlá-lo, mas na realidade estão já a ser controlados pela entidade ou egregora, essa sim, subtil. Cada um destes aspectos devia ser desenvolvido particularmente para que se pudesse avaliar todo o alcance, mas isto exigiria um espaço que aqui não queremos ocupar. A perversidade de tudo isto é esta possibilidade extrema: julgando-se livres e procurando a liberdade ou a “libertação” desta vida onde não se realizam, eles tornam-se presos – quanto mais livres se julgam, porque podem fazer o que querem, mais presos estão, fechados num inferno com aspecto que aos seus olhos se reveste de formas paradisíacas.

Deus nos colocou neste mundo; nele estão contidos todos os outros em interacção permanente. Não precisamos de mais nada. Alguma coisa vai muito mal quando as almas não sentem já um deslumbramento tal por este mundo que não precisem de paraísos e infernos artificiais. Criar a aparência de um mundo que nos separe deste em que vivemos é o ideal do diabo, e por um modo tal que nós nem nos apercebamos disso. Mas quem acredita ainda no diabo?

Peço a Deus para estar errado nestas palavras, porque só ele verdadeiramente sabe e quero crer naturalmente na sua providência que escreve certo por linhas que nos parecem tortas.

PARA LER

Actualidade. Aqui fica o registo de uma chamada de atenção para a Anotação Pessoal de António Carlos Carvalho, sobre a lei dos poços, aqui publicada ontem. Por Casimiro Ceivães, na Nova Águia.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 8

António Carlos Carvalho

Anda por aí uma onda mista de espanto e pânico, causada por uma tal «lei dos poços». Publicada em Maio de 2009, estaria agora a chegar ao fim o prazo legal para o registo de poços, furos, noras, charcas, etc. Quem não tiver feito esse registo fica sujeito a coimas totalmente disparatadas (mínimo de 25 mil euros). Acontece que muito poucos agricultores souberam disso, muito poucos sabem sequer ler e escrever e, portanto, tudo isto tem o ar de mais uma caça à multa. Mas até pode ser que não seja bem assim, que isto se deva à aplicação de mais uma das chamadas directivas europeias, neste caso referida à preocupação com a cartografia da água e da sua utilização. Já se percebeu que a água é um bem natural cada vez mais escasso e cada vez mais caro para muitos de nós.

Provavelmente, dado o estado de alma em que nos encontramos, e pelo caminho que as relações humanas estão a tomar, pode bem acontecer que um dia destes venham por aí umas «guerras da água» -- doce, tornada amarga.
Quanto a mim, em vez de leis e de coimas, preferia que se promovesse uma reflexão geral sobre a água e o seu significado profundo para nós, homens, e para animais e vegetais.
E até podíamos começar por meditar sobre a questão dos poços.

Na imagem: Rebeca e Eliezer junto ao poço, de Carlo Maratti (1625-1713)
Habituados, como estamos, a que a água saia «naturalmente» das torneiras das nossas casas, já nos esquecemos da importância que os poços tinham nos tempos antigos, como lugares de acesso ao líquido mais precioso (e também mais simbólico) e, igualmente, como pontos de encontro, de contacto e de troca (comunicação) entre os membros da mesma comunidade ou dos que partilhavam o mesmo território.
Aí se aprendia a partilhar o bem comum, o dom da natureza (dom de Deus), vital para cada um dos seres vivos. Aí se aprendia a esperar, pacientemente, pela sua vez de ter acesso a algo que não pertence a ninguém em particular porque foi dado a todos.
Tudo isso era ainda mais importante para os povos nómadas e no espaço do deserto. Para esses pastores, o poço ficou ligado a um simbolismo da água, por sua vez ligado à vida na sua essência, mas também a factores económicos, políticos, sociais e e culturais.
Por essas razões encontramos uma relevância tão grande dada aos poços nas narrativas de episódios bíblicos – onde a palavra «poço» aparece mais de 50 vezes. Podemos mesmo referir sete poços como lugares de outros tantos episódios fundamentais: os dois poços de Hagar, onde recebe as visitas de anjos; o poço do Juramento, onde Abraham e Abimelekh concluem uma aliança; o poço de Isaac; o poço de Rebeca; o poço de Jacob; o poço de Moisés.
Estes episódios em volta da figura e do símbolo do poço e da água deviam-nos fazer pensar. Como também nos devia fazer reflectir o facto da seca ser uma consequência directa da secura do coração dos Homens.
Era por esta via, a da memória e da reflexão meditativa, que devíamos ir – e não por caminhos ínvios e ímpios de leis e respectivas coimas.

TEOREMAS DO «57»: A PÁTRIA

TESE Noção de colectividade: base eleitoral dos chamados internacionalistas, democráticos e parlamentaristas.
Corolário:
Abandono da pátria ao livre arbítrio que agita, mas não actua.

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ANTÍTESE Conceito de nação: base jurídica das estruturas políticas centralistas.
Corolário:
Burocratismo das instituições, da cultura e do ensino.

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SÍNTESE Ideia de pátria: princípio espiritual da autonomia portuguesa.
Corolário:
Criação das instituições necessárias ao desenvolvimento social da actividade do espírito e da cultura. Reforma radical de todo o ensino.