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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 28

Cynthia Guimarães Taveira





A Paisagem
Os cenários assim olhados são paisagens interiores. Essa cidade que desliza sobre os nossos passos é a cidade incrustada nas paredes das nossas telas. A contemplação é íntima, é demanda ao íntimo tão íntimo que não nos é dado a conhecer. As montanhas são abismos virados ao contrário caindo sobre o nosso deserto e o mar verte-se no céu. O pintor quando olha já pincela e corrige o mundo no coração. É o erro que gera o pintor. O erro do ângulo, o erro da cor, o erro da luz que poderia ser outra. E é a exactidão que o redime.
O momento da folha de bambu balouçando ao vento é o outro momento do pintor que balança também mas mais um pouco. Mais um pouco de verde, mais um pouco de azul e eis o céu, o verdadeiro céu porque o outro.
Ele olha o mundo mas não o quer, ele ama a paisagem mas não a retém. Invade-a, conquista-a, encanta-a, descobre-lhe a alma e deixa-a elevar-se quase só. No instante em que lhe dá vida, dá-lhe também a liberdade. Coisas de demiurgo. Sussurros amenos em dias de tempestade…

1 comentário:

  1. O PINTOR DA PAISAGEM DECADENTE

    O pintor coça o couro cabeludo com os dedos coalhados pelas tintas do universo em que plana. Olha para a grande tela que é a parede do seu quarto e balança o pincel ao som de um fole que lhe respira o pensamento. Sente-se possuído pela força demoníaca de uma paisagem urbana decadente. Repara que as outras paredes estão cobertas com flautas de bambu silenciosas. Nunca aprendeu a tocá-las. O pincel soa como um vendaval de cores catastróficas que se arrojam aos arranha-céus da imponência destrutiva e semeia as ruas com as dores pungentes da civilização falida. Cada pincelada na tela é a lava de um vulcão humano, na combustão da vida. Os olhos desorbitados do pintor transformam o seu pincel no magma que besunta o urbanismo da intolerância espacial e subverte qualquer paisagem que se esgueire à ferocidade da sua tempestade cruel.
    O pintor observa a paisagem do universo que se espalha pelo rio sangrento das suas veias e sente que o seu coração é um tambor que soa nas florestas urbanas do medo e numa pincelada de coragem desfaz toda a paisagem corrompida que o devora com o pranto da beleza perdida. O pintor larga o pincel, entorna as cores por tudo quanto é quarto e descobre, num momento de lucidez, que habita a paisagem da complexidade inexplicável. Com um derradeiro olhar, despede-se do quarto, veste um casaco esfrangalhado e foge para a rua com o assombro de quem nunca compreendeu em que paisagem vivia.

    Oeiras, 05/11/2009 – Jorge Brasil Mesquita

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