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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



terça-feira, 24 de novembro de 2009

PENSANDO À BOLINA, 22

Pedro Sinde


A Tertúlia ou a Arte de Conversar
28.8.2005
Consta que o termo “tertúlia” vem mesmo de Tertuliano, mas não directamente. Terá sido na corte de Filipe IV de Espanha que a palavra apareceu, porque os literatos e os artistas se reuniam regularmente sob o nome de Tertuliano, que opunham ao de Cícero, como quem opõe o cristianismo ao paganismo.
A alta tradição da Filosofia Portuguesa criou uma série de tertúlias, que se espalharam por diversas gerações, formando gradualmente uma escola formada por várias personalidades, de que cito, a título exemplar, o nome: Sampaio Bruno, Teixeira Rego e Guerra Junqueiro; Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes; Álvaro Ribeiro e José Marinho; António Telmo, em Sesimbra (com Rafael Monteiro), Vila Viçosa e depois em Estremoz; Orlando Vitorino, em Lisboa.
Quando se vai para uma tertúlia destas, em que se procura o mais alto, a única coisa que importa, deve-se ter presente que se desconhece o lugar espiritual que cada alma ocupa – a que os sufis chamam “sirr”, o lugar secreto que a alma ocupa na hierarquia espiritual –, deve-se ouvir o que cada um diz independentemente de quem o diz, que é o preconceito habitual que nos leva a ouvir de modo submisso quem cremos elevado e desatentos quem cremos “abaixo” de nós. Não se sabe onde sopra a verdade ou através de quem o faz. Abd el Qader diz a este propósito: “Deus enuncia certas verdades através de pessoas que não são dignas, afim de as dar a conhecer àqueles que são dignos.”
António Telmo conta que José Marinho quando chegava à tertúlia perguntava, por vezes, “hoje temos conversa ou diversa?” Nesta pergunta estava já pressuposta a ideia que fundamenta a conversa, isto é, a convergência das almas diversas para um ponto partilhado de mesmo interesse.
Ora, só pode haver conversa se o interesse (inter-esse) que ali reúne as almas for o mesmo; e aqui têm início os grandes equívocos das conversas que só o sejam na aparência, pois são, na realidade, diversas ou de diversão.
Quando se encontram almas que aspiram ao mais elevado, conversam, convergem ou comungam a causa da sua inquietação, isto é, do que os tira da quietação, do que os move, os fins para que se dirigem e o que viram no caminho que estão percorrendo. Assim, escolhem criteriosamente os temas, as teses e os teoremas – como diria Álvaro Ribeiro.
Só pode haver conversa nesta condição, onde quer que entre a superstição, a diversão e a competição, estamos no domínio da polémica e da discussão que melhor serve para encher páginas supérfluas de jornais e enganar o leitor desprevenido.
Cada um sabe ou deve saber guardar o silêncio ou calar tudo quanto saia do que serve de tema de conversa.
A conversa começa com a escolha de um tema que tanto pode surgir do discípulo mais atrasado no desenvolvimento da sua alma, como do mestre, que visa assim orientar o discípulo.
Há dois tipos de atitudes possíveis perante a própria ignorância: há aquele que, ignorando, procura conhecer e há o que, ignorando, disfarça a sua ignorância.
A primeira aprendizagem, a primeira regra da conversa não é o saber falar, mas o saber ouvir: um surdo não ouve. Para saber ouvir é preciso estar interessado, sem interesse não importa o que seja dito, cai a semente sempre por entre infecundos penedos.
Saber silenciar, saber ouvir e saber falar. A última aprendizagem é a de saber falar, aprende-se falando e sabendo ouvir; sabendo, depois de lançado o tema, extrair todas as teses implícitas e argumentar com os respectivos teoremas. A superstição não cabe na argumentação.
Para que a conversa flua fecundantemente é ainda necessário saber reconhecer que as conversas acontecem em planos muito distintos que Dante já esclareceu.
A motivação para o encontro na tertúlia deve ser sempre a da demanda do mais alto. Motivações sociais são sempre acessórias e servem frequentemente para estragar a conversa. Antes de se dirigir à tertúlia deve o tertuliante procurar descobrir em si se é a motivação que o leva ou se é ele que leva a motivação.
Na filosofia portuguesa a relação entre mestre e discípulo é implícita (e não explícita, como no oriente), quer dizer, toma por base a circunstância da amizade de espírito a que os celtas chamavam: anamcara – literalmente, «o amigo da alma».

2 comentários:

  1. «Abd el Qader diz a este propósito: “Deus enuncia certas verdades através de pessoas que não são dignas, afim de as dar a conhecer àqueles que são dignos.”»

    Nisto os homens de espírito deveriam reflectir fundamente. Não é preciso ler o Pessoa a ler o Nordeau... basta saber que a «separação» encheu Deus de sarcasmo em relação ao mundo.

    Pode estar dentro do pedinte deitado no passeio, na criança faminta, no pior dos assassino, no mais vil dos homens, no aleijado, no relasso: Deus é irónico.

    Abraço.

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  2. Ora aqui está um belíssimo artigo, como água fluente e límpida, diria até com um acento de superior didáctica. A questão da motivação, da conversa (por oposição à diversa), o saber ouvir antes de falar (regra que já os pitagóricos, nos primeiros graus, observavam), passando pela expressão de Abd el Qader “Deus enuncia certas verdades através de pessoas que não são dignas, a fim de as dar a conhecer àqueles que são dignos”, até à natureza «implícita» da relação mestre-discípulo, no Ocidente – distinta, em tudo, da mesma, no Oriente, em que o discípulo não deve desobedecer (!) ao mestre, nem que seja no modo de pensar - enfim tudo isto, ou seja, este artigo elucida os que possam não estar muito informados sobre o espírito da fala na tradição da filosofia portuguesa (os apóstolos conheciam Cristo pelo som, pela veracidade do timbre singular do seu Verbo) e é sempre um ponto de reflexão para os que já estão mais dentro do espírito de tertúlia filosófica. Oportuno este artigo. Obrigado ao Pedro Sinde.
    Eduardo Aroso

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