
Pedro Martins
No último domingo, fui ver, pela segunda e derradeira vez, a exposição que está patente no Museu Nacional de Arte Antiga, intitulada Encompassing the Globe – Portugal e o Mundo nos séculos XVI e XVI. Movido pela curiosidade, já ali estivera em meados de Julho, num dia de semana, pouco depois da inauguração. Mas, dada a estreiteza de horários, apenas tivera a oportunidade de empreender uma visita sumária ao acervo que reuniram no último andar do Anexo. Na altura, formei uma má impressão daquilo que, a voo de pássaro, me fora dado observar. Agora, pude comprovar a opinião negativa. Com tempo, e a frio – como convém. À entrada do museu, vencida a porta que dá para o Jardim 9 de Abril, a presença tutelar de um cartaz do Turismo de Portugal faz-nos esperar o pior. A este propósito, é bom que se saiba que, com o pagamento de uma taxa devida à Smithsonian Institution, luminária americana que engendrou a ideia, e com as despesas de divulgação do evento em Portugal e no estrangeiro (sobretudo em Espanha, pois então!), saíram 500.00 euros dos cofres públicos. E para quê? Para que possamos apreciar “a riqueza da perspectiva inscrita pelos comissários científicos da exposição”, a qual, afiança o portal do MNAA, nos “mostra Portugal como pioneiro absoluto da actual era de globalização de conhecimentos”. Santo Deus! Por quem nos tomam?! Qualquer pessoa medianamente culta sabe o que Jaime Cortesão escreveu em O Humanismo Universalista dos Portugueses (um livro notável, há décadas esgotado, e que a Imprensa Nacional-Casa da Moeda persiste em não reeditar). Isto, por exemplo: “Metrópole do Mundo, Portugal criou, de certo modo, cidadãos do Mundo. Formou-se nesses homens, ao contacto múltiplo dos povos peregrinos, uma consciência nova e unitária da Humanidade. Neles, nas suas obras e nos seus actos, raiou pela primeira vez a vasta e complexa compreensão do humano, na sua riqueza e diversidade. Do humano, em todos os continentes e em todas as raças. “Aqui reside a diferença essencial que distingue o humanismo, nascido do Renascimento greco-latino, localizado no espaço e na Antiguidade, e o humanismo português, integrado no seu tempo, inspirado em todas as culturas do planeta e, se não formando inteiramente, reunindo os elementos de formação do espírito moderno.”
Ou isto: "Humanismo mais pragmático e moral do que filosófico e crítico, ele, dissemos nós, não era apenas uma ideia. Era menos e mais do que isso. Era uma regra de conduta. Um temperamento moral. Uma cultura em acção. O sentimento duma unidade humana a realizar, quer pela fé, quer pelo conhecimento e pelo amor. E só os que se misturaram intimamente à grande aventura do Descobrimento, às influições de outros climas, outros astros e outros povos, o sentiram, o encarnaram e o definiram.”
Creio que estamos conversados. Não será um remoto colégio de cientistas anglo-saxónicos a trazer novas e mandados em questão de sobejo desbravada. Para mais quando a maioria das peças agora exibidas integra há muito as colecções nacionais.
Claro está que há sempre o perigo de, com a expressão globalização de conhecimentos, se querer significar a abominável locanda planetária em que a filosofia nórdica, manu militari, vem transformando o orbe, caso em que o embuste evidente deve ser denunciado. Nos painéis museográficos que introduzem os diversos núcleos de Encompassing the Globe, curtos textos informativos tendem a reduzir os Descobrimentos Portugueses a uma gigantesca empresa comercial – posto que, aqui e ali, se conceda o registo de alguns feitos de ordem científica e diplomática. Como quer que seja, não fora a presença, na exposição das Janelas Verdes, de um importante conjunto de testemunhos relativos à missionação, pouco – ou nada – nos seria dado ler sobre a dimensão espiritual da gesta grandiosa dos portugueses, a despeito de nela se exibirem inúmeras peças de imediata significação religiosa. Que os Descobrimentos, obra irrealizável sem o concurso de judeus, cristãos e muçulmanos, visavam a realização da Cristandade universal, na intenção do Quinto Império, mostraram-no à saciedade os hermeneutas da tradição portuguesa. A exposição oblitera, por inteiro, este aspecto decisivo. É indecente o enlevo acrítico com que, no portal do MNAA, se acolhe o texto de um artigo publicado no New York Times aquando da exposição realizada em Washington, em 2007. Aqui transcrevo o arrazoado do plumitivo norte-americano: “A little-known fact: A version of the Internet was invented in Portugal 500 years ago by a bunch of sailors with names like Pedro, Vasco and Bartolomeu. The technology was crude. Links were unstable. Response time was glacial. (A message sent on their network might take a year to land.)” Dificilmente se explica a um yankee que o desvelamento amoroso da Natura nada tem a ver com a Internet. A prática eólica dos navegadores portugueses estava nos antípodas da cosmologia de violência de que a rede constitui hoje um insidioso expoente. Dessa convivência sem mácula com que outrora soubemos, por vezes, lidar com o mistério fascinante dos seres, veio a abolição pioneira da pena de morte, há quase século e meio, a constituir uma das derradeiras emanações. Em princípio, isto seria já o bastante para que nos limitássemos a olhar de alto, e de soslaio, para os pobres americanos. E, no entanto, é o que se vê... Quem nos virá salvar deste nosso jeito bisonho de basbaques?
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