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sexta-feira, 29 de abril de 2011

IDEIAS...














A Pedra, o Mar, e o FMI

Cynthia Guimarães Taveira

- Na Idade Média, Portugal, já tinha um pequeno problema.

Foi assim que começou a aula de História.

- O problema estava na transformação da matéria prima. Nós tosquiávamos as ovelhas. Depois, em vez de fazermos camisolas com a lã, enviámo-la para os Países Baixos, onde era finalmente tricotada. E depois nós comprávamos as camisolas, a um preço muito superior àquele pelo qual havíamos vendido a lã.

Não me esqueci desta aula de História, e, com o tempo, fui constatando que havia qualquer coisa nos portugueses que os levava a uma aversão natural em fazer o trabalho dentro das suas fronteiras limitadas em que viviam.

Somos grandes construtores e, estranhamente, a nossa História é feita de empreendedorismo. Por cá, abríamos fendas na terra, e dela, retirávamos as pedras. Com grande obra e engenho colocávamos essas pedras em barcos e íamos construir para longe: para o Japão, para o ponto mais obscuro do Brasil, para as roças africanas. Construímos Fortes, Igrejas, ou a simples e singela calçada portuguesa.

Não somos como os gregos, embalados pelo calor do Mediterrâneo, embalados pelo sonho platónico de evitar o trabalho manual como coisa menor, ou qualquer outro trabalho, hoje.

Quando se fazem obras num ponto qualquer da cidade é vulgar ver homens parados, por vezes durante horas, espreitando a obra, observando-a com uma atenção que toca a ternura. É igual a sua contemplação àquela outra, também muito lusitana, de quando, sentados no alto de uma rocha, ou num miradouro, os portugueses contemplam o mar. Por vezes, durante horas também. Esta atenção faz-me pensar na grande ligação que existe no nosso inconsciente (ou numa outra forma de consciência, como diria René Guénon) entre o português, a pedra e o mar. Somos feitos de granito e de água.

Esta loucura da construção conduziu à existência de cidades pegadas umas às outras, aos estádios de futebol em excesso, a auto-estradas que andam às voltas, desertas, a rotundas nos lugares mais improváveis, a obras de remodelação sistemáticas. Há lojas em Lisboa que, devido à crise, mudam de mão quase de ano a ano, e de cada vez que mudam de mão, sofrem obras. Parece que esse impulso de construir lá fora, à falta de Império, passou a ter lugar cá dentro, mas de uma forma anárquica, gananciosa e de má qualidade no planeamento e na construção. O impulso está lá, só que distorcido por uma cultura do lucro fácil e do esquecimento da herança dos antigos pedreiros e mestres construtores.

O que havia, noutros tempos, e que unia, de alguma maneira, os homens, era um projecto comum: um sonho estranho onde o mar era a grande via para um mundo que naturalmente nos esperava. Hoje o mundo deixou de nos esperar, as grandes potências desconhecem-nos, as ex-colónias não nos desejam de volta. Sem missão ficámos perdidos dentro de nós. No entanto, esse estranho facto de fazer obra “lá fora”, permanece: artistas, desportistas, filósofos, cientistas, académicos, ganham um novo brilho fora da nossa terra; aliás, em proporção populacional, esta país parece gerar a qualidade em grande número: desde que se cumpram fora de Portugal.

O FMI chegou. Mas será que nos conhece? As fórmulas aplicadas são sempre iguais e monótonas para todos os países. Mas de que fórmula necessitamos nós? Por um lado parecemos ser incapazes de produzir qualquer coisa de jeito, cá dentro, facto que dura há séculos; por outro, lá fora, sabemos e pudemos fazer tudo.

O FMI devia ter em atenção apenas estes factos: a pedra, o mar, a viagem, o destino, a vontade e o sonho. São estas as palavras que pulsam dentro da alma lusitana. A economia depende destas palavras, mas não só a economia, também o equilíbrio, a força, o amor, a dedicação, a vida, e num último grau, a felicidade sentida quando os sonhos são cumpridos.

7 comentários:

  1. Permita-me... nas práticas Portugal não é uno. É bem possível que as lãs enviadas para os Países Baixos fossem tosquiadas no Centro e exportadas pelos mercadores do Sul. Os mesmos que no auge da produção azulejar nacional trataram de importar azulejos holandeses para alguns palácios de Lisboa. Enquanto isso, os tecelãos de Guimarães exportavam para toda a Península indumentárias em linho.

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  2. A propósito da história da lã das ovelhas que ia para fora do país e depois voltava, recordo o seguinte episódio: tive um vizinho em Coimbra, que no início dos anos 70 emigrou para a Holanda. Um dia, antes de regressar, resolveu comprar um bom fato, coisa para ficar, como ele dizia. E, é claro, por um dinheirão, pois comprado na capital. Qual não foi o seu espanto quando ao chegar a casa reparou na etiqueta interior do casaco que, em letras pequeninas, dizia «Tecidos Santa Clara, Coimbra, Portugal».

    (Continua o comentário)
    EDuardo Aroso

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  3. (continuação)

    De facto, como genialmente entendeu Pessoa, ficámos desempregados depois dos Descobrimentos. O nosso verdadeiro emprego é aquele que outros não podem desempenhar tão bem, embora possam administrar bens e finanças. Agostinho da Silva dizia, com ironia e ainda mais verdade, que parafusos e automóveis fazem os outros melhor que nós.
    Se aplicarmos o princípio (não o exemplo em si, que é moderno) à nossa História, vemos que de D. João III até ao fim da monarquia, a 1ª República, o regime de Salazar, que não deixa de ser uma 2ª República, e a 3ª república, a dos europeístas, todos entenderam ser melhor o tal princípio de que era melhor fazer os tecidos Santa Clara cá no país e depois ir comprar os fatos à Holanda, ou encomendá-los.
    Isto está tão entranhado em nós, que o ex-primeiro-ministro (não se pronunciando o nome para não ofender os deuses!) – que segundo os cânones deve ser modelo de virtudes em tudo vai a Nova Yorque comprar o seu fatinho.

    As minhas melhores saudações
    Eduardo Aroso

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  4. A propósito do que disse o sr. Eduardo Aroso: aí está, é um mau exemplo de quem o faz. Adquirir produto estrangeiro, seja ele melhor ou mais barato, é uma preferência como qualquer outra. O pior é quando o hábito se torna preponderante e estimulado pelos poderosos. Fica em causa a arte nacional; e no nosso caso a habilidade é grande, desde fazer, vender, falar... Só nos ultrapassaram quando vieram com os parafusos e as explosões a vapor.
    Houve o tempo dum figurino adaptado ao corpo nacional com o equilíbrio entre os produtores e os que apalavravam a partir da feitoria de Antuérpia.

    Muitos cumprimentos deste seu leitor atento.

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  5. Percebe-se nitidamente que o caro Amigo Eliseu é entendido em matéria de trocas internacionais. Tem razão quando diz «adquirir produto estrangeiro, seja ele melhor ou mais barato, é uma preferência como qualquer outra. O pior é quando o hábito se torna preponderante e estimulado pelos poderosos.» Sim, o mal está no desiquilíbrio.
    Muito obrigado pela gentileza relativamente à minha pessoa. Consciente da minha modéstia, esforço-me todavia para viver cada dia com o meu contributo possível.

    Saudações amigas
    Eduardo Aroso

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  6. Volto a esta temática: se cada ser é singular, se cada um realiza com mais ou menos perfeição o seu destino ou o que se queira chamar (o que está muito de acordo com o adágio popular «temos cinco dedos na mão e nenhum deles é igual», aplicando-se muitas vezes no exemplo dos filhos dos mesmos pais), por que devem ter as nações o mesmo esquema de desenvolvimento aos longo dos tempos, ignorando lamentavelmente a natureza do seu povo?
    (continua)

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  7. (continuação)

    Os preconceitos de vária ordem e outros factores, bem entendido, não deixam que a humanidade se realize NO CONTRIBUTO DAS SUAS SINGULARIDADES (NAÇÕES). Só poderá haver realização à escala mundial nesta fraternal e assumida cooperação, obviamente com as suas regras e também com as naturais limitações ou imperfeições. Já imaginámos uma orquestra sinfónica com todos os músicos, ainda que excelentes, a tocarem o mesmo instrumento?
    Isto de ser tudo igual para todos (que se vai consentindo por uma ausência de um pensamento, e pensamento corajoso), que é um reflexo da supremacia da técnica sobre as chamadas humanidades, faz-me lembrar aquela história de um mecenas que estava incomodado com um determinado músico da orquestra, que fazia uma melodia muito linda no flautim, quase no fim da sinfonia, mas que, na opinião do mecenas, era um desperdício só tocar quase no fim!
    Eduardo Aroso

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