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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quarta-feira, 10 de março de 2010

APONTAMENTOS E REFLEXÕES SOBRE O KYUDO EM PORTUGAL, 2

Luís Paixão

Hassetsu - oito movimentos para um tiro
Para quem lê estas linhas e nunca teve o ensejo de estar em contacto com a prática de Kyudo, é importante esclarecer que qualquer tiro exige o cumprimento de oito movimentos que vão desde o levantar do arco e de duas flechas, encostando as mãos aos quadris, olhando lentamente para o alvo (monomi) até ao momento do tiro (Hanare), numa sequência que demora vários minutos, dependendo da formalidade. O seu desenvolvimento é de um modo extremamente lento e apoiado na respiração. Os nossos primeiros treinos foram portanto sem arco nem flecha, só executando os movimentos. Mais tarde Yokokoji fabricou uma espécie de fisga, para que com a sua utilização nós começássemos a sentir a pressão do arco. A prática com arco só foi permitida ao fim de seis meses.

O que mais me impressionou nestes primeiros tempos de prática foi a exigência destes oito movimentos sem arco, o seu lento encadeamento completamente - dir-se-ia ao “retardador” - contrário ao ritmo rápido do nosso dia-a-dia. Poderíamos pensar que era por sermos principiantes, mas não era este o caso, visto que quando o mestre executava o tiro para exemplificar, a sua lentidão era ainda maior que a nossa. Várias vezes me ocorreu que, se era uma arte marcial cujo propósito era a guerra, seria por essa razão com certeza uma guerra perdida. A não ser que se tratasse de uma outra guerra, de uma outra cavalaria, de um outro inimigo que talvez só existisse em nós próprios. Por outro lado, os sucessivos movimentos de cumprimento “Rei” e “Yu” à entrada do espaço ao Tokonoma, ao mestre, ao alvo, indicavam que deveria haver naquele local durante aqueles minutos e aquelas horas um espaço e um tempo ultra qualificados. Dir-se-á com razão como o nosso mestre várias vezes afirmou que o Kyudo não é uma Religião, mas contém elementos: posturas, gestos, movimentos, que por serem altamente ritualizados deixam transparecer uma origem religiosa. Trata-se, no meu entender, da própria gnose japonesa se assim se pode chamar, tanto do lado do esoterismo budista como do esoterismo xintoísta. Pretendo utilizar aqui a palavra esoterismo no seu verdadeiro sentido de eso = interior, e deve-se ao facto de não conhecer outra melhor para o que desejo exprimir. Esta chamada de atenção é por haver muito esoterismo que subtilmente passou a ser completamente exterior, sem que as pessoas se tenham apercebido desse facto, mergulhando-as num mar de fantasias. O pensador António Telmo dirá a propósito e com uma subtil ironia que não é esoterismo, é “esoturismo”.
Sabemos que em todas as tradições o arco e a flecha se revestem de um carácter profundamente simbólico e operativo. A ligação do arco e da flecha ao amor e ao cupido, e da flecha ao relâmpago ou raio iluminante são disso exemplo. No Japão é ainda utilizado com esta finalidade em muitas cerimónias solenes como acto de abertura de um evento e designa-se por Hikime.
Este tiro tem três intervenientes, dois ajudantes e um atirador vestidos a rigor com belíssimas roupas de seda bordadas, a cabeça coberta por um chapéu que faz lembrar um barrete frígio. A flecha utilizada nestas ocasiões apresenta, em vez de uma ponta aguçada, uma pequena cabaça com um orifício que emite um som e que é audível durante o voo. A flecha vai colidir suavemente sobre um pano azul que se encontra a cerca de 28 metros e na frente do atirador. Tivemos a honra e a oportunidade de organizar e participar numa cerimónia liderada pela nossa actual mestra Sr. Maky Kudo, que se realizou no Convento da Arrábida no dia 21 de Junho de 2008, por ocasião do 6º Seminário da Associação Portuguesa de Kyudo, e com a colaboração da Fundação Oriente. Esta cerimónia é altamente ritualizada e o objectivo do tiro é o de libertar a atmosfera dos maus espíritos.

Hikime: Maky Kudo no Convento da Arrábida
Quando os portugueses chegaram ao Japão no séc XVI e usaram as espingardas, que eram uma novidade para os japoneses, o arco foi posto de parte, perdendo utilidade marcial, passando a ser utilizado apenas ou sobretudo em actos solenes, incorporando por esse facto aspectos das duas religiões e da aristocracia em presença.
É sabido que toda a tradição genuína é “contra corrente”, ou seja, é um movimento contrário à voragem do impiedoso Cronos. Qualquer acto de meditação do “conhece-te a ti próprio” é tradicional deste ponto de vista. O Kyudo é, por esta razão, completamente tradicional. A observação de si próprio, começando pelo corpo, nos músculos, nos ossos, em qualquer ponto dos pés à cabeça, que exige uma continuidade da atenção desde o início até ao momento após o tiro, centrada no Hara, esse ponto que fica entre o umbigo e a púbis, que é objectivamente o centro do corpo já esquecido pelos ocidentais, e que é obvio para qualquer japonês. Quem está atento sabe que esta observação é completamente ausente no nosso dia-a-dia, mas é ainda mais ausente quando passamos para a observação das emoções, seja de júbilo por se ter acertado, seja de desalento por se ter errado, seja de inveja do companheiro que acertou, seja a falta de determinação e energia na execução dos movimentos, para só falar de algumas. Esta dualidade no ser humano entre o que observa, sem juízo moral, e o que age e sente é claramente iniciática. Todos os comentários que se fazem a propósito, sobre as supostas “energias” envolvidas nestas acções tentam reduzir os planos superiores do ser à chã materialidade da Física da equação matemática e reconduzem o ser humano novamente ao seu estado de adormecimento.
Antecedentes: 1.ª parte
(continua)

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