(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quinta-feira, 30 de setembro de 2010

REENTRAR NA «CATEDRAL», 9

Maternidade
Isabel Xavier

Esperava um filho e naquele dia orou
Sentiu-se em comunhão com o Universo
Cresceu em si rara força, chorou
Procurou papel e lápis, fez um verso

E nele colocou toda a força do seu estado
Sentiu-se mais que o mundo, só Amor
Sabia de antemão qual o sítio, qual o lado
Onde a levava aquele medo, aquela dor

Saber-se e em si o ente que sentia
Mover-se em si como algo de divino
Conhecer em seus gestos o que havia
Já, antes ou depois do que adivinho

Ser a verdade essencial ou parte dela
De forma única que mais ninguém conhece
Mística partilha mais do que aquela
Em que dois são um e um só vence

Com sua força as amarras que há no mundo
Não há amarras que prendam uma mãe
Que, passo a passo, vai chegando ao fundo
Do mistério maior que a vida tem

Algo distinto e muito mais do que ela
Transmissão de sentimentos, alquimia
Espelho de luz que em si luz enquanto vela
Por aquele novo ser que em si vivia

O ar, o céu, a terra, o mar
De todos eles se sente aparentada
E em cada gesto ou passo que vai dar
Há a firmeza que conhece o tudo e o nada

Nada no mundo a isso se compara
Estava viva de uma forma nova e mágica
Soube-se a dor que no mundo nunca sara
Porque é fora do mundo que há a trágica

Centelha de espírito que se anima
Quando viver é sinónimo de amar
E nascem as palavras com que rima
A verdade que um dia há-de reinar.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

terça-feira, 28 de setembro de 2010

RAZÃO POÉTICA, 7


_________
Isabel Xavier ou a arte de sentir*

Para os Teoremas de Filosofia, um dos maiores acontecimentos espirituais foi sem dúvida o de ter sido editado sob o seu patrocínio o livro de Isabel Xavier Catedral. Isabel Xavier tem colaborado nos Teoremas com algumas poesias. O livro é ilustrado por outro nosso colaborador, o pintor de Vila Viçosa Carlos Aurélio. São dois nomes que não dizem nada ou pouco mais que nada ao público culto, mas que são de dois espíritos verdadeiramente interessados pelo que mais importa.
Os poemas de Isabel Xavier pertencem àquela espécie que Eugénio de Castro, discípulo português do rosa-cruz Péladan, caracterizou como oaristos pelo nome do livro que o tornou célebre. Saber tudo quanto se implica nesta designação constitui o melhor comentário de Catedral.

A palavra oaristo não é de uso comum, até entre os literatos ocultistas que lêem e admiram o poeta rosa-cruz. Quem a elevou àquele plano em que a palavra se torna pensamento e o pensamento se faz luz foi Álvaro Ribeiro. Usou-a como a palavra mágica capaz de desvendar os segredos da linguística, até agora encobertos por uma ciência mais preocupada com a linguagem plebeia do que com as formas que a língua recebe quando trabalhada por mentes superiores.

“Cada idioma, escreve o insigne filósofo na página 178 d’A Razão Animada, é um órgão invisível que pode ser configurado mediante sinais gráficos e tipográficos, mas que exerce também funções indiscerníveis pela análise literal ou gramatical. No âmbito de cada idioma vão dialogando os seres humanos, e realizam conhecimento ou ciência, na medida em que continuam a relação de espírito a espírito. Fácil será inferir, portanto, que o diálogo mais profundo, de maior alcance gnósico, sófico e pístico, tem a designação clássica de oaristo”.

Qualquer dicionário nos diz que oaristo é o amor conversado, a conversa que precede, acompanha e amplia a união dos amantes, do amigo e da amada. Seu alto paradigma é o Cântico dos Cânticos. Aquilo que, vivendo o seu romance, eles murmuram, ciciam ou falam “humaniza a vida erótica para a transformar em vida de amor”. Continua Álvaro Ribeiro: “O ritual, por intermédio do mito, daquilo que se diz, vai até à porta do indizível, ou do mistério, e assim ascende à dignidade da liturgia. Sem palavras valorativas de bondade, de beleza e de verdade não pode haver linguagem comunicativa de graça entre os amantes.”

Sublinhamos “à dignidade da liturgia” para lembrar que, durante o sacramento do matrimónio, os ministros são os próprios noivos.

Há, nas linhas transcritas d’A Razão Animada, o princípio de uma teoria do conhecimento que, existente já, embora por modos e expressões diferentes, em Sampaio Bruno e em Leonardo Coimbra, em Álvaro Ribeiro se compõe com uma forma superior de linguística à qual convém chamar, com inteira propriedade, oarística.

A analogia do amor com o conhecimento é uma das linhas de força da tradição judaico-cristã, como se vê pelo Génesis onde se diz que Adão conheceu Eva, isto é, se uniu sexualmente com ela (depois do pecado original, convém dizer-se) e como se vê pelo Evangelho, no relato das bodas de Canaan, quando Cristo a pedido da Mãe transformou a água em vinho.

Por tudo isto se compreende como para Álvaro Ribeiro, pensador da tradição judaico-cristã, o conhecimento seja, como a etimologia ensina, “uma relação de sujeito a sujeito, e humanamente uma relação social de espírito a espírito”. É o que nos diz a página 151 d’A Razão Animada, após ter sido afirmado que as gnoseologias dualistas se lhe afiguram incapazes de explicar o conhecimento pelas relações do Sujeito como o Objecto. Nesta relação, o dualismo resolve-se por redução a um monismo. Ou o sujeito cria o objecto e temos o idealismo ou o objecto reflecte-se no sujeito e temos o materialismo. Há, no primeiro caso, uma assimilação do objecto pelo sujeito, e, no segundo caso, uma assimilação do sujeito pelo objecto. As filosofias germânicas e suas adjacentes, onde, como se sabe, aquela relação, (S – O) é predominante, lidam com uma forma de conhecimento que, por analogia, podemos explicar, recorrendo de novo à Bíblia, como a manducação assimilante do fruto proibido e, por conseguinte, como um acto de baixa magia. Esta linha de pensamento afirma o valor do pecado original e vai levar a ideia, pelo seu prolongamento em ciência do bem e do mal e em tecnologia, até às últimas consequências no domínio da biologia. O oaristo acaba quando as palavras degeneram da imaginação para o sensualismo, tendendo a cingir a mulher como objecto, em vez de por metáfora formarem, analogia com o que acontece no Cântico dos Cânticos. Agostinho da Silva, outro discípulo maior de Teixeira Rego e de Leonardo Coimbra, escreveu algures que só se amam verdadeiramente o homem e a mulher que se amam em Deus. O que equivale a dizer o que os mestres de Cabala ensinavam: há três associados que presidem ao concebimento de uma criança, Deus, o pai e a mãe.
A elevação, proposta por Álvaro Ribeiro, da linguística a oarística funda-se na ideia de que, nas formas superiores de linguagem em que se exprime o sobrenatural, todos os fonemas, todos os verbos, todas as frases se devem compreender como uma misteriosa conversa entre o amante e a amada, até quando ali pareça que se fala de outra coisa. É isso que nos permite ver na poesia de Isabel Xavier um oaristo continuado, até quando pareça não falar do amor. E tudo isto por virtude de um dom feminino raramente tido. Isabel Xavier pensa com o sentimento.

António Telmo
_________
* Publicado originalmente no n.º 7 da revista Teoremas de Filosofia (Primavera de 2003); e depois em Viagem a Granada (Lisboa, Fundação Lusíada, 2005).

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

REENTRAR NA «CATEDRAL», 8


Olhar
Isabel Xavier

Na ternura do teu olhar
Quando para mim olhaste aquele dia
Eu vi a terra, o Céu e o Mar
E nunca mais pude vê-los como os via

Desde esse mágico momento
Em tarde impassivelmente calma
Cessou em mim meu pensamento
Suspendeu-se em mim a minha alma

Não me possuo, não me reconheço
Em redor de mim tudo é estranheza
Dos passos que percorro desconheço
O fim ou o caminho que lá chega

Não sei o sentido do que faço
Mas se faço sei que tem algum sentido
Na penumbra que me envolve neste espaço
Procuro-me no que em vão tenho vivido

Bate à minha porta o desalento
Mas tenho o teu olhar p'ra recordar
Na memória daquele único momento
Sempre que olho a Terra, o Céu e o Mar.

O CAMINHO DO CAMINHO, 16

Cynthia Guimarães Taveira



Retratos
A tua casa não tem fotografias, observava o amigo. Pois não, respondia enquanto pensava no “porquê” dessa ausência. No Caminho do Caminho, no seu mais íntimo percurso, havia uma incapacidade de lidar com o seu passado. Quando olhava para trás, honestamente, parecia nada ter ficado resolvido e, quanto ao arrependimento, arrependia-se de uma série de coisas, umas mais graves, outras quase inofensivas. Não era o sentimento de culpa, era o arrependimento na sua forma mais pura. Nao gostava de olhar para trás, para a sua vida. Se um dos seus temas preferidos era História dos povos, das suas convulsões e pacificações, quanto à sua vida, alguma coisa o fazia arrepiar-se quando via um retrato seu. O momento, assim cristalizado no papel, parecia não mais voltar e isso provocava-lhe uma angústia demasiado próxima do sofrimento. Esta incapacidade de viajar no seu próprio tempo tinha bem presente a consciência de não conseguir resolver coisa nenhuma. A vida era um constante puzzle com peças ausentes ou pouco nítidas. Era a consciência da sua infinitude que o levava a não se conseguir confrontar com todas as suas acções finitas, encarceradas em contextos sempre demasiado apertados e delimitadores do seu raio de acção.
Não usas relógio, observava o amigo. Não, justificando-se: o tempo flui, sem medida. Todo o universo é mensurável, apenas o tempo é metido à força em relógios porque, não existindo, existe, e, existindo, não existe. O espaço é o corpo, próximo ou longínquo, o tempo é incapturável como a alma: aproxima-se a uma velocidade vertiginosa e escapa-se-nos por entre os dedos com a mesma rapidez. Estamos sempre no centro da ampulheta e, nesse ponto, somos apenas a passagem por onde o tempo flui. O tempo usa-nos, mas não somos o tempo.
Estranhava aquelas pessoas que diziam, com orgulho e com um brilho nos olhos, “não me arrependo de nada”. Como, se a vida era um constante arrependimento do que somos e não fomos, do que somos e não ousámos ser, do que somos e desejamos ser, do que somos e não somos? Ao nascer já somos arrependimento daquilo que não nascemos. Não somos a causa do labirinto, somos o labirinto. Não nos perdemos no labirinto, provocamos, a cada minuto, múltiplos novos labirintos: eles nascem naturalmente a partir das noções de distância que nos separam do acto e da potência, do sonho e da realidade, do humano e de Deus.
Um simples retrato tinha tantas implicações, sentimentais, filosóficas, que preferia não o ver. O retrato era sempre a consciência da sombra da sua vida, o lado negro da meditação, o encontro com a ilusão, o sabor amargo da finitude. A memória em palavras era sempre menos crua, mais subjectiva, mais fantasista, a memória em imagens era sempre um choque para o qual nunca estava preparado porque se arrependia de tudo e a ausência de tempo era a sua única possibilidade de fuga do irresolúvel.

domingo, 26 de setembro de 2010

PARA LER: FUNDAÇÃO ANTÓNIO QUADROS HOMENAGEIA ANTÓNIO TELMO


Evocação. A Fundação António Quadros homenageia a memória de António Telmo, dedicando-lhe inteiramente a sua newsletter n.º 15. Textos da autoria de Mafalda Ferro e António Quadros Ferro, uma carta inédita de António Telmo a António Quadros, raras fotografias que dão testemunho de um encontro do grupo da Filosofia Portuguesa no Vale do Infante, em 1983, por ocasião do centenário do nascimento de Leonardo Coimbra e um artigo com que António Telmo colaborou no jornal 57 contam-se entre os óptimos motivos de interesse que esta publicação apresenta.

sábado, 25 de setembro de 2010

REENTRAR NA «CATEDRAL», 7



Rosa
Isabel Xavier

O vermelho que naquela rosa existe
Causou-me espanto quando há pouco o vi
Não sei se me senti alegre ou triste
Nem sei bem dizer o que senti.

Tudo em mim mudou, ficou diferente
E nem olhar segunda vez ousei
A rosa lá, em seu vermelho ardente
E eu parada no momento em que a olhei .

Se um novo olhar quebrasse esse feitiço
Que pecado maior podia haver?
A rosa, o sol, os campos, tudo isso
Lembram-me quanto sou pequeno ser.

Há sensações únicas na vida
Quisera saber guardar esse momento
Quisera em sua força desmedida
Poder ancorar meu pensamento

Tudo passa, cada instante traz
Um novo instante, igual e diferente
Mas só pode julgar que tanto faz
Quem em si traz a alma doente.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 100


António Telmo*
Pedro Sinde
António Telmo (1927-2010). Em Estremoz, onde escolheu viver desde 1976, todos o conheciam por Professor Telmo. Os alunos que passaram por ele nunca se esqueceram das suas aulas. Assisti a muitos destes reencontros, enquanto passeávamos no largo de S. João (como insistia em chamar, à antiga, ao largo do Rossio), quando algum desses alunos se cruzava casualmente com ele, saudando-o carinhosamente e relembrando algum dos episódios invulgares que enchem a sua vida; como aquele, por exemplo, de ter desafiado para um “torneio de fisga” um aluno indisciplinado: “quem ganhar, manda na sala”, disse ao aluno. E o Professor ao mesmo tempo que ganhou o “torneio” conquistou o respeito do aluno. Tinha uma pontaria magnífica; por causa disso, em novo chamavam-lhe Guilherme Telmo.
Foi um jogador de bilhar e um caçador exímio; nos últimos anos, porém, sobre a caça, exclamava muitas vezes “como é que eu fui capaz?!…”. Agora, deleitava-se a contemplar nesse mesmo largo os pombos no seu voo circular, “para os fazer viver e já não para os matar”, como me disse numa carta.
Quem o visse no Águias d’Ouro estaria talvez longe de imaginar que escrevia um dos muitos livros que o tornariam famoso: a sua História Secreta de Portugal ou o Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, a Filosofia e Kabbalah, mais recentemente, a Viagem a Granada ou ainda as Congeminações de um Neopitagórico. O Águias não deixará seguramente de assinalar este facto.
Foi um dos melhores amigos de Agostinho da Silva, que o levou para Brasília com o fim de leccionar na Universidade nascente. António Telmo recordava saudoso esse tempo em que Agostinho da Silva, nos passeios que davam juntos, se punha a sonhar, contemplando um lugar no mato: “aqui ficará um monge cristão, ali um sufi e ali um monge zen”.
António Telmo é um dos expoentes da escola da filosofia portuguesa. Discípulo de Álvaro Ribeiro e José Marinho, imprimiu a este movimento uma originalidade magistral. A direcção do seu ensino ia no sentido de acentuar a ideia de que o pensamento deve fecundar e transformar a vida; a isso chamou, logo no seu primeiro livro Arte Poética, “filosofia operativa”. As tertúlias que orientou tinham sempre esta componente “operativa”, o pensamento tinha como corolário o aperfeiçoamento do comportamento ético, artístico, iniciático.
Outro ponto a destacar do seu ensino é o seu amor a Portugal. Reconhecendo a situação calamitosa que vive Portugal presentemente, nunca deixou, no entanto, de o amar e defender em todos os seus livros: estudou magnanimemente a sua arquitectura, a sua história, a literatura, a filosofia e até a língua.
Sempre procurou, como se pode ler numa nota biográfica que acompanha alguns dos seus livros, “estar de pé sobre a extensa planície, a toda a volta, com a sua sugestão de liberdade e de infinito.”
Morreu um homem livre.
____________
* Este artigo foi originalemente publicado na edição de 16 de Setembro de 2010 do jornal Brados do Alentejo, de Estremoz. O título que agora lhe foi dado é da responsabilidade do editor.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

NO PRÓXIMO SÁBADO, ÀS 15:30, NA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE ALCOCHETE

Colóquio. O centenário da proclamação da República oferece o pano de fundo ao colóquio que se realiza no próximo sábado, dia 25, pelas 15:30, na Biblioteca Municipal de Alcochete, e no qual serão oradores António Carlos Carvalho ("A Monarquia e o Rei") e Pedro Martins ("Teixeira de Pascoaes e a República").
A sessão, durante a qual serão apresentados Singularidades, segundo volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante, e o quinto número da Nova Águia, sobre Os cem anos d'A Águia e a situação cultural de hoje, contará ainda com a presença de Renato Epifânio, director desta revista, e que também integra o círculo dos Cadernos.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 99




Portugal
ou doce cantiga da noite dos tempos
Teresa David

Antiquíssimo braço
Antiquíssimo abraço
de mar
nascidos da Luz
nascidos da Cruz
Semi-dizer
De Esplendor
em Flor
pedras

voz perdida
voz reencontrada
guia-nos
para e por essa
constelação
de dizer
secretamente
Apenas,
conduz e roda os dedos
para a romã
do Amanhã

EXTRAVAGÂNCIAS, 98


A República dos objectivos ou dos ideais?
Eduardo Aroso

Embora a discussão em torno das ideias de república, de monarquia constitucional e parlamentar para Portugal continue a ser legítima, e considerando que é muito remota, no plano mundano, a possibilidade de implantação de uma qualquer monarquia (quebrada que foi a nossa tradição), torna-se de certa maneira obsoleto falar tanto da república pela república, ou, como fazem alguns, da república contra a monarquia, ou vice-versa, ao invés de plasmar um sonho, abordar a organização de um grande projecto, em suma, recuperar a alma do Povo, esse oxigénio vital para “respiração” de qualquer forma de governação.
Nestes últimos meses tem surgido um desarrazoado de situações que se tecem à volta do que de bom e de mau tem sido a república. Fica-nos a sensação de uma espécie de ser que nasceu com malformações tais que todos lhe pegam ao colo, mas ninguém a quer curar das maleitas.
Se é certo que A República de Platão, continua a ser o paradigma (ideal) do que ainda não foi atingido – de lá para cá, consideremos, se quisermos, as novidades da Revolução Francesa - e que pensar os antecedentes da república, o seu aparecimento e a sua existência em Portugal (que quase todos contam por 100 anos e outros por cento e tal!) nos pode conduzir a encontrar mais claramente o fio de Ariadne da nossa História, colocar frente a frente república/monarquia, militando ardorosamente na primeira, é como dizer que os homens e mulheres dos cinco continentes pertencem à espécie humana!
Ser republicano é pertencer à grande maioria, mas por assim ser é que, justificar isso, não é culturalmente razoável. Importa – sobretudo isto – não sufocar a beleza da diferença, que, na minoria, pode clarificar o que de bom e de mau há no chamado espírito de maioria.
A aparência de um céu nocturno, no mesmo local de observação e na mesma época do ano, povoado por uma imensidade de corpos luminosos, apresenta-se-nos de modo diverso se por ali passa um solitário cometa ou se dá outro fenómeno astronómico minoritário, mas, sucedendo, susceptível de proporcionar uma outra visão holística da abóbada celeste.
O que eu quero dizer é que muitos republicanos aprendiam mais sobre a república (ideal) se se debruçassem sobre os fundamentos da monarquia (não as modas) e neste caso teriam que ler, por exemplo, De Monarchia de Dante. Por outro lado, os monárquicos deveriam aprofundar o porquê de «o que está em cima é como o que está em baixo», não se verificando desde há muito nas sociedades modernas, levou ao ensombramento da figura do rei (que, apesar disso, ainda hoje na astrologia é figurada pelo sol) como representante divino na Terra para determinada nação e povo.
Esta oposição república/monarquia não é semelhante a uma outra (embora típica), a de direita/esquerda, nem pelo essencial nem pela discrepância da quantidade de prosélitos ser tão acentuada, sabendo nós a importância dos números e estatísticas para a política moderna, filha amada do positivismo e de todas as posteriores formas de materialismo. Perante a diferença de adeptos de um e outro regime, se à minoria monárquica pode fazer algum sentido afirmar e explicitar as suas convicções, desde que feitas na devida substância – até por razões de esclarecimento de uma larga camada do público que muito desconhece da monarquia - já aos republicanos (os jactantes) é caricato insistir na ideia na qual militam, a não ser para estudar melhor a já citada República de Platão, como medida para evitar, tanto quanto possível, eleitos ignorados por eleitores ignorantes.
Se assim não for, afirmar em 2010 a república pela república, ou contra a monarquia, seria ir dar ao tal exemplo: era uma vez um europeu, um africano, um asiático e ainda dois habitantes dos restantes continentes, que se encontraram para concluírem festivamente que pertencem à espécie humana!
O ditado popular «chover no molhado» podia sair à rua no 5 de Outubro, com a devida ressalva (ou não houvesse excepção para toda a regra) de que nem a chuva é toda a mesma (ácidas e menos ácidas) nem o chão é o mesmo. A chuva que caiu no 31 de Janeiro de 1891 não foi a dos pingos ácidos que se derramaram no 5 de Outubro. Nem este chão era já o mesmo.
Cabe aqui recordar uma publicação de António Cândido Franco, Panfleto contra Portugal, também na intenção de chamar a atenção que sobre este escrito de lúcido pensamento, rico conteúdo e estilisticamente escorrido, caiu um enorme esquecimento de mais de duas décadas (foi publicado em 1989), embora este que escreve já tenha ouvido e lido artigos nestes últimos anos, nos quais, lamentavelmente, frases quase ipsis verbis são ditas e escritas, não havendo referência quanto à fonte. Vamos então (re) ler Panfleto contra Portugal (não se interprete precipitadamente a expressão), Edições Arauto – Jorge Cabrita):
«Há dois níveis de afirmação da República, porque há realmente duas Repúblicas: a proclamada em 5 de Outubro de 1910 em Lisboa e a proclamada em 31 de Janeiro de 1891 no Porto. A primeira actuou no plano político, a segunda no plano cultural. Ela constitui, a meu ver, a única República pela qual vale a pena ainda hoje ser republicano.» (…) «É ela ainda que está na base de algumas declarações republicanas de Fernando Pessoa, ou ainda na actividade cívica de Agostinho da Silva. Só esta República, mais ideal do que real, mais individual do que colectiva, parece ter de facto contribuído para resolver alguns problemas colocados tanto pela dinastia dos Braganças, como pelo constitucionalismo liberal. A outra, a que ocupou em Lisboa o Terreiro do Paço, parece ter sido apenas uma caricatura nova dos problemas antigos».
É por demais conhecida a diferença nítida entre objectivo e ideal. Este foi banido há já muito do modo de vida das sociedades contemporâneas, dando lugar à epidemia dos objectivos actuais que fazem seres humanos infelizes (mesmo cumpridos os tais objectivos) levando até alguns à loucura e ao suicídio. Se acaso tivéssemos que aplicar as palavras objectivo e ideal à república de 5 de Outubro e à de 31 de Janeiro, ficariam bem na respectiva ordem.
É apenas nesta linha de pensamento do que aqui foi entrelaçado que a discussão da república portuguesa pode ter sentido. Alheada do ideal, fora do sentir português, esconjurando a alma do Povo pela inveja e ganância (hoje, plutocrata), mais desmoronando do que cumprindo Portugal, a república dos objectivos (seja a do orgulho só ou a dos cravos, cumpridos e florescidos uns e outros não) continuará à deriva, mesmo com a excelência dos objectivos em Expo (s) 98, de pontes Vasco da Gama e de TGVs.
Entretanto, à república ideal, os sucessivos governos, em raríssimas datas, vão cuidando dos ossários, guardados no canto da História. Para esta pobre e bela república não há verbas e muito menos fundações. Afundados foram já os seus heróis. Mas o Povo também diz que de vez em quando, nas encruzilhadas dos caminhos, «aparecem almas do outro mundo»!
Equinócio de Setembro de 2010.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

REENTRAR NA «CATEDRAL», 6


Lagoa

Isabel Xavier

A lagoa, parada, espelho de água
Reflectia no céu não sei que pensamento
A Natureza em redor escutava
Como que em prece e em recolhimento.

Quem me dera poder apreender
A suave transcendência do momento
Contento-me de a olhar e ver
Não sei ir além do sentimento.

Nas águas calmas contemplo algo que alguém
Antes de mim já viu talvez sem ver
E o seu sortilégio ali me tem
Cativa da Natureza a renascer.

E é nas águas da lagoa que descubro
Algo de mim que nelas já se espelha
Talvez a paz que há tanto em vão procuro
Ou a tranquilidade de me tornar mais velha.

Se ante o meu olhar se dispôs tanta beleza
Foi para que sentindo-a pudesse mais que vê-la
E devagar me chega esta certeza
De que as palavras me foram dadas p’ra dizê-la.

E é tanta a lucidez desse momento
Que me ocorre um pensamento:
Será esta a fronteira da vida
Ou tão-só o limiar da despedida?

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 97


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Crónica sétima da beira-mar
Eduardo Aroso

Na curva da estrada, quase sobre o que resta da muralha de Buarcos, junto à Capela da Senhora da Arribança, aí é que eles se sentam. Não querem a esplanada do café que fica a uma dúzia de metros. De um lado ou do outro, avista-se toda a extensa orla marítima, quase enseada, que vai até à Figueira da Foz. Nas pedras gastas, os pescadores ou o que resta deles naquelas figuras tisnadas de sol e maresia, sentam-se sem horário, mas quem estiver com atenção percebe que eles aparecem mais àquela hora em que as traineiras chegavam ao fim da tarde, rodeadas de círculos de gaivotas; bom augúrio!
Num dia destes, andando eu por ali, estava longe de assistir a uma tertúlia de numerologia, certamente sem intenção dos intervenientes. Era domingo; ouviu-se o sino da igreja de S. Pedro, que também não dista muito da muralha. Diz um dos pescadores:
- Nossa Senhora da Arribança me perdoe, mas da Santíssima Trindade nunca entendi nada!
- Isso só bispos é que desenredam - atalhou um outro.
- Será? Sabes companheiro, sempre ouvimos dizer que «três é conta que Deus fez».
- Pois sim; e quatro é a nossa cruz. A minha bem a sei. E também se não fossem os quatro pontos cardiais, a gente desnorteva no mar, no tempo em que não havia aparelhos...
Naquele grupo havia um pescador que pouco dizia. Era conhecido pelo «Água Morna», tal era a lentidão do seu falar e de todos os movimentos. O certo é que o homem quando se saía com alguma, logo se calavam os outros.
- Vocês não começaram do princípio: do um e do dois. Olhem que o problema do homem e da mulher (o dois) é que é o mais complicado; cá neste mundo, digo eu. Vejam as desgraças que andam por aí! Bom, mas indo pró mar, como é que a gente pode remar? Vá respondam-me!
- Ora como é que há-de ser! Com os dois braços, a estibordo e a bombordo.
- Mas assim é andar sempre cá e lá. E há gente que não passa disto.
- Vamos do dois para o três. O que eu quero dizer é que não basta remar à direita e à esquerda; é preciso remar para cima…

Setembro de 2010

domingo, 19 de setembro de 2010

A REPÚBLICA, 100 ANOS DEPOIS: SEXTO NÚMERO DA «NOVA ÁGUIA» SAI A 7 DE OUTUBRO

Efemérides. Subordinado ao tema A República, 100 anos depois, o sexto número da Nova Águia tem o seu primeiro lançamento marcado para 7 de Outubro, às 19:00, na Universidade Católica do Porto, onde Carlos Magno a apresentará. Cinco dias depois, a 12, e às 17:00, será a vez de o Palácio da Independência, em Lisboa, acolher a apresentação da revista, que estará a cargo de Pinharanda Gomes.
Para além do tema de capa, este novo número da Nova Águia assinala ainda quatro efemérides: o bicentenário do nascimento de Alexandre Herculano; o centenário do nascimento de Miguel Reale; o cinquentenário do falecimento de Jaime Cortesão; e o ano da morte de António Telmo, colaborador da revista desde o primeiro número, e que nos deixou no passado dia 21 de Agosto.

sábado, 18 de setembro de 2010

NO PRÓXIMO SÁBADO, ÀS 15:30, NA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE ALCOCHETE

Colóquio. O centenário da proclamação da República oferece o pano de fundo ao colóquio que se vai realizar no próximo sábado, dia 25, pelas 15:30, na Biblioteca Municipal de Alcochete, e no qual serão oradores António Carlos Carvalho ("A Monarquia e o Rei") e Pedro Martins ("Teixeira de Pascoaes e a República"). A sessão, durante a qual serão apresentados Singularidades, segundo volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante, e o quinto número da Nova Águia, sobre Os cem anos d'A Águia e a situação cultural de hoje, contará ainda com a presença de Renato Epifânio, director desta revista, e que também integra o círculo dos Cadernos.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

REENTRAR NA «CATEDRAL», 5

Jogo
Isabel Xavier

Amo tudo aquilo que se assemelha ao jogo
Como olhar que com olhar se cruza
Vencida distância que se consome em fogo
Chave de porta que não se abrindo, se usa.

Amo a distância que de ti me separa
E não me deixa em mim senão sonhar-te
Amo a saudade de um tempo que pára
À força de não te tendo, amar-te.

Amo a ausência de algo que me falta
Como se me fosse essa a razão da vida
Amo o momento que passando tarda
Como tardando na tarde a despedida.

Amo a impossibilidade, o sentimento
Que vagueia entre o ser e o existir
Lugar cativo que consome o tempo
Cansaço de tudo, vontade de partir.

Amo de um céu com nuvens a altura
Que a elas me impede de chegar
Medo constante, alegria pura
Ou só a certeza de o amor se amar.

HOMENAGEM A ANTÓNIO TELMO NA BIBLIOTECA NACIONAL: AS FOTOS

fotografias de Paula Viotti

Pedro Sinde

entre Miguel Real e Vasco Silva, da Babel

Renato Epifânio

Rodrigo Sobral Cunha


Pinharanda Gomes apresentando a obra O Portugal de António Telmo, perante uma plateia repleta

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 96


Crónica sexta da beira-mar
Eduardo Aroso

A ver o mar, dei comigo a cismar. O verbo na matéria, a precisão fonética. Separar do mar, ou, à maneira de uma lente convergente, juntar o pensamento através do mar? Eu estava sentado numa escarpa; no meu corpo apenas os olhos se moviam pelo focar da visão na distância. De repente, como aqueles grandes clarões das auroras boreais, percebi que o nosso planeta é também corpo do divino, que temos metaforizado no que chamamos Natureza, em vários níveis de entendimento e modos de percepção. A magnitude desse corpo, e no que podemos relacionar com o mundo sensível, mar, rios e lagos só podem ser o seu sangue. Elementos naturais que devem mover-se na flexibilidade que lhes é própria; assentos e canais por onde passam devem estar limpos, pois o que por vezes acontece ao nosso corpo (a.v.c.), também o descuido do homem pode provocar sério dano na natureza, em maior ou menor escala. Entenda-se, todavia, que se diz corpo da natureza, pois quanto à sua alma são outras as relações e mais subtis efeitos.
Eu estava sentado numa escarpa junto ao Cabo Mondego, que só pode ser um osso da terra, ainda que seja, como dizem os clínicos, um osso «exposto». Gerês, Estrela, Lousã e outras serras são tíbias e perónios. Estas expostas ao alto, outros na horizontal, como também o Cabo da Roca ou o de S. Vicente.
A terra é um músculo com muitas nervuras. No corpo humano há centenas deles, como existem variadíssimas qualidades de solos, desde os aráveis aos mais agrestes. Tal como o pão propriamente dito, feito de cereal, é símbolo inequívoco do alimento humano, seja ele qual for, também a hóstia do catolicismo, cuja substância original é o trigo, realiza a transmudação de um elemento natural (cereal) em alimento espiritual. Está de acordo com uma antiga lenda que diz que os países onde não há trigo o cristianismo também não cresce. Compreende-se assim bem melhor o sentido das palavras do sacerdote, no acto dos fiéis receberem a hóstia, quando diz «O Corpo de Cristo».
Só a insensibilidade avolumada do Homem a este corpo tão singular é que o tem impossibilitado de viver plenamente nesta verdadeira epiderme divina. É no ambiente da natureza com o homem, e deste com a mãe de todos os elementos, que a poesia e o pensamento portugueses têm florescido num espírito radical de não agressão, contrariando um modo de vida avassalador que se foi cristalizando em sentenças como esta «conquistar ou dominar a natureza», e que se foram inculcando negativamente nos canais mormente da ciência e da educação. Ou seja, em vez do aproveitamento sábio e amoroso, o ser humano, em muitas situações da vida, tem encarado a natureza como o bicho mais hediondo que é preciso dominar.
Devido à ausência do desenvolvimento científico no passado, hoje alguns podem aceitar uma visão do medonho da natureza, justificando a expressão (que não é tanto de um passado remoto, mas do positivismo europeu) «dominar a natureza». Curiosamente, as chamadas “artes marciais” dizem tão simplesmente que o domínio deve ser em nós, não o do outro. A ciência, embora materialista, veio responsabilizar mais o ser humano para não temer a mãe-natureza como força contra.
Inquestionável foi o contributo pioneiro do português, na era dos Descobrimentos, para uma visão mais científica da vida (na biologia, na astronomia, na botânica e outras), mas ao invés de traduzir o sentimento da natura em conhecimentos matemáticos ou filosóficos, prefere, por exemplo, estabelecer uma relação entre filho e mãe-natureza de maneira directa e sensível, tal nos diz a dulcíssima voz de Frei Agostinho da Cruz «Verei o Criador nas criaturas».
Consideremos, portanto, agora a questão do ponto de vista filosófico e poético. Na obra História Secreta de Portugal e depois em O Horóscopo de Portugal, António Telmo conduz o leitor pelo lado de dentro, ou seja, rumo ao átrio das núpcias alquímicas do pensar e do sentir, para o encontro com a alma da Natureza, com o duplo de todas as coisas e seres irrepetíveis desta, como nos diz a poesia de Pascoaes. Mas, para o exemplo em questão, António Telmo coloca-nos perante a sensibilidade de um poeta português, Carlos Queirós, e de Kant, pensador de estirpe de uma nação triplamente científica, filosófica e poética, mas cuja relação com a natureza é bem diferente daquela do poeta luso. Vejamos:
«Falam-me da beleza de um céu estrelado. Lembra-me um rosto coberto de bexigas (Kant).

«Anoitece.
Faz frio pensar na vida.
E a natureza parece
Dizer em voz comovida
Que o homem não a merece.»
(Carlos Queirós)

Setembro de 2010

terça-feira, 14 de setembro de 2010

AMANHÃ, A PARTIR DAS 23:00, NA RTP2: UM DEPOIMENTO SOBRE ANTÓNIO TELMO

Testemunho. Antecedendo a homenagem da próxima quinta-feira, na Biblioteca Nacional, o programa televisivo Câmara Clara, que vai para o ar amanhã, entre as 23:00 e as 23:30, na RTP2, transmite um depoimento de Rodrigo Sobral Cunha, previamente gravado, sobre a figura e a obra de António Telmo.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

REENTRAR NA «CATEDRAL», 4


Marrana
Isabel Xavier

A sós com o meu pensamento
Sustive um eco de longe no meu ser
Ergui-me como ao encontro do momento
Em que em mim ocorresse o renascer

De um sol de esplendor irradiante
Heróico vencedor da escuridão
Indubitável cais, perto e distante
Entre ondas de inquietude e de paixão

Procurei-me nas rotas desse mar
Que naveguei por me ser dado ver
O farol da esperança a iluminar
A esperança de eu ser um outro ser

Mas a realidade de me tornar diferente
O mundo não me pôde perdoar
E desde então caminho entre a gente
Disfarçando o meu diferente caminhar

Marrana como os judeus de outrora
Vou desbravando a floresta da Saudade
Na esperança de que chegue a hora
Que o regresso do Messias já não tarde

Porque essa espera é a humana condição
De quem o mundo não pode contentar
E prefere olhar o céu em vez do chão
E ainda espreita, às vezes, o luar.

domingo, 12 de setembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 95


Tríptico d'A Vida, de António Carneiro: clique na imagem para a ampliar

Santa dúvida
Eduardo Aroso

Frouxo é o mundo
Das certezas acabadas.
A tarde é livre no sol todo,
A noite grávida do escuro
E a manhã já se levanta.
Entre o ser e o haver
Na dúvida – corda tensa,
A vida canta.

(1998)

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 94



[As duas colunas]*
António Telmo

O insigne filósofo José Marinho, numa belíssima subtilíssima reflexão sobre a obra de Sampaio Bruno, caracteriza-a por este modo: “obra demasiado estranha porque excessivamente familiar – num sentido celeste, noutro sentido bem terrena – traduz com o autor uma família de espíritos da mais remota ascendência a daqueles cuja inspiração mítica, cujo logos formador não está no radioso Apolo, na clara luz solar, mas no divino oculto, nas constelações invisíveis”.
Aquele cujo logos formador está no radioso Apolo, na clara luz solar, é Leonardo Coimbra. Assim, mais adiante: “A luz que orientará Bruno não será, como em Leonardo Coimbra, a luz do claro sol. Sua inspiração vem de longe, não da luminosa tradição teológica e filosófica, mas da tradição secreta. Por isso, não é fácil imagem de adorno falar a propósito de Bruno das “constelações invisíveis”.
Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra aparecem-nos assim como dois vigilantes, dois espíritos despertos, um na coluna obscura do Norte, outro na coluna luminosa do Sul levantando o templo da filosofia portuguesa. Álvaro Ribeiro preferiu falar em duas escolas: “A escola portuguesa de filosofia que Leonardo Coimbra fundou em reacção contra o positivismo dominante no primeiro quartel deste século (o século vinte), tem de comum com a escola, também portuguesa, de Sampaio Bruno a reivindicação do primado da teologia sobre as ciências especulativas”.

(…)
____________
* [Nota do editor] De um fragmento inédito. O título é da responsabilidade do editor.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

REENTRAR NA «CATEDRAL», 3


Palavras

Isabel Xavier

Como se respondesse ao apelo que há na terra
Ou não assistisse à morte do sol, diariamente
Como se o tempo percorresse cada era
Só pela paisagem que a manhã revela sempre

Como se os meus sonhos fossem doutros sonhos
Que nem mesmo em mim ouso sonhar
Vindos de um mundo mais real que os sonos
De quem um sono assim tem que acordar

Como se entre eu e nós fosse a distância
Que há dos sonhos meus ao que outros são
E neles não pulsasse a pura ânsia
Que faz sentir a terra além do chão

Como se com o sol não amanhecesse
Em cada dia a luz da criação
E em cada ser humano não houvesse
Um sentido p’rá luta pelo pão

Como se a simples lágrima vertida
Por alguém que sofre a sua sorte
Não alterasse o rumo de uma vida
E o Amor não vencesse a morte

E da memória não se insinuassem
Por entre as minhas mais longínquas penas
Indizíveis sons que em meus sonhos cruzassem
As palavras que fazem meus poemas.

NO DIA 15, A PARTIR DAS 23 HORAS, NA RTP 2: UM DEPOIMENTO SOBRE ANTÓNIO TELMO

Testemunho. Na próxima quarta-feira, dia 15, e antecedendo a homenagem do dia seguinte, na Biblioteca Nacional, o programa televisivo Câmara Clara, que vai para o ar, entre as 23:00 e as 23:30, na RTP2, transmite um depoimento de Rodrigo Sobral Cunha, previamente gravado, sobre a figura e a obra de António Telmo.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

REEDIÇÃO D'«A LÁGRIMA» DE JUNQUEIRO E EXPOSIÇÃO BIOBLIOGRÁFICA SOBRE O POETA



Norte. Por ocasião dos 160 anos do nascimento de Guerra Junqueiro, e no âmbito do centenário da República, o poema A Lágrima, escrito pelo autor de Os Simples em 1888, por reacção ao grande incêndio do teatro Baquet, no Porto (onde se estima que tenham morrido calcinadas pelo menos 120 de pessoas), vai ser reeditado com a tradicional chancela da Lello, e sob a coordenação de Henrique Manuel S. Pereira. Para além da edição corrente, em formato de bolso, haverá uma tiragem de luxo de apenas 150 exemplares, numerados. Ilustrada por Urbano, esta obra de Junqueiro terá também traduções em castelhano, italiano, francês e inglês.


clique na imagem para a ampliar
A iniciativa resulta de uma parceria que envolveu a Câmara Municipal de Freixo de Espada à Cinta (de onde Junqueiro era natural), a Universidade Católica do Porto e a Lello Editores, e que contou com o apoio da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República. O lançamento da obra é já no próximo dia 15, pelas 18h30, no Auditório A1 da Universidade Católica do Porto – Campus Foz. A apresentação da obra estará a cargo de Luís Machado de Abreu (Universidade de Aveiro).

Nesse mesmo dia será inaugurada a Exposição biobibliográfica Guerra Junqueiro, de Freixo para o Mundo, igualmente coordenada por Henrique Manuel S. Pereira.

Três dias depois, a 18, pelas 17h30, esta nova edição de A Lágrima será apresentada no Auditório Municipal de Freixo de Espada à Cinta.

EXTRAVAGÂNCIAS, 93



Sacer esto
Pedro Martins
(actualizado)

Na sua edição de hoje, a segunda (note-se!) que sai após a partida de António Telmo, o quinzenário JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias não entendeu útil, justo ou necessário dedicar algumas linhas (meia dúzia que fossem) ao desaparecimento do filósofo, e persiste num estranho silêncio, tanto mais inexplicável quanto o triste facto foi noticiado, de forma bem visível, por títulos generalistas como o Público, o Diário de Notícias ou o Expresso.
Por outro lado, e como foi já amplamente anunciado, encontra-se agendada para o próximo dia 16, na Biblioteca Nacional, uma sessão de homenagem ao autor da História Secreta de Portugal, que, segundo julgo saber, será honrada com a presença do Director daquela instituição. Todavia, no portal da Biblioteca, e notadamente na sua agenda, nada se diz sobre o evento*.

Algures em Filosofia e Kabbalah, António Telmo refere-se ao sacer esto lançado sobre Álvaro Ribeiro. Não que eu tenha alguma vez duvidado disso. Mas hoje, melhor do que nunca, vê-se que sabia do que falava.
____________
* Recebi, entretanto, uma explicação para o facto de o portal da Biblioteca Nacional não divulgar o evento de dia 16. Não sendo estritamente relevante, para o caso, dar conta do teor dessa explicação, posso, contudo, asseverar aos leitores que da mesma resulta não haver, neste ponto, qualquer intuito de silenciar a figura e a obra de António Telmo, esclarecimento que uma razão de justiça torna imperioso aqui deixar.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 92



Crónica quinta da beira-mar
Eduardo Aroso

Oficializar o disparate parece ser uma obsessão do homem contemporâneo. Notícia recente: num texto publicado no British Journal of Sports Medicine, médicos da Universidade de Londres defendem que a preguiça deve ser considerada uma doença.
Não me foi possível apurar qual o conceito de preguiça a que se referem. Sem querer que «o sapateiro vá além da chinela», isto é, admitindo que possa haver formas de indolência como sintoma de doença, e tomando também o modo como a notícia é divulgada, aceita-se convictamente que a preguiça é uma doença (coitados dos preguiçosos!). Oficializada a descoberta para governos e desgovernados, temos assim o sustentáculo legal para aplicações legislativas em certos campos da actividade humana, mormente no mundo do trabalho. Mas não só, pois, desta maneira, é possível actualizar a ética, podendo mesmo surgir uma nova forma: a ética light.
Devemos, todavia, admitir que este estudo científico tenha um inusitado alcance filosófico, ou seja, que já entre em linha de conta com o conceito grego de ócio, em que a disposição criativa sopra ininterruptamente todo o santo na vida do ser humano, e assim fica-nos a preguiça como uma desarmonia, a combater talvez com um novo medicamento… Havendo nesta conclusão científica o referido vislumbre filosófico, o do ócio separado da preguiça que, no fundo, vai dar à expressão de Agostinho da Silva, «o homem não nasceu para trabalhar, mas para criar», tudo isto constitui o epílogo da era industrial que adoptou como emblema a frase «time is money».
Só na sociedade do lucro as horas são dinheiro. E neste modo de vida e de pensar não pode ser de outro jeito. Em verdade, em verdade, lembro o que o professor também dizia: «O tempo dá-o Deus de graça». Já agora, como se fosse uma tertúlia, juntemos-lhe a voz do povo que diz «Deus dá pão, mas não miga sopas». Cientes do impacto da notícia, e estando então oficializada a preguiça, é de admitir que um dia destes alguém escreva (cientificamente comprovado) o adágio popular desta maneira: se Deus dá pão, então que migue também as sopas!
Agosto de 2010

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

REENTRAR NA «CATEDRAL», 2



Tempo

Isabel Xavier

Já dissipada está a ficção do tempo
A morte enrolou-se a cada instante
A noite mais longa transporta no vento
Um coro de estrelas em prece distante.

É a hora da penumbra da manhã
Única em que Deus ainda visita o mundo
Todas as restantes horas são a vã
Memória alada de um distúrbio fundo

E há uma profunda melancolia em redor
Não sei se eu a crio se vem ter comigo
Sei que o próprio espaço constrói arredores
Subúrbios indistintos do meu ser, fascínio…

Desconfio às vezes que a loucura é isto
Ouvir-me e em mim outro que fala
Espelho de mim mesma, à vida conquisto
Mas só no destino em que a morte cala

O distante próximo de cada momento
Nada que é completo, vazio de opostos
Do que não chega a ser, o pressentimento,
Suores da alma a alheios olhares expostos

Não sei se do que a alma padece o corpo sabe
Nem se do que o mundo sofre a alma sente
Sei que o vento sopra, a chuva chove e o sol há-de
Romper a noite com sua luz quente!

16 DE SETEMBRO: HOMENAGEM A ANTÓNIO TELMO NA BIBLIOTECA NACIONAL


Lisboa. Nesta sessão, a partir das 18:00, será apresentada a obra O Portugal de António Telmo, organizada por Rodrigo Sobral Cunha, Renato Epifânio e Pedro Sinde, “um livro de homenagem, que o autor teve ainda a oportunidade de contemplar”, segundo uma nota do grupo Babel.
Participam na sessão Pedro Sinde, Renato Epifânio, Rodrigo Cunha e ainda o escritor Miguel Real e o filósofo Pinharanda Gomes. O Portugal de António Telmo inclui textos inéditos do filósofo, dois dos quais fac-similados, fotografias, e testemunhos de outros autores como Orlando Vitorino, num total de 356 páginas.

domingo, 5 de setembro de 2010

O CAMINHO DO CAMINHO, 15

Cynthia Guimarães Taveira


Alegoria da Justiça
, de Albrecht Dürer


A respiração da justiça
Nascera com o estranho dom de sentir no corpo tudo o que se passava no seu país. Se colasse um mapa do seu país ao corpo coincidiam. O país era o seu próprio corpo. Não sabia porque tal tinha acontecido. Nascera fora desse país mas depressa, ainda com meses, fora obrigado a voltar pelas mão do destino. O destino não permitia que ele vivesse numa outra pátria. E assim, por estranhos acasos, um dia deu-se conta de que tudo o que acontecia no seu país de alguma forma tinha reflexos no seu corpo. Se havia um atentado, uma sabotagem com políticos que morriam e que, com a sua morte, mudavam o rumo do pais, logo o seu corpo entrava em choque sem razão aparente. A taquicardia iniciava-se num bailado descompassado e, por horas, não sentia outra coisa sem ser o coração a bater. Achava estranho este fenómeno. Ser português implicava sempre esta ligação ao corpo? Perante situações de injustiça a que assistia sentia-se cegar momentaneamente, e a ira tomava conta dele, ao ponto de perder a razão. A injustiça provocava-lhe a cegueira da justiça. Uma espécie de abismo que se abria perante ele, com nenhuma sabedoria oriental, capaz de morrer como um herói celta por uma causa, num ápice, numa entrega absurda. Sofria de tremores sempre que um político ganhava as eleições e dava com ele a culpabilizar o povo que, bem vistas as coisas, não era culpado de nada a não ser de se deixar manipular facilmente. Por outro lado, sempre que assistia a um acto extraordinariamente doce, sensível e humano do seu povo, desfazia-se em lágrimas de amor. Chorava convulsivamente sempre que um gesto de solidariedade genuína, de entrega ao próximo ou distante acontecia. Via ali a origem de um mundo novo, como um nascimento, um parto para a verdadeira luz. Mas erguia-se nas tabernas sempre que, juntos, os homens bebidos apontavam o dedo a quem não conheciam senão através dos ecrãs, numa espécie de vício nacional inquisidor. Erguia-se com vontade de lutar com todos eles. Amava a justiça e não o sabia. Por vezes sentia-se mesmo a justiça. Aconteceu-lhe um dia, fraco em tamanho e em corpo, erguer-se perante skinheads, e tentar agredi-los nessa justiça cega. Era uma ira sofrida. Porquê detestar um negro só porque é negro? Porquê esse ódio gratuito e diabólico? Porque é que o ódio dos outros o fazia ter ódio também? Seria isso justo? Por mais que digam que não, dizia de si para si, a justiça está ligada à vingança, só ela pode repor as coisas no seu lugar. A justiça, aliada à vingança, era o contraponto da injustiça. Os próprios Templários sabiam-no. Mas, dentro dele, e do seu corpo que era o seu país tinha a certeza serena de uma coisa: no fundo, bem lá no fundo da sua alma não poderia nunca julgar ninguém. Nunca teria todos os factos, nunca poderia ver todas as nuances da alma, nunca poderia ter uma perspectiva de todas as circunstâncias, contextos e condições, nunca saberia o “como” de entrar no coração dos homens. Nunca seria justo, porque justo só o era Deus. No entanto, o seu coração pulsava sempre quando assistia a uma injustiça. De onde viria esse valor? De que raiz divina provinha essa espontânea vontade de repor as coisas nos seus lugares e de elevar a verdade acima da mentira? Afinal, também a justiça era um enorme mistério, um segredo camuflado no reflexo dos espelhos da consciência. A respiração da justiça oscilava entre pólos de consciência. A justiça era um ser vivo, autónomo, belo, perigoso, que sendo de todos não era de ninguém. Assim como o amor. E Portugal era um corpo sensível como um dente-de-leão levado pelo vento: ora a caminho da sua destruição, ora a caminho do céu, da sua sublimação.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 91


Crónica quarta da beira-mar
Eduardo Aroso

Atirar um papel para o chão ou lançar uma garrafa vazia para um sítio impróprio é um acto que revela tanta falta de civismo como um autarca que atira para o fundo da gaveta um requerimento de um cidadão respeitável que quer ver a sua vida andar para a frente. A cena viu-se ontem aqui na praia. Um rapaz não esteve com meias medidas: depois de ler, atira o jornal para a areia, quer, depois, o vento o levasse ou não. Isso era assunto de metereologia!

Afonso Botelho
Nessa noite – porque tinha trazido o livro comigo para uns dias de férias – começo a reler o mundo admirável do civismo que Afonso Botelho descreve na sua obra Origem e Actualidade do Civismo, edições Terra Livre, 1979. Tão admirável como desejável a problemática do civismo, conceito mais amplo que a actual cidadania, que parece contentar-se com pouco. Jaime Cortesão enfatizava que civil é aquele que sabe que existe o outro e, por isso, respeita-o no pleno sentido.

Civismo tão necessário como água para apagar os fogos que calcinam o corpo físico da pátria, cuja alma não sabemos onde se encontra: se no céu, se no inferno, ou num nirvana de onde nada diz. Num tempo em que quase todo o cidadão se deita com a culpa de que não sabe do seu ofício e daí por uns dias já tem que fazer outra acção de formação (às vezes formatação), deveria este ímpeto ser aproveitado no ano do centenário da república, para profícuas leituras sobre o civismo e depois aulas práticas em qualquer lado, o que para além do alcance cultural, dado o estado da sociedade, seria uma obra de misericórdia. Começando por aqueles que se sentam na assembleia constituinte até ao povo mais simples.

Aqui fica a sugestão. Em vez de se pagar aos que fazem discursos mais ou menos oficiais nestas comemorações dos 100 anos, melhor seria que as entidades disponibilizassem um pacotinho, ou, mais simplesmente, organizassem uma antologia de textos de figuras que tanto meditaram e escreveram sobre o assunto. Entre outros: Jaime Cortesão, António Sérgio, Agostinho da Silva, o citado Afonso Botelho, o já esquecido e ainda há não muito tempo falecido, Alçada Baptista, e aqueles, felizmente ainda entre nós, como é o caso de Pinharanda Gomes, por exemplo, na obra Meditações Lusíadas, onde se lê cruzado ou em linha recta, as múltiplas implicações do civismo enquanto estado de espírito, como os antigos o entendiam na polis e na urbe, e, neste caso, na terra lusíada onde o civismo é susceptível de se confundir com o sentido religioso do espaço.
Agosto de 2010

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

REENTRAR NA «CATEDRAL», 1


Catedral
Isabel Xavier

Quero escrever este poema
Como quem cumpre um ritual
Achar, nas palavras, a pureza
Anterior ao pecado original.

Como quem eleva acesa vela
Sobre hóstias de palavras consagradas
Saber de entre elas, aquela
Que insondável, única, bela
À luz de mistério que o vitral revela
Revele verdades reveladas.

Quero escrever este poema
Como quem cumpre um ritual
Dizer a palavra que devolva
A pureza da água baptismal.

Entre revoltas nuvens de incenso
Desvendar o simbólico local
Onde, além do Ser, além do Tempo
Se separa o Bem e o Mal.
Nas forças, orando, invocadas
Busco o primeiro sentido das palavras
Aspiro a verdades inspiradas.

Quero escrever este poema
Como quem cumpre um ritual
Descobrir, no Verbo, a beleza
Com palavras construir a catedral.

EXTRAVAGÂNCIAS, 90


Nos 100 anos da República como estão a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade?
Evocando o Sesimbrense Virgílio de Mesquita Lopes*
Luís Paixão
2.ª parte [leia aqui a 1.ª parte]
Coincidente com a divulgação da tríade acima referida, no período republicano vivia-se também em Portugal o advento do positivismo de Augusto Comte, que foi pensado e ensinado principalmente pelo ilustre patriota e presidente da Republica Teófilo de Braga, passadas que estavam as obscuras idades teológicas e metafísicas da humanidade. Perseguia-se cegamente o teísmo, em muitos casos por rancor à memória dos terríveis actos da inquisição e divinizou-se a Humanidade e a República numa espécie de deusa feminina de belo perfil com um barrete frígio, mais próxima das Senhoras do Ó ou das deusas da fertilidade, do que das Virgens católicas. A nova religião estava instituída. Num país mariano e panteísta, a substituição foi fácil. A divulgação da obra de Henri Bergson oposta ao positivismo, com a importância dada por alguns dos membros da geração da Renascença Portuguesa à intuição intelectual, ainda estava no seu começo, não chegando a ser a devida, pelo triunfo da geração da Seara Nova e do racionalismo de António Sérgio.
Neste ambiente de turbulência ideológica e, simultaneamente, de esperança de redenção, muitas foram as almas generosas que se entusiasmaram e entregaram as suas fortunas e vidas ao ideário patriótico e republicano.
Virgílio de Mesquita Lopes, que muito justamente tem hoje o seu nome inscrito numa rua que atravessa o coração da vila de Sesimbra, foi uma dessas almas. Maçon de grau 33
[1]; Grande Tesoureiro do Grande Oriente Lusitano no período do Grão Mestre Magalhães Lima; Presidente da Câmara Municipal de Sesimbra, de 1913 a 1917, pelo Partido Democrático republicano, num período extremamente difícil da vida do País: o envolvimento na 1ª Grande Guerra, a fome, o poder da rua, as lutas internas dos republicanos entre democratas, evolucionistas, unionistas e monárquicos (na época apenas tolerados). Num período de enormes dificuldades económicas, Mesquita Lopes soube segurar o leme da Câmara, vindo a executar parte das obras de abastecimento de água potável à vila de Sesimbra (lembre-se a Fonte Nova situada no largo com o mesmo nome). Homem da razão prática, progressista e activo, viveu o tempo de abertura à sociedade e de exposição pública do Grémio Lusitano, em sessões de beneficência ditas brancas, onde participavam todas as famílias no exercício da virtude da generosidade. Cabe aqui referir o seu papel na resolução da epidemia da pneumónica que assolou Sesimbra no período da guerra, e que foi debelada pela contribuição decisiva de um homem seu contemporâneo e amigo, o Dr. Aníbal Esmeriz, o qual veio a falecer por contágio, num episódio de santidade civil tão raro e que revelou o mais alto espírito de liberdade, igualdade e fraternidade. Nas cerimónias fúnebres, quem fez o discurso in memoriam foi Virgílio Mesquita Lopes, num registo apartidário e humanista que muito revela da grandeza do seu carácter e das suas qualidades como ser humano, e do qual não posso deixar de transcrever alguns elevados trechos ilustrativos[2].
Mais tarde, já depois de ter sido Presidente da Câmara, veio a envolver-se num projecto de desenvolvimento do distrito, que dirigiu: a linha de caminho de ferro Tejo-Oceano-Sado (também uma tríade!) que ligaria Cacilhas, Sesimbra e Setúbal. Por razões que escaparam à sua vontade e que se devem à deslealdade de alguns amigos próximos, e também ao estado de balbúrdia das instituições que exerciam o poder no País, o projecto não se chegou a realizar, tendo ficado apenas pela colocação de umas primeiras linhas em Cacilhas. (Hoje, passados quase 100 anos, ainda só existe a ligação a Setúbal). Por esta razão, a família de Mesquita Lopes vem a perder todas as suas posses e, no alvor da implantação da ditadura do General Gomes da Costa, é preso e condenado ao degredo na ilha do Sal. Um conjunto significativo de pessoas das mais diferentes origens e dos mais diferentes credos interessaram-se pela situação e, in extremis, quando Virgílio já estava na fila de embarque, é-lhe conseguido o indulto, sendo absolvido. É nesta altura que escreve um texto de agradecimento, no qual, perante a possibilidade da perda objectiva da sua liberdade, os valores da igualdade e da fraternidade sofrem uma ascensão para um plano ético onde se verifica que, afinal, a fraternidade, numa hierarquia insuspeitada, também abrange os inimigos políticos (na resolução do seu caso, a intervenção de um aristocrata terá sido decisiva), e não apenas os do seu partido, que, por sinal – e sem, por pudor, os referir –, foram alguns dos que o traíram:
“Mal pensava eu que ao atingir esta altura da vida, teria de pôr o meu coração a sangrar de agradecimento nas mãos de centenas de pessoas, no número das quais avultam os dos meus inimigos políticos.
A minha prisão a que por falsas e desleais denúncias fui submetido ultimamente deu-me ensejo a conhecer a magnanimidade de pessoas que, inúmeras pessoalmente, por telegramas, por cartas e por outras formas me protestaram a sua amizade ou muito simplesmente a sua cativante simpatia.
As horas amargas do encarceramento sobretudo as do Domingo 20 do corrente, domingo magro, em que já estava na formatura para embarcar, nunca mais as olvidarei; e por este mesmo motivo as demonstrações de afecto e de carinho que recebi trazem-me a alma a transbordar de gratidão.
Nunca a política me serviu para meu lucro pessoal.
Não me faltaram oferecimentos e alguns de incontestável valor.
Renunciei a conveniências e servi sempre princípios.
Se incomodei amigos foi para servir amigos que, para mim, contem mais do meu esforço do que do favor alheio.
A situação penosa em que me encontrei, trouxe-me revelações e desenganos. Gentes a quem nada fiz encheram-me de atenções; pelo contrário outros me fizeram o vácuo…
Não lembrarei estes.
Para todos os que se lembraram de mim, vai neste momento renunciando a todo o partidarismo, quero ser e ficar só republicano., a minha mais viva gratidão.
Á Ex.mª.Camara Municipal de Cezimbra protótipo da dignidade administrativa; às agremiações aos amigos e aos antigos correligionários; aos inimigos políticos; á Direcção da Companhia Tejo- Oceano-Sado, etc. aqui fica o meu cumprimento de profunda e sincera gratidão já que não posso fazer pessoalmente
...
Obrigado, muito obrigado.
Lisboa 28 de Fevereiro de 1927

Não obstante o carácter discreto deste escrito, considerei ser a sua divulgação uma exigência, porque muito do que está expresso neste agradecimento deveria servir de guia para a actividade política em Portugal, e para as gerações que hão-de vir a exercer o poder.
____________
* Versão integral do artigo recentemente publicado no jornal SUL. Foi um dos últimos escritos que António Telmo leu.
[1] A ave que aparece desenhada no avental deste grau é o Pelicano alimentando as crias com o seu sangue, o qual, como se sabe, tem altíssimo valor simbólico.
[2] “Era em Março de 1914. As lutas políticas eram acesas, referviam em Cezimbra. Vivos estão quasi todos os contendores e não é aqui o momento para apreciar prélios dêsse período agitado, em que a propósito de tudo e de nada se desencadeavam furias tremendas.
“Sei bem que tive de lutar com atrictos de vulto e influencias de pezo para nomear o candidato que melhores provas apresentou para a vaga deixada pelo Sr. Dr. Sá e Melo.
“Trabalhando só e exclusivamente pelo bem e pelo engrandecimento de Cezimbra não procurei saber da cor política do pretendente; eram elevadas as classificações académicas, as mais elevadas de entre todas as que concorriam; as informações sobre a honorabilidade não podiam ser mais lisonjeiras, e então não hesitei um ápice, na escolha do medico. A 24 do referido mês e ano a Comissão Executiva nomeava o Dr. Esmeriz medico municipal, e o Senado Camarario confirmava em 11 de Abril a nomeação feita sendo a posse conferida quatro dias depois.”
O trecho que acabo de transcrever, retirado do folheto intitulado Consagração Póstuma em homenagem aos falecidos mutualistas Srs. Dr. Antonio Anibal de Araujo Esmeriz e José Bastos (Lisboa, Minerva Lisbonense, 1923), ilustra bem o superior sentido da Liberdade que norteava a acção de Virgílio de Mesquita Lopes. Do mesmo documento, tenha-se ainda presente um outro extracto, pelo qual facilmente se infere a importância que atribuía aos três valores da tríade:

“Porque o Dr. Esmeriz, pelos sacrifícios da sua enorme dedicação ao serviço dos miseraveis, constitue um alto ensinamento para a sociedade, e é como que um convite a iguais altruismos, ficando o seu nome um simbolo, e a sua memoria uma saudade.
“A sua presença á beira de um leito inspirava, pelos bons modos do medico, aquela confiança, aquela esperança, que não curando o doente o alivia imenso, deixando-lhe a impressão de que não morrerá.
“Cumpriu ele a sua missão de medico como se para esta carreira o tivesse levado o pendor da sua vocação, quando a verdade é que a maior ambição na sua mocidade, e uma grande pena que o acompanhou pela vida adiante, foi o não ter podido seguir a carreira de uma arma superior do exercito, por via da sua débil constituição fisica.
“Mas porque caracteres de boa tempera são-no em qualquer ocasião e sempre, o medico só porque voluntariamente o foi, jamais perdeu de vista o que devia a si e aos outros, no cumprimento rigoroso das suas obrigações profissionais. Se fôra militar, honraria a farda pela pratica das virtudes que a honra da nação requere; foi medico, e adaptando-se, integrando-se no seu nobre oficio, pobres e abastados, todos tiveram ensejo de conhecer a mais bela alma servindo a mais humanitária profissão.”

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

PEDRO BAPTISTA GONÇALVES DIXIT

Ao Prof. António Telmo - a memória perene de Portugal



António Telmo - o ancião de Estremoz deixou-nos ontem.
O Prof. é como aquele que busca a Regra de Ouro. Não lhe importava, como o verdadeiro guerreiro, se a morte é o resultado da batalha. O que importa é se há algo genuíno na acção.
Na nossa última conversa, em Estremoz há um mês precisamente, falámos longamente sobre a influência dos alimentos na saúde. Ele explicou-me o que estava a passar, e de como simplesmente aceitava aquela "fase da vida" e estava a tratar-se com meios que achava adequados, tendo recusado abordagens violentas.
Quando lhe falei dos sumos que uso há longo tempo, ele recordou-se de alguém estrangeiro que tinha conhecido e que nem sequer comia pois alimentava-se do Sol.
Vejam:http://arautodofuturo.wordpress.com/2009/09/16/sun-gazing/
Ele era mesmo assim: um dia chegados à rua onde morava, escutámos o Tejo (o seu Serra da Estrela) a ladrar, ele explicou com os olhos a brilhar: " Escutou Pedro? O Tejo sentiu a minha presença: para ele todos somos cães e eu serei o chefe da matilha" Rimos juntos com a visão do mundo do Tejo...
Estaremos juntos para honrar a sua presença por aqui, do nascimento à morte, na Vida que como o Prof. escreveu: "palavra que não tem contrário", e acrescento, continua sempre, como diz nesse site “Jamais houve um tempo em que eu não existisse, nem você… nem há um futuro no qual deixaremos de existir”.
Nunca esquecerei os concelhos que ele me deu sobre a educação de crianças, o livro "O horóscopo de Portugal" e afinal a presença brilhante que mais do que nas palavras escritas confirma a genuinidade delas e brilha para sempre. Como a de Agostinho da Silva.
Este blog é a minha resposta ao desafio que me fez: "Tem de escrever, pois se o faz para si porque não partilha com quem quiser ?". Um jovem sempre contagiante foi quem eu conheci na sua pessoa, Prof. António Telmo. Obrigado.
PS: António Telmo foi autor de extensa obra, entre ela "A História Secreta de Portugal".para saber mais: http://filosofia-extravagante.blogspot.com/

EXTRAVAGÂNCIAS, 89

Nos 100 anos da República como estão a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade?
Evocando o Sesimbrense Virgílio de Mesquita Lopes
Luís Paixão

A Cidade é a expressão física da Politica. Esta afirmação poder-nos-ia levar muito longe na identificação dos males e dos bens da vida em sociedade e da sua correspondência na fisionomia, nas feridas ou nas cicatrizes da urbe. Não é esta, contudo, a intenção do presente escrito. Quero apenas, e por agora, deter-me nalguma toponímia ligada à Republica, para vos dizer ao que venho:
A I República, não obstante todas as vicissitudes, está bem expressa em Lisboa, em Setúbal e noutras cidades – nas designações de ruas, praças, avenidas e edifícios. Sejam elas evocativas de datas: Rua 31 de Janeiro, Avenida 5 de Outubro, Rua 2 de Abril; ou de figuras notáveis: Almirante Reis ou Cândido dos Reis, Braamcamp, Elias Garcia, dos Combatentes ou, por ultimo, da própria República em Lisboa e em Sesimbra (antiga Rua Direita) e dos seus valores: as várias avenidas da Liberdade. Estas designações estão presentes nas conversas do dia-a-dia dos cidadãos, apenas por razões de orientação, porque poucos serão aqueles que sabem os acontecimentos que evocam, os feitos das figuras públicas ou o verdadeiro sentido dos valores ou instituições nomeados. Pelo que me diz respeito, sou mais favorável à designação dos valores ou ideias universais, como por exemplo as referências nas ruas medievais às virtudes teologais. Estes nomes, que existem no centro antigo da cidade, deixaram de fazer parte do léxico de muitos dos jovens que já nasceram nos bairros periféricos, com os seus centros comerciais, e circulares CREL ou CRIL, perdendo, infelizmente, a possibilidade de lhes ocorrer as perguntas iluminantes: O que aconteceu de importante nesta data? Quem eram e por que eram notáveis?
O que significam aquelas palavras, aqueles conceitos?
O movimento centrifugo que levou ao aumento da população nas periferias das cidades e à consequente desertificação do centro, e ao qual Lisboa, Setúbal e outras cidades não escaparam, conduziu àquilo que modernamente se designa por efeito “donut”, forma que é de certo modo o inverso da esfera e que evoca um preocupante vazio no centro. Ocorre-me a primeira frase de um poema de David Mourão-Ferreira a propósito de Lisboa: “Capital! Ó Capital! Capital decapitada”. Seja ela capital de um País ou de um distrito.
Entre a baixa do Marquês de Pombal com as suas ruas Augusta, da Prata e do Ouro de altíssimo valor simbólico, e a rotunda onde se entrincheirou e combateu Machado Santos nos dias 3 e 4, comemorando a vitória no 5 de Outubro de 1910 existe a avenida da Liberdade, valor que, com outros dois, faz parte dessa tríade luminosa da LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE tão do agrado dos republicanos. Já por várias vezes me interroguei onde estariam as duas outras avenidas que faltam: será que ficaram pelo caminho, será que existiram e lhe mudaram os nomes ou será que houve uma súbita e conveniente amnésia? Qualquer que tenha sido o caso, não deixa de ser relevante que a tríade haja sido amputada de dois termos, o que retira sentido ao que ficou, porque nenhum deles pode ser vivido e pensado sem os outros dois.
Por centelha patriótica à laia dos primeiros republicanos, não posso deixar de realçar que a criação desta tríade de carácter cristão foi atribuída pelo ilustre escritor francês Osvaldo Wirth ao português Pascoal Martins, obscuro judeu de modesta profissão (reparava carruagens), autor de um luminoso e difícil livro que se intitula Tratado de Reintegração dos Seres Viventes…, editado entre nós em 1979 com tradução e prefácio de Manuel J. Gandra nas Edições 70. Esta obra de carácter completamente espiritual parte da constatação de que homens e mulheres são anjos caídos e aspiram nas suas vidas, como o titulo indica, a esse estado idílico e inicial vivido no Paraíso.
O autor, nascido em 1715 (?) e falecido em 1779 em Port au Prince, já adulto saiu de Portugal com destino a França, provavelmente em busca de melhor vida. Passou uma má temporada em Toulouse, e fixou-se depois por um longo período em Bordéus, onde foi muito bem recebido e fez escola, vindo a exercer significativa influencia nos meios intelectuais e da maçonaria franceses atraindo discípulos e prosélitos, entre os quais estão nomes como Saint-Martin, o abade Fourier, Balzac, Joseph de Maistre e o muito ilustre maçon francês da cidade de Lyon, Jean Baptiste de Willermoz. Terá criado uma ordem designada por Les Elus Cohen, que virá a ter decisiva influência na criação da maçonaria cristã do Rito Escocês Rectificado, da qual terá feito parte o nosso ilustre mártir, o General Gomes Freire de Andrade.
Segundo estes dados biográficos, não estava seguramente no espírito do nosso Pascoal Martins a utilização das palavras da tríade para propósitos ou bandeiras de divulgação de estreito positivismo ou materialismo. Com efeito, quanto à liberdade, ficou em muitos casos limitada aos seus aspectos mais grosseiros: à autorização da acção, do apetite, ao movimento físico, à expressão. Pouco se pensou, se essa liberdade de expressão era porventura expressão dessa mesma liberdade. Esqueceu-se quão difícil é a liberdade emotiva, de coração limpo, sujeitos que estamos muitas vezes à antipatia, à inveja, ao ciúme, à tristeza e quão difícil é a liberdade de pensamento, presos que estamos no preconceito, na ignorância e na estupidez.
Quanto à igualdade, a realidade desmente a abstracção aritmética, porque nunca poderemos pôr entre dois indivíduos o sinal de igual. Poderão os regimes tentar tornar o estatuto do ter com menos diferenças, mas esta louvável redução das diferenças não deve ser extrapolada para o estatuto do saber ou do ser, porque, naturalmente, aqui lidamos com as diferenças e qualificações do que é inato, da sorte de cada indivíduo e também do que ele virá a obter da vida por mérito, talento ou génio. A igualdade só é possível de raciocinar perante alguém que nos é transcendente. A adopção exclusiva deste ideal retirado da tríade harmónica originou os regimes totalitários ditos de esquerda que têm vindo a soçobrar no Ocidente nas últimas décadas.
Quanto à fraternidade, que vive intimamente ligada com as duas outras, é a linha horizontal, o grande abraço entre os seres humanos, que cruza com a vertical da liberdade e da igualdade, sendo impossível meditar neste valor sem se pensar na irmandade, na família natural, porque é daqui que partem os conceitos, as vivências e, também, a certeza das dificuldades em torná-la possível e efectiva na humanidade. Caim, Abel e Seth estão presentes em cada momento. Se a humanidade deverá caminhar para uma grande irmandade, onde estão? Quem são? Os progenitores, os encarregados de educação dessa grande família?
A resposta a cada um.
(continua)