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quarta-feira, 24 de março de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 53

Cartas da Alma ao Espírito
Cartas de Noé para Nayma / Carlos Aurélio. Lisboa: Zéfiro, 2010
Pedro Sinde

Este novo livro do pintor, do escritor, do fotógrafo, do escultor Carlos Aurélio vem relembrar a importância de restabelecer o diálogo entre a alma e o espírito ou entre a filosofia e a religião.
Numa época em que os homens se envergonham de se dizerem crentes e, mais ainda, de se dizerem praticantes de uma religião; numa época em que muitos abandonaram o Catolicismo, muitas vezes por causa das complicações em que se tem metido a própria Igreja (levando ao afastamento de grandes almas); neste tempo, pois, o autor assume-se logo de início como católico. Uma afirmação destas só se faz com coragem e implica naturalmente um compromisso e uma responsabilidade. Os crentes que estejam conscientes disto colocam-se, certamente, nas mãos da misericórdia divina. Mas aqueles que se afastam, também.
Estas cartas são notáveis a vários títulos e gostaria aqui de destacar apenas aqueles que me parecem os mais importantes. Antes de tudo o mais trata-se de um livro que se lê com muito prazer: escrito em forma de cartas íntimas, logo somos chamados para o quotidiano de alguém que procura, nesse dia-a-dia, relacionar estes três aspectos: o corpo, a alma e o espírito, vertidos e vestidos respectivamente no fecundo diálogo entre a vida quotidiana (o corpo), a filosofia (a alma) e a religião (o espírito). Assim, como se antevê já, este diálogo não fica numa abstracção, antes procura encarnar na vida, quer dizer, orientá-la e iluminá-la, torná-la encarnada ou vermelha isto é, dar-lhe sentido, levá-la ao rubro.
A religião esconde no seu seio, providencialmente, as ressonâncias e as chaves de que quase todos necessitamos para despertar o intelecto passivo. Estas ressonâncias são os símbolos; estas chaves são a oração. A filosofia pode e deve iluminar a demanda simbólica e a oração, que se transformará, assim, gradualmente em filosofal e metafísica, tornando-se viva e vibrante, depurando a emoção e purificando, assim, o corpo ou o quotidiano.
Carlos Aurélio coloca-se sob a protecção de Santa Catarina de Alexandria, como vemos nas duas datas nucleares que abraçam o livro; Santa Catarina é a protectora ou a inspiradora dos filósofos e a sua vida exprime justamente a relação equilibrada entre a filosofia e a religião: não poderia, por isso, haver melhor protectora para um livro que procura, ele mesmo, recordar esta relação.
Outro aspecto importante que ressalta destas cartas, sobretudo nos dias que hoje vivemos, é o da sacralização do tempo. Escrito ao longo de um ano litúrgico e tendo cada carta como base uma reflexão vivenciada da Liturgia da Palavra na missa, cada carta toma essa leitura como ponto de partida livre, o que significa que cada carta dá origem a uma meditação que resulta numa espécie de pensamento em voz alta. É esta vivência, de semana para semana, deixando que a Palavra do Espírito semeie na Alma do Corpo a vida poética, que permite, em parte, a sacralização do tempo, quer dizer, uma espécie de iluminação dos dias da semana, tendencialmente profanos, pela palavra sagrada do Domingo, como se a religião inspirasse o mote que a filosofia glosa. A religião tem particularmente este poder de conferir um aspecto qualitativo ao tempo profanado pelo homem; digo ‘tempo profanado’, porque a natureza do tempo é ela mesma sagrada e qualitativa, é o homem profano que a faz decair, decaindo assim ele mesmo.
Este belo livro, que se pode ler carta a carta, de modo sistemático ou até ao “acaso”, pode acompanhar todos quantos andam na demanda do espírito, pois aqui, neste livro, encontrarão um companheiro.

1 comentário:

  1. Belíssimo e inaugural este livro de Carlos Aurélio, na senda da portuguesa filosofia.
    Meditação sobre e ao longo do tempo litúrgico,
    o autor é uma das vozes aurorais do pensamento português contemporâneo.

    Avelino de Sousa

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