A Língua Portuguesa: Universalidade e Regionalismos
Romana Valente Pinho
Em 1913, quando Fernando Pessoa ainda nem sequer tinha escrito uma das suas frases mais reconhecidas (“Minha pátria é a língua portuguesa”), António Sérgio escrevia, do Rio Janeiro, para o seu confrade Raul Proença: “A Pátria, para mim, tem um significado exclusivamente humano e ideal: é uma comunidade de língua, de poesia, de história, de costumes, de sentimentos, de vo[nta]des; o meu patriotismo é como o dos Judeus, que não têm esse vínculo da terra. Nascidos ou não em Portugal, como disse nos Golpes de Malho, são para mim verdadeiros portugueses todos os súbditos d’el rei Camões”[1]. Esta suposta universalidade da língua portuguesa esboçada por António Sérgio, no início do século XX, será defendida por muitos outros autores conterrâneos seus, apesar de Fernando Pessoa alcançar, entre todos eles, ainda que tardiamente, uma expressão maior. Ora, a partir do trecho supra citado, a questão que se levanta, naturalmente, é a da natureza dessa mesma universalidade. De que universalidade está, afinal, Sérgio a falar se, sete anos depois, também numa missiva endereçada a esse seu amigo escreve: “O Brasil tem 30 milhões de habitantes, Portugal 6; dentro de pouco o Brasil terá talvez 60, e nós, na metrópole, pouco poderemos aumentar; nestas circunstâncias, recomenda o patriotismo que, se queremos ter império espiritual no mundo, esbatamos quanto possível as separações no instrumento da unidade espiritual da metrópole e suas colónias, dependentes ou independentes; e para isso: a) combater o regionalismo linguístico na literatura, tanto em Portugal como no Brasil, defendendo uma língua geral literária em cada um dos dois países; b) intercambiar as línguas gerais dos dois países, introduzindo em Portugal os vocábulos gerais e literários do Brasil, introduzir no Brasil os vocábulos gerais e literários de Portugal”[2]? Parece-nos que o ensaísta se refere claramente a um “império espiritual no mundo” do qual fazem parte todos os “súbditos d’el rei Camões”. Esse Império é a Língua Portuguesa, viva e escrita, embora limpa de todos e quaisquer regionalismos. É um código universal, que une sobretudo portugueses e brasileiros (apesar de Sérgio aludir às colónias portuguesas, apenas se atém ao Brasil – talvez porque o considere uma futura potência linguística), de cariz estritamente literário. Quem escrever em português, escreverá por meio de um código cristalino, indubitável e não regionalista. Julgamos, todavia, que um pensamento desta natureza acarreta, pelo menos, dois problemas: o primeiro diz respeito ao conceito de universalidade em si. Trata-se de um universal que não engloba o particular; o segundo é concernente à extensão do regionalismo. Não pertence, ao fim e ao cabo, o regional ao universal? Como poderemos afirmar que autores, assumidamente regionalistas, como Mia Couto, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna ou Miguel Torga, por exemplo, não são universais? Melhor dizendo, não são portuguesmente universais?
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[1] SÉRGIO, António. Correspondência para Raul Proença. Organização e introdução de José Carlos González. Lisboa: Biblioteca Nacional, Lisboa, 1987, pp. 77-78.
[2] Ibidem, p. 152.
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