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segunda-feira, 22 de junho de 2009

A DOR E O AMOR, 1


O Sacré-Coeur

É no alto de Montmartre, dominando Paris. Topografia simbólica, desafio da Igreja à Revolução. Daquela altura, a cidade fabulosa dir-se-ia o plano topográfico, a maquete efémera duma Babilónia colossal. A cúpula de oiro dos Inválidos lembra, pela forma e pelas dimensões, um capacete persa flamejante, e os dois braços amputados das duas torres de Nôtre-Dame têm dez metros de altura, quando muito. Do estrondoso e estonteador brouhaha da vida de Paris não chega àquela iminência religiosa mais do que um largo murmúrio evaporado, como que o hálito longínquo, a ressonância extinta dalguma forja de ciclopes.
O templo, enorme, é de arquitectura bizantina. O gótico fugitivo, esvelto e rendilhado, principiando num soluço, erguendo-se num ai, e terminando, exânime, num grito de flecha agudo e lancinante, era pouco sólido.
Na catedral quase que há mais alma do que mármore. Mesmo de granito, chega a ser incorpórea. As suas colunas, duma tenuidade vertiginosa, sobem instantâneas, como o raio desce. São, por assim dizer, jactos de fé petrificados, troncos rectilíneos de palmeiras místicas, que se embebem sofregamente pelo azul, expluindo já cima numa girândola de nervuras, numa ramaria côncava de abóbadas. A imponderabilidade extática e descarnada ergue-a da terra, mina-lhe o alicerce. É bela, é sublime, mas frágil. Um sopro a leva.
O Sacré-Coeur é, como devia ser, uma fortaleza bizantina. Levantada ousadamente no alto de Paris, tem a defender-se de Paris. Os muros são duma espessura de monumento egípcio. Há naquela arquitectura o quer que seja de engenharia militar. É um reduto de dogmas.
Não está concluído. Falta-lhe o tecto por enquanto. A maciça obesidade inabalável dos enormes pilares ascende vagarosamente à força de monólitos, à custa de toneladas. Que diferença do templo gótico, por cujas agulhas, incisivas e aéreas, a alma se evade, como um fluido eléctrico, chegando-se a procurar lá no alto, no topo das torres, no ápice das flechas, crepitamentos de estrelas, santelmos de orações…
Fui ao Sacré-Coeur em Junho, num domingo esplêndido. A luz um sorriso, o azul uma bênção. Havia nesse dia uma romaria. Cinco a seis mil devotos, pelo menos. Incorporei-me no préstito que, antes de entrar, deu uma volta à igreja imensa, entoando num coro, melancolicamente formidável, uma espécie de marselhesa do amor divino, um cântico abrasador de esperança e piedade, em que havia ao mesmo tempo rugidos indómitos de oceano, reboadas de angústia, trinos de inocência, ais de viuvez.
Primeiro desfilaram os homens, graves, modestos, respeitáveis, com aquele ar de nobreza fisionómica de quem possui uma crença, uma luz interior, uma alma simples.
Depois as mulheres, esposas e mães, que vinham ali acrisolar a sua fé, bálsamo único para as lutas da vida, para as amarguras do destino.
Depois, como áleas ridentes de amendoeiras em flor, centenas de virgens virginais, o lábio puro, a fronte cândida, o olhar transparente, todas envoltas da cabeça aos pés em nuvens aéreas de musselina, duma graça intacta, duma alvura de pombas. Dir-se-iam corpos de açucenas vestidos em túnicas de luar.
Por último, a infância, pequerruchos de 6 a 8 anos, botões de rosa, embriões de almas, a passinhos miúdos, num encanto de glória, num êxtase de sonho.
E as vozes dos homens, másculas e robustas, casavam-se com as vozes plangentes e lagrimosas das mulheres, com a angélica e translúcida pureza do cântico das virgens e com o balbuciamento cristalino dos mil gorjeios infantis.
Encheu-se o templo e começou o sermão. O tecto da igreja era o céu azul. As dalmáticas do clero e os estandartes dos peregrinos, tecidos a prata, bordados a oiro, dardejavam frementes. O pregador falava de ao pé dum altar provisório de madeira, coberto a damascos. Dezenas e dezenas de borboletas brancas voltavam sobre a multidão ajoelhada, sobre a cruz do sacrário e sobre a teologia do pregador.
A Igreja vive ainda e viverá, senti-o nessa hora, do cristianismo eterno que tem dentro.
Por isso, a Igreja se não destrói, perseguindo-a, arrancando-lhe o oiro das arcas, os anéis dos dedos, os brocados do corpo. Nos dias sublimes e longínquos da sua infância maravilhosa, rota, sem pão, descalça, viveu em antros, gemeu nas galés, os tigres morderam-na, varou-a o ferro, queimou-a o fogo, trezentos anos a perseguiram, milhões de vezes a crucificaram, e, das contínuas mortes da sua carne, ergueu-se, ilesa e luminosa, a sua imortalidade espiritual. E quando mais tarde, dominador a e deslumbrante, no trono de César, foi a rainha única do mundo, para quebrar-lhe a omnipotência, bastou a voz dum monge solitário.
A dor eleva, a dor exalta, a dor diviniza. O cristianismo gerou-o o Amor e a Dor, nasceu, escorrendo sangue, numa cruz. A opulência pagã da Igreja foi o crime da Igreja. Quanto mais simples e mais humilde, mais vitoriosa e mais robusta.
Também se não destrói a Igreja, destruindo Jesus. A essência do cristianismo é universal e é eterna, imanente à vida. Houve cristãos sem conta antes de Cristo, cada santo que surge é um continuador de Cristo que aparece, e todo o homem que, sendo deísta, se eleva a um alto grau de moralidade, torna-se por esse facto um cristão verdadeiro. Cristo é filho do Espírito Divino, porque é filho do ideal humano sublimado, e este é o reflexo directo do Espírito de Deus.
Negar o cristianismo implica, pois, uma loucura monstruosa: negar Deus. Muitos o negam verbalmente, e a ele se encaminham pela virtude e pelo esforço. E outros, que se julgam íntimos de Deus, nem de longe o conhecem, porque a todo o momento o estão negando nos seus actos, embora o afirmem nas palavras, loucas umas vezes, outras vezes hipócritas.
Deus é a infinita perfeição, porque é Amor Infinito, sentido e vencendo a infinita dor. Os mais amorosos são os que mais se lhe chegam, e os mais egoístas, os mais afastados e os mais ímpios.
O mundo caminha para um cristianismo integral, puro e perfeito, que absolutamente harmonize coração e razão, ciência e fé, natureza e Deus.
A escola sem Deus é o infinito sem rumo, é o universo morto, decapitado.
1888. (1)
Guerra Junqueiro
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(1) Este artigo foi escrito em 1888. Corrigi-o, creio, em 1904, e publiquei-o depois na Alma Nacional. Agora emendei-o de novo, eliminando várias passagens, umas inúteis ou deficientes, outras condenadas hoje pelo meu espírito.
Eu tenho sido, devo declará-lo, muito injusto com a Igreja. «A Velhice do Padre Eterno» é um livro da mocidade. Não o escreveria já aos quarenta anos. Animou-o e ditou-o o meu espírito cristão, mas cheio ainda de um racionalismo desvairador, um racionalismo de ignorância, estreito e superficial. Contendo belas coisas, é um livro mau e muitas vezes abominável. Há na grandiosa história do catolicismo páginas de horror, mas a Igreja com os Evangelhos cristianizou e salvou o mundo. No catolicismo existem absurdos, mas no âmago da sua doutrina resplandecem verdades fundamentais, verdades eternas, as verdades de Deus. A força moral do catolicismo é hoje imensa, não pode negar-se.

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