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segunda-feira, 22 de junho de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 14

António Carlos Carvalho

Domingo em Évora, desafiados para almoçar com uma amiga da Cynthia e da Alexandra. Apesar da perspectiva de um calor abrasador, lá fomos por aí abaixo, nós de carro e a Alexandra de camioneta – que demorou hora e meia só para entrar na Vasco da Gama...
Chegados a Évora, logo iniciámos o périplo pelas ruelas de nomes arcaicos, saborosos, como Travessa das Gatas. Buscámos um café aberto para matarmos a sede. E a tal amiga, X., veio ter connosco, destroçada: o ex-marido tinha-lhe levado os filhos para casa da «outra». Tentámos acalmá-la: afinal de contas não era propriamente um rapto... Mas X. vociferava, ameaçava, debatia-se, transtornada. Aquilo era mais do que podia aguentar. Uma ofensa. Um abuso. E rogava-lhe pragas.
A partir daí, desvaneceu-se a perspectiva de passar um dia sossegado na Évora onde o meu bisavô morreu, o meu avô viveu a infância e adolescência (nascera em Lisboa mas dizia sempre que era de Évora), a minha tia-avó Ema foi amiga de Florbela Espanca; na cidade que serviu de pano de fundo a «Aparição», o romance de Vergílio Ferreira que me fez descobrir a existência aos 18 anos (e depois teve o mesmo efeito em dois dos meus filhos, o Diogo e o Bernardo). Évora, a verdadeira cidade branca. Évora: se pudesse vivia aqui, virando ao Sul, seguindo o sentido das descobertas. Tenho necessidade de voltar aqui de vez em quando, como quem reata laços de ascendência.
Ainda fomos ver ou rever a anta do Zambujeiro e o cromeleque dos Almendres, depois de um almoço em Valverde. Mas X. estava toda ela virada para dentro, para o seu problema com o ex-marido (de quem nunca se divorciou realmente no seu coração): todas as conversas acabavam por ir parar a ele, a eles, ao que continua por resolver. Feridas por curar.

Quantas vezes presenciei já casos destes: mesmo nos mais belos lugares, sejam eles Évora, Veneza ou Paris, casais desavindos não vêem nada que não seja o seu próprio confronto. Dir-se-ia que não há «espírito do lugar» que consiga sobrepor-se aos problemas do coração.
Sim, estas histórias são antigas, vêm mesmo desde a alvorada dos tempos. Adam e Hava (Adão e Eva) representam uma humanidade primordial mas também as condições de Homem e Mulher, esses dois seres criados para se amarem, para amarem o resto da Criação e a fazerem frutificar – mas que começam por nem sequer dialogarem: ele e ela falam com Deus mas não um com o outro, como mostra o texto bíblico.
Só muito depois é que um Abraham e uma Sarah, um Isaac e uma Rebeca, um Jacob e Raquel e Léa entram em diálogo frutífero.
Nós, os que gostamos da Filosofia, costumamos citar os diálogos socráticos mas poucas vezes pensamos que o primeiro diálogo filosófico é aquele que acontece (que deve acontecer) entre homem e mulher – o princípio de tudo.
E é esse diálogo sério, implicando saber ouvir o outro, que muitas vezes não acontece – nunca chega a acontecer. Temos um umbigo demasiado grande e orelhas demasiado pequenas...
E depois, quando abrimos a boca, em vez de palavras, de murmúrios amorosos, saem gritos, lamentações, queixas, por vezes mesmo insultos...
Fiquei com vontade de dizer à X. que ela devia passar mais tempo na anta ou no cromeleque (de onde se vê Évora lá ao fundo, no horizonte, porque a elipse de pedras aponta estranhamente para a cidade), buscando aí o silêncio, a meditação – talvez a oração – que lhe faltam.
E depois seguir em frente – para o Sul, o tal «Sul sidério que esplende sobre as naus da iniciação.» No caso dela, mas também no nosso, hoje, essa viagem iniciática chama-se Amor. E Compaixão.

1 comentário:

  1. Duas coisas apenas se deveriam ensinar aos homens: a ler na pedra e a ouvir o silêncio.
    Abraço lusitano!


    A SENDA DOS DRUIDAS


    Venham as chamas do crepúsculo, o fogo vivo,
    Por entre a pureza solitária das árvores, irmãs
    Silentes que nada sabem ou querem saber
    Da escrita dos homens, raros e nobres sejam,
    Em carne viva, sangrantes na noite, sábios
    Ou néscios, loucos ou sãos – nada, nada
    Do que sofrem ou sonham, move uma folha
    Delas na escuridão avermelhada do fim do dia.
    Com o seu silêncio profundo que habita
    O coração das florestas do mundo – e do Outro
    Mundo que se fecha como um segredo antigo –
    Ensinam a saga imemorial do esquecimento.
    Não, não falem para mim nunca. Nem o eco
    Da minha voz façam perdurar no vosso corpo
    Colectivo, vegetal e santo. Eu sou um intruso
    No vosso reino de fresca brisa e paz, um orfão
    Apenas, um animal apenas, que busca, ferido,
    O sim final, a honra, de jazer entre as raízes
    Sagradas, a bondade imensa, a cinza simples.


    Lord of Erewhon

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