(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



sábado, 28 de fevereiro de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 2

Ao redor de Jaime Cortesão
I – Um estranho esquecimento
por Pedro Martins

Houve na Renascença Portuguesa um triunvirato insigne, formado por Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra. Entre os vultos que integraram o movimento portuense, foram eles os que, no seu seio, lograram exercer a influência mais duradoura. É certo que Fernando Pessoa, movido por um ímpeto decisivo, também por ali passou – para anunciar urbi et orbi o cometimento genial da nova poesia portuguesa. Mas o aparato luminoso da sua rota apontava já a outras constelações: a fugacidade meteórica com que o ensaísta debutante perpassou as laudas d’A Águia era bem a promessa de um estrelato singular a que, em verdade, nenhum dos três maiorais renascentistas se conseguiu, entretanto, alçar. E se, em nossos dias, os nomes de Pascoaes e Leonardo começam a granjear indícios de moderado reconhecimento, ao invés, dá-se presentemente um caso estranhíssimo com a memória de Cortesão: a aura que, anos a fio, nimbara de prestígio clássico a sua figura tremenda como que se dissolveu nas trevas do oblívio.

Nas últimas décadas, com efeito, o vulto do historiador de Os Descobrimentos Portugueses tendeu a cair num esquecimento tão penoso quanto inaceitável. A sua poesia, que no alto juízo de Pessoa seguia a par das melhores estrofes de Pascoaes, é hoje simplesmente ignorada, quando não combatida, por amplos sectores de uma putativa crítica literária, como se infere da defesa denodada que António Cândido Franco, ante o inevitável juízo estreito de Óscar Lopes, teve de fazer do autor de Glória Humilde. As suas peças teatrais, como as de outros dramaturgos que por desdita nasceram em Portugal, estão há muito ausentes dos nossos palcos. E as suas Obras Completas, em curso de publicação na Imprensa Nacional – Casa da Moeda, marcam passo vai para uma década, depois da vigorosa arrancada editorial que, durante os anos noventa, permitiu devolver ao público ledor alguns dos títulos fundamentais da sua extensa produção. No que toca à bibliografia passiva, o panorama é ainda mais desolador. À parte o precioso volume documentado que Alfredo Ribeiro dos Santos lhe consagrou em 1993 (Jaime Cortesão – Um dos Grandes de Portugal), e o livrinho que José Manuel Garcia já publicara em 1987 na colecção O Essencial, estarei em crer que nenhuma outra súmula ou obra de fundo permite atestar, desde as comemorações do centenário de Cortesão (ou seja, desde 1984), um assomo de interesse pelo seu legado incomparável.

No próximo ano, não se celebra apenas o centenário da implantação da República. Assinala-se também a passagem de um século sobre a publicação d’A Morte da Águia, poema heróico que foi o livro de estreia de Jaime Cortesão, e é título fundamental no rol livresco da nova poesia portuguesa. E comemora-se ainda o cinquentenário da morte do autor de O Humanismo Universalista dos Portugueses, homem livre e patriota que, como poucos, soube honrar a ideia republicana entre nós.

Entre o formal nascimento literário do escritor e o desaparecimento físico do corajoso cidadão coube uma assombrosa aventura espiritual de meio século. O ano de 2010 tem, desta sorte, o condão fascinante dos oráculos. Pelo seu decurso se verá em que medida o insinuante perfume da amnésia nos vem inebriando num sono de morte.

ALBOTINI, UM CABALISTA PORTUGUÊS

Tradição. N'O Lugar da Alma prossegue a série Sábios Portugueses das Três Tradições. Mas há uma ligeira mudança de agulha: o sufismo deu lugar à kabbalah e é de Albotini que se fala agora nesta página da autoria de Abdel Hayy. Yehudah ben Rabbi Moshe Albotini, cabalista português do século XVI, foi discípulo de Abuláfia e Rabi em Jerusalém entre 1500 e 1520.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

A PONTA DO VÉU, 6

Messianismo. E profetismo. Duas das coordenadas que assinalam o ensaio de filosofia da história com que, no primeiro número dos Cadernos, Pedro Paquim da Fonseca Ribeiro se irá estrear em letra de forma, assinando com o pseudónimo de Fuas Paquim. Para o Preâmbulo de um Estatuto Senatorial, de que adiantamos um excerto, encerra uma proposta porventura ousada (mas onde há pensamento sem audácia?) pela peculiar visão que nos oferece do princípio aristocrático, mormente na sua articulação com o princípio democrático.
Pedro Paquim da Fonseca Ribeiro nasceu em Lisboa em 1979. Frequentou o Curso de Matemática e algumas cadeiras dos Cursos de Filosofia e Cultura Clássica, mas acabou por enveredar pelo Direito, tendo-se licenciado pela Faculdade de Direito de Lisboa em 2005. Encontra-se a exercer advocacia na capital.
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PARA O PREÂMBULO DE UM ESTATUTO SENATORIAL
Bellum sine Bello
Os senadores são mestres espirituais do sentir pátrio, os representantes da vontade ideal do país.
Não lidam com a política económica e social do país, embora sejam os garantes últimos dos valores da liberdade, fidelidade e fortaleza. Cabe à soberania popular a regulação daqueles domínios através das suas instâncias democráticas.
Ao senado compete prover ao ânimo do país e levar a cabo a sua missão profética, tal como ficou delineada em aberto pelas acções dos heróis, pelos cantos dos poetas e pelas cogitações dos filósofos portugueses – caberá ao senado o fecho dessas profecias, ou melhor, o comando dessa tarefa, já que é o povo, no seu todo, o autor e concretizador das mesmas.
Na verdade a missão de Portugal traduz-se numa vocação ao poderio mundial. Não no sentido de um poder de hetero-determinação mecânica sobre os outros países, mas antes no sentido de uma autoridade, moral e, sobretudo, filosófica, ou duma paternidade, tão espiritual quão natural, a ser exercida sobre o mundo de forma a torná-lo ordenado e feliz.
Vai terminando o ciclo histórico da globalização, tendo cada país adquirido consciência da sua situação no globo, estabelecendo relações com todos os outros. Porém, como qualquer ciclo, a globalização desenvolveu-se no sentido da materialização: cumprindo o seu destino de interconectar o mundo, a globalização foi, ao mesmo tempo, dividindo o mundo e dissolvendo as estruturas tradicionais que se lhe opuseram. Hoje o mundo está ciente dos perigos vindos desta materialização excessiva, que ameaçam o bem-estar, a convivência e a paz mundiais, havendo uma sensação de iminente desencadear das forças do caos e da confusão, sem que se consiga fazer-lhes frente, dada a complexidade e a fragmentação existentes.
(...)
Fuas Paquim

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

PALAVRAS QUE FAZEM VER, 3










[Álvaro Ribeiro salazarista?]
1978. “Esta simples nota de direito constitucional, com suas teses e antíteses, tem por fim, termo ou meta a síntese de que, apesar das ficções jurídicas e burocráticas, que surgiram depois, só de 1910 a 1926 existiu República em Portugal. Decerto que teve ela muitos erros de estrutura, previstos e condenados por Teófilo Braga, mas abonados nas lições universitárias de Marnoco e Sousa; decerto que ela não cumpriu a promessa de reformar a educação pública pelo modelo francês do Sistema de Política Positivista; decerto que o seu partidismo ou partidarismo lhe causou desagregação tão grave, a ponto de um experimentado estadista, conhecedor profundo do significado técnico das palavras portuguesas, ter dito em pleno parlamento que o País já estava a saque. Sempre cobiçada pelos militares, e conquistada sem luta nem dificuldade a 28 de Maio de 1926, a República Portuguesa permaneceu de nome nas moedas e nos selos, mas as suas instituições deixaram de se constituir nos termos definidos pelos pensadores, escritores e artistas.”
Álvaro Ribeiro

(in "Pela República, Contra o Socialismo - Teses e Antíteses", Dispersos e Inéditos, III, INCM, 2005)


[Álvaro Ribeiro e a canonização de D. Nuno Álvares Pereira]
1978.
“Só a Deus pertence a virtude de saber quais os homens e as mulheres que verdadeiramente alcançaram a santidade, enquanto as nossas dúvidas podem permanecer por muitos séculos, como está acontecendo com as delongas no processo de canonização do Beato Nuno Álvares Pereira, já que só pode ser por nós designado santo aquele ou aquela a quem tal qualificação for atribuída pela Igreja Católica.”
Álvaro Ribeiro

(in "Feriados Nacionais", Dispersos e Inéditos, III, INCM, 2005)


[Álvaro Ribeiro perante o Concílio Vaticano II]
1981. “Só os estudiosos sinceros das ciências ocultas – melhor, das causas ou das qualidades ocultas –, se mostraram capazes de, por sanção ou por oração, relacionarem o espírito humano com o espírito divino. A arte de filosofar é, por conseguinte, uma actualização constante das provas da existência de Deus. A Igreja Católica, hoje mais perplexa do que ontem, ou talvez mais prudente, terá de aceitar, enfim, o messianismo de S. João Evangelista e de Joaquim de Floris, libertando a liturgia de praxes e de dogmas que representam rotinas pretéritas, já insignificantes ou talvez hipócritas.”
Álvaro Ribeiro

(in "Carta Prefacial", Dispersos e Inéditos, III, INCM, 2005)

A PONTA DO VÉU, 5

Grécia. Eis uma nota comum aos dois escritos em prosa que o poeta Avelino de Sousa nos deu para publicação no primeiro número dos Cadernos de Filosofia Extravagante, no qual será ainda dado à estampa um notável poema da sua autoria. Por ora, antecipamos, na íntegra, aos leitores um daqueles textos em prosa, intitulado Um Galo a Asclépio.

Avelino de Sousa publicou dois livros de poesia, Nostalgia (1988, Prémio do Município de Lisboa) e Retratos Apócrifos seguidos de Doze Canções (1991). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas, entre as quais Colóquio/Letras (nºs 108 e 123/124). Traduz poesia, sobretudo de poetas de língua castelhana e francesa. Vive em Setúbal.
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UM GALO A ASCLÉPIO

Conforme narra seu discípulo Platão, antes de morrer Sócrates entrou num banho para se purificar. Recebeu, depois, seus filhos e as mulheres da sua parentela, a quem deu os últimos conselhos.

Ainda proferiu um louvor a um servo que lhe veio anunciar o fim, após o que disse: «Tragam o veneno ou o preparem», sem se importar de ainda não serem as horas prescritas e do sol não se ter já escondido para lá das últimas montanhas. Assim pensava: “O que chegou ao seu termo não adianta adiar”.

Um outro servo lhe depositou o copo de cicuta em sua mão. Presume-se que tenha endereçado uma última prece aos deuses, após o que levou o copo aos lábios e o esvaziou de um só trago. Ante o choro dos companheiros, nessa hora funesta da partida, num último assomo de coragem lhes pediu para que dominassem as emoções.

O efeito do veneno cedo se fez sentir, começando por anestesiar os pés e subindo daí pelo corpo acima. Estava deitado e com a face coberta. Mas antes que o último sopro de vida se ausentasse do seu coração, descobriu-a e disse estas derradeiras e imemoriais palavras:

«Ó Críton, nós devemos um galo a Asclépio.
Satisfaz esta dívida e não te descuides!».

Significava, com elas, que se curava da doença da vida e tal como o galo é o arauto da aurora, assim ele entrava pelos portões da vida que não fenece, saudando o sol da imortalidade.

Avelino de Sousa

UM PEDIDO DE DIVULGAÇÃO

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

«CADERNOS» APRESENTADOS EM LISBOA

18 horas. Eis a hora definida para a realização da sessão de apresentação dos Cadernos de Filosofia Extravagante que terá lugar no próximo dia 22 de Março, domingo, na Galeria Matos-Ferreira, em Lisboa, e que contará com a participação de António Telmo, Pedro Martins e Renato Epifânio. Depois da sessão de lançamento, agendada para o dia anterior, 21 de Março, pelas 15 horas, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, esta é já a segunda sessão dedicada à apresentação do novo projecto da Serra d’Ossa.

Cumpre registar que o agendamento desta sessão se tornou possível graças ao empenhamento de Renato Epifânio, um dos directores da revista Nova Águia, que, num gesto de grande simpatia, propôs à Serra d’Ossa que fizesse a divulgação, naquele espaço, das suas novidades editoriais, cedendo, para o efeito, uma data inicialmente destinada a um evento da Zéfiro, editora que publica aquela revista. Este é um gesto invulgar, a merecer o nosso público reconhecimento, e um exemplo louvável de sã convivência entre projectos culturais distintos, mas com algumas afinidades.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

SIMPÓSIO SOBRE OS TEOREMAS DO «57»

Alteração. É já no próximo domingo, dia 1 de Março, pelas 15 horas, na Livraria Fonte de Letras, em Montemor-O-Novo, que se inicia o ciclo de simpósios 12 Teoremas do 57 – Actualidade dos Teoremas do Movimento de Cultura Portuguesa.

Há uma alteração ao programa do simpósio inaugural, que, como os restantes, é promovido pelos Cadernos de Filosofia Extravagante. Assim, e diversamente do que fora anunciado, será Isabel Xavier, e não Pedro Sinde, a apresentar o teorema relativo à poesia. No mais, tudo se mantém igual: António Telmo apresentará o teorema relativo ao romance; e Elísio Gala fará o mesmo quanto ao teorema relativo à antropologia.

A PONTA DO VÉU, 4

Diálogo. Ou de como a filosofia portuguesa, partindo de aspectos comuns, pode con-versar com distintas orientações de pensamento, preservando, todavia, com serenidade e firmeza, o que lhe é próprio – eis um entendimento possível para a reflexão – Repensar o Problema da Filosofia Portuguesa – que Elísio Gala nos propõe no primeiro número dos Cadernos de Filosofia Extravagante, e da qual revelamos agora os parágrafos iniciais.
Elísio Gala nasceu em Lisboa em 1965 e formou-se em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa, leccionando presentemente esta disciplina na Escola Secundária do Redondo. É autor de diversas obras, entre as quais destacamos As Linhas Míticas do Pensamento Português (coordenação, com Paulo Samuel, das actas do colóquio, Fundação Lusíada, 1995), A Filosofia Política de Álvaro Ribeiro (Fundação Lusíada, 1999) e Santo Agostinho na Cultura Portuguesa – Contributo Bibliográfico (com Joaquim Domingues e Pinharanda Gomes, Fundação Lusíada, 2000). Traduziu e anotou para a Guimarães Editores o Fédon e A República, de Platão, contando ainda este último diálogo com um prefácio da sua autoria.
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REPENSAR O PROBLEMA DA FILOSOFIA PORTUGUESA
(Álvaro Ribeiro, José Marinho e o Padre Manuel Antunes)

O título escolhido para encabeçar esta reflexão decorre de uma constatação e de uma associação. Começando por esta última, quais os elementos explícitos ou implícitos desta associação? Explícitos são os títulos da obra de ensaios “de reflexão e de prospecção” denominada Repensar Portugal da autoria do Padre Manuel Antunes e da obra de “natureza programática e didáctica” de Álvaro Ribeiro intitulada O Problema da Filosofia Portuguesa. Implícitos, são os artigos do Padre Manuel Antunes «Haverá Filosofias Nacionais?», «Da situação da Filosofia», «Filosofia da Cultura: sua necessidade»; de Álvaro Ribeiro «A Filosofia Portuguesa não é como a de outros povos na Europa moderna e obriga-nos a difíceis e demoradas investigações históricas», «O problema da Filosofia Portuguesa perdeu já a actualidade»; e de José Marinho «Filosofia Portuguesa e Universalidade da Filosofia». Eis o horizonte de textos e reflexões que nos suscitaram o título.

A constatação que inspirou a titular deste modo esta reflexão foi a repetida insistência por alguns publicistas e literatos, de uma frase do Padre Manuel Antunes que responde, segundo eles, de modo conclusivo ao problema da existência ou não de filosofias nacionais. A resposta resume-se na seguinte frase retirada do artigo «Haverá Filosofias Nacionais?»: “se é nacional não é filosofia e se é filosofia não é nacional.” O alvo das suas críticas é sempre Álvaro Ribeiro, tão pouco lido e meditado quão injustamente tratado. Ora, quanto a nós, o problema formulado pelo Padre Manuel Antunes tem mais o carácter de uma interrogação, do que o de uma pergunta. Para as perguntas há respostas, o que já não sucede com as interrogações. Embalados e adormecidos na resposta esquecemo-nos da interrogação. O pensado é substituído pelo achado. “Acho” que não há filosofia portuguesa, eis o que exprimem as afirmações de tais publicistas e literatos, que em boa verdade há muito deixaram, ou mesmo nunca pararam, para “pensar” se há filosofia portuguesa. Quanto a nós, o Padre Manuel Antunes manteve viva a interrogação, como se pode depreender pelo título e conteúdo da obra Repensar Portugal. Eis o que pretendemos demonstrar.

(...)

Elísio Gala

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 1

Uma das vertentes do projecto dos Cadernos de Filosofia Extravagante consiste na edição, na Internet, da página (vulgo blogue) que o visitante está a ler. Nela se divulga a edição em papel da publicação e se dá notícia das iniciativas que são promovidas sob a sua égide. Por outro lado, pretende-se que este espaço esteja à disposição de todos aqueles que, de uma ou de outra forma, integram ou venham a integrar o círculo dos Cadernos, de forma a que nele possam publicar os seus escritos (apontamentos, crónicas, perfis, reflexões, recensões, etc.) ou as suas imagens. De alguma sorte, trata-se de prolongar, com carácter de permanência, a presença e a actualidade dos Cadernos junto dos seus leitores. Assim nasce a rubrica Extravagâncias, abarcando as colaborações que, pelo menos no imediato, extravasam a publicação em papel. O texto inaugural, testemunho de homenagem a Dalila Pereira da Costa, é de Cynthia Guimarães Taveira.
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Dalila Pereira da Costa, Oração e Invocação
por Cynthia Guimarães Taveira

Detida e retida no primeiro livro da autora que teve nas mãos, A Nau e o Graal. Detida pelos seus imaturos dezassete anos. Retida por essa estranha forma de escrever e pela complexidade da disposição de palavras. Em suspensão esteve nessas primeiras duas páginas, não sabendo se iria progredir nessa viagem, não sabendo como ler. “Como ler isto?”, perguntava-se. Como ler Dalila? E, suspirando, avançou nas páginas, como se avança no mar, sem querer saber de monstros marinhos, sem querer saber se entendia ou não o que ali estava. Avançava simplesmente. E nesse texto descobriu a fórmula da leitura. Primeiro sentir esse compasso das ondas, nos ritmos, nas cadências, nos silêncios. Tantos silêncios. Depois, ver nascer a pouco e pouco a oração. Dádiva dessas letras ao céu, devolução a Deus dessa serenidade. E eis que o texto agora se projectava para cima, em voz alta, em gratidão. Lia páginas da Dalila para os anjos ouvirem. Como uma sinfonia desmultiplicada em sentidos, agudos pela intensidade, e por vezes graves e firmes como as rochas do Porto. E eis que essa oração sem pedidos, exigências, por nada disso constar no texto, apenas louvor, se transmutava em evocação. Evocações infinitas do Belo, do Bom, da Bem-aventurança. Cada autor tem uma forma de ser lido, um tom interior ajustado ao tom das palavras, das cadências, da música. Em Dalila descobria a revelação a cada passo e um novo mundo surgia, nascido do velho e do gasto. O próprio mundo mas desocultado. O misticismo já não fazia sentido como corrente, como devaneio. Era enfim vivido, despoletado pela força da palavra-oração. E não era solitário: de um lado a terra inteira, espreitando no mais simples pássaro; do outro, Deus, num aceno de um simples anjo. A evocação foi o resultado da sua leitura, o desapego intelectual a sua condição. Palavras-anjos que nos conduzem:


“Mas para que cada homem, num certo espaço e tempo da terra, e neste, como pátria, possa colaborar nessa nova redenção, como assunção, transfiguração sua e do mundo, necessário se torna que, por uma gnose amante, todos os estados sucessivos, e sucessivamente vividos, ultrapassados, sejam conhecidos e esgotados, em todas as suas virtualidades. O corpo e a alma terão de ser, no amor, totalmente assumidos e iluminados pelo espírito (ou o inferno e a terra pelo céu). Até ao seu mais recôndito interior e seus extremos.

Então também por essa ignição derradeira (por ele operada) todas as escórias cairão e corpo e alma (ou inferno e terra) delas libertadas, puras, possuirão a sua vera natureza, primeira, gloriosa.

Assim se assumirá, ultrapassando-as pela união da complementaridade, para além da oposição (aparente): noite e dia, corpo e alma, vigília e sonho, terra e céu, mundo visível e invisível, morte e vida.

Assumindo aí o homem a sua vera posição teológica, no cosmos - como o seu ponto de Manifestação.

E então também, para transcender-se e servir, ele fará transcender todas as suas possibilidades latentes, todas as suas forças inclusas, escondidas e não usadas em si (depois da sua idade primeva, paradisíaca). E de si um novo homem (de novo o primevo), de si desconhecido e não suspeitado até agora, depois dessa idade surgirá.

Do seu interior mais fundo, que agora ele verá que se une e identifica ao exterior mais remoto, como o Real, ele fará erguer-se as forças de seu conhecimento amor: e então de uma forma nova usará a poesia, a mística e a filosofia: enlaçada, multiplicada, global e vertiginosamente.”

in A Nau e o Graal, Dalila L. Pereira da Costa, Lello & Irmãos Editores, 1978 (pág. 18/19).

A PONTA DO VÉU, 3

Segredo. Eis, seguramente, a tónica d’A Noz, um escrito da autoria de António Carlos Carvalho. Foi um dos primeiros textos que nos chegaram com destino aos Cadernos. E, de entre os que integram a nova publicação da Serra d’Ossa, será o primeiro a que iremos levantar a ponta do véu, através de um excerto. Por ele se evidenciam as marcas, profundíssimas, que a influência da tradição hebraica deixou na cultura portuguesa.

António Carlos Carvalho nasceu em Lisboa em 1947. Licenciou-se em Ciências Religiosas, com uma tese sobre O Espírito Santo no Pensamento e Obras dos Padres da Igreja. Foi profissional de jornalismo entre 1968 e 2004 (A Capital, Diário de Notícias) e autor de programas de rádio na Rádio Comercial e na RDP (Antena 2). Colaborou em diversos programas e séries da RTP, tendo sido consultor (livros e autores) do programa Acontece (RTP2), desde a sua primeira emissão, em 1994, até à última, em 2003.
Dirigiu a colecção «Janus» da editorial Vega (de 1976 a 1978), prefaciando todos os volumes. É autor de diversos livros, entre os quais destacaremos Para a História da Maçonaria em Portugal, 1913-35 (Vega, 1976), O Triângulo Místico Português (Liber, 1980), Os Judeus do Desterro de Portugal (Quetzal, 1999), Prisioneiros da Esperança – Dois Mil Anos de Messias e Messianismos (Âncora, 2000) e Vieira e os Judeus (Contexto, 2001). Actualmente é tradutor.

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A NOZ

Eles partiram, quase todos, desterrados da terra que era a sua. Quando falavam de si mesmos, diziam «os senhores do desterro de Portugal». Eram os judeus portugueses, isto é, aqueles portugueses que eram diferentes.
Partiram, na sua maioria, impelidos pelo ódio, pela calúnia, pela inaceitação do que é diferente de nós, pela sua incapacidade de continuarem a viver numa terra que consideravam pátria sua mas onde denúncia e perseguição se transformaram em modo de vida ou de sobrevivência para outros.
Partiram mas deixaram marcas. Marcas tão profundas que se tornaram invisíveis, secretas, segredos. Deixaram-nos o segredo. O gosto e a necessidade do segredo. É um paradoxo. O segredo ama-se, cultiva-se, alimenta-se, porque afinal «é do segredo que tudo depende», «o mundo só pode subsistir pelo segredo» -- lê-se numa passagem do «Zohar», o «Livro do Esplendor» (Zohar III, 145 a), esse imenso tratado de hermenêutica judaica que perscruta os segredos da tradição secreta de Israel.
Ou como dizia um kabbalista peninsular do séc. XIV, Joseph de Hamadan, «cada palavra da Torah, sem excepção, é um segredo dissimulado e profundo». Falava da Torah no texto original, hebraico, evidentemente, não das traduções, que nos enganam com a sua linearidade, a ilusão de que está tudo contido no sentido literal passado para as outras línguas. Ora na leitura do texto da Torah tudo é mistério... mesmo o sentido literal. Os exegetas judeus, tal como os cristãos, medievais sabiam que o texto sagrado tinha três ou quatro níveis de interpretação: Pshat (simples ou literal), Remez (metáforas, alegorias e parábolas), Drash (analítico) e Sod (secreto), cujas iniciais formam o acrónimo Pardes, jardim, vergel, paraíso.

(...)

António Carlos Carvalho

domingo, 22 de fevereiro de 2009

TRÊS TRADIÇÕES

Ibn 'Arabî. Deste grande místico do Islão e dos seus mestres portugueses nos fala Abdel Hayy na série Sábios portugueses das três tradições. Trata-se do blogue O lugar da Alma, que, desde Mértola, se propõe pensar Portugal a partir da sua tradição.

CICLO DE SIMPÓSIOS SOBRE OS TEOREMAS DO «57» E A SUA ACTUALIDADE

Montemor-O-Novo. Na Livraria Fonte de Letras, junto à Câmara Municipal, durante o ano de 2009. A organização é dos Cadernos de Filosofia Extravagante. O primeiro simpósio realiza-se já no próximo domingo, 1 de Março, pelas 15 horas. Nele serão apresentados três dos doze teoremas publicados pelo «57».

António Telmo apresentará o teorema do romance.
Isabel Xavier apresentará o teorema da poesia.
Elísio Gala apresentará o teorema da antropologia.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

A PONTA DO VÉU, 2

Fotografias. São de Tiago Sobral Cunha as que poderá encontrar no primeiro número dos Cadernos de Filosofia Extravagante. O motivo dominante serão as árvores. Como a filosofia, elas desdobram-se em ramos e crescem para a luz. E se, por vezes, o nevoeiro as envolve, é porque o mistério persiste.

Tiago Sobral Cunha nasceu em Lisboa em 1969. Designer formado pelo IADE, mas também desenhador e fotógrafo, especializou-se no desenho com recurso a aparelhagens informáticas. É autor do grafismo de diversos livros e outras publicações, disso sendo recente exemplo a concepção da capa de Filosofia do Ritmo Portuguesa, de Rodrigo Sobral Cunha, editado pela Serra d'Ossa.

TEOREMAS DO «57»: A ANTROPOLOGIA


TESE O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, tal como hoje existe, não comportando a queda a degradação do ser humano.
Corolário:
Nada depende do homem e a antropologia é o domínio da sujeição teocrática.
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ANTÍTESE O homem é o produto de uma transformação rectilínea
com origem no animal inferior.
Corolário:
Nada depende do homem e a antropologia é o domínio da sujeição biológica.
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SÍNTESE O homem é um ser em evolução cíclica a partir de várias quedas sucessivas, além da original.
Corolário:
A missão do homem é ajudar a evolução da natureza.

A PONTA DO VÉU, 1


Ilustrações. A um mês do lançamento dos Cadernos de Filosofia Extravagante, vai sendo tempo de levantarmos a ponta do véu que envolve o novo projecto da Serra d'Ossa. Começamos por mostrar uma das ilustrações que se encontram no interior do primeiro número dos Cadernos. São da autoria da pintora Cynthia Guimarães Taveira.
Cynthia Guimarães Taveira nasceu em Londres (Inglaterra) a 6 de Setembro de 1969. Frequentou a Escola Secundária António Arroio. Licenciou-se em Antropologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e tem a frequência do Mestrado em Estudos Interdisciplinares de Estudos Portugueses da Universidade Aberta. Conta com dez exposições efectuadas ao longo dos últimos três anos.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

UM NOVO BLOGUE











O lugar da Alma. Assim se intitula a página que, a partir de Mértola, Abdel Hayy dedica ao esoterismo das três religiões abraâmicas, que historicamente confluem na formação do nosso pensamento. Pensar Portugal a partir da sua tradição é o lema deste novo blogue, a que o leitor pode aceder em
http://lugardealma.blogspot.com/
Eis um projecto a seguir com muito interesse.

TEOREMAS DO «57»: A POESIA

TESE A poesia essencial é o lirismo.
Corolário:
Valorização de todas as formas culturais da subjectividade sem reflexão.

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ANTÍTESE A poesia essencial é a didáctica.
Corolário:
Poemas edificantes de doutrinas políticas, morais e religiosas.

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SÍNTESE A poesia essencial é o drama e a epopeia.
Corolário:
Primado da poesia que ascende a uma concepção do mundo e do homem.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

PALAVRAS QUE FAZEM VER, 2

Bruno. Les milieux culturels de la ville de Porto préparent la célébration du premier centenaire de la naissance du philosophe José Pereira de Sampaio, qui aura lieu le 30 novembre 1957. Déjà dans la presse périodique on voit divers articles sur l’écrivain que signa ses livre du pseudonyme de Bruno, d’où la liaison Sampaio-Bruno. L’auteur de A Ideia de Deus (L’Idée de Dieu) appartient à la tendance caractéristique de la philosophie portugaise, c’est-à-dire, qu’il fut un libre penseur religieux, aussi éloigné du positivisme agnostique que du catholicisme orthodoxe, donc mis en dehors de l’enseignement des institutions publiques. Ni le Municipe de Porto, ni l’Université de Porto, ni l’État portugais n’ont encore prononcé une parole officielle d’hommage à celui qu’on appelle déjà le fondateur de la philosophie portugaise.

L’œuvre de Sampaio-Bruno mérite bien l’attention des étudiants français. Le philosophe a été émigré politique à Paris, et ses livres sont pleins d’aperçus sur la culture française. Sectateur des doctrines de Martinez de Pasquallys, de Claude de Saint-Martin et peut-être disciple de Joséphin Peladan, Sampaio-Bruno a réussi dans son originale conciliation de la libre pensée scientifique avec la profonde philosophie religieuse.

Álvaro Ribeiro

(texto integral de “Portugal”, in Dispersos e Inéditos, II, INCM, 2004)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

TEOREMAS DO «57»: O ROMANCE


TESE O romance é a expressão da natureza decaída.
Corolário:
Obediência à regra de Stendahl de que o romance é um espelho que se transporta ao longo de um caminho.

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ANTÍTESE O romance é a expressão da sociedade.
Corolário:
Subordinação da literatura às doutrinas religiosas, políticas e morais.

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SÍNTESE O romance é a expressão do sobrenatural.
Corolário:
A literatura é um meio de conhecimento e de iniciação. Alargamento à literatura da regra teatral de Aristóteles: a arte é a imitação da Natureza; o conceito aristotélico de natureza é o que na filosofia portuguesa corresponde ao sobrenatural.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

PALAVRAS QUE FAZEM VER, 1

Livre-Pensador. "Livre-pensador é o homem capaz de pensar livremente os valores - o bom, o belo e o vero - e mais ainda aquilo que os unifica e afinal garante. O problema do infinito incita o livre-pensador a meditar heroicamente a difícil temática religiosa. Nisso está o mérito; nisso está a dificuldade; nisso está o perigo; porque o livre-pensador, ao contrário do positivista, avança por um domínio delimitado pelos escolásticos, mas acelera a evolução espiritual da Humanidade."

Álvaro Ribeiro

(in "Sampaio Bruno e a Verdade Oculta", Dispersos e Inéditos, II, INCM, 2004)

domingo, 15 de fevereiro de 2009

OS TEOREMAS DO «57»

Simpósio. Os 12 TEOREMAS DO «57», de que, nos próximos dias, antecipando o simpósio de 1 de Março, aqui publicaremos os três primeiros, foram apresentados em Dezembro de 1957, num número duplo da revista (3-4), que tinha António Quadros como director. Acompanhava-os a nota que agora deixamos aos leitores:

“É nosso intuito, ao publicarmos estes teoremas, não só desfazer dúvidas acerca das doutrinas que propugnamos, como também impedir aquela falta de seriedade muito comum em certos ambientes portugueses, que atribui intenções e finalidades a quem, como nós, de alma aberta e espírito compreensivo, defende e afirma um pensamento que não se lhes adequa. Para maior clarificação do leitor, não nos limitamos a apresentar os nossos teoremas, expressos nas sínteses do «57», mas precedemo-los das teses e antíteses em que se opõe a dualidade dominante que divide os portugueses cultos do nosso tempo. Assim, o leitor compreenderá o que negamos (tese e antítese) e o que afirmamos (síntese), ou melhor, o que pretendemos transcender num movimento real a que damos o esquema vivo da dialéctica hegeliana. A publicação destes teoremas não é apenas o sumário de uma doutrina; todos os teoremas apresentados se fundamentam em artigos e ensaios publicados pelos seus redactores nos três primeiros números do «57». No conjunto dos teoremas, não deve o leitor procurar um bloco dogmático: entre alguns deles, se não se manifestam contradições, exprime-se uma diversidade que representa a liberdade singular de cada um. Princípio essencial para todos nós, é o de que só na variedade e na compreensão das diferenças, pode haver seriedade de pensamento e unidade de acção.”

TESTEMUNHO

O Canto do Sol. É o título da entrada que Miguel Conceição, no blogue Sabedoria Perene, dedica a'O Canto dos Seres, de Pedro Sinde.
[actualizado o blogue da Serra d’Ossa]

sábado, 14 de fevereiro de 2009

«57» NA INTERNET

57. A colecção deste órgão do Movimento de Cultura Portuguesa, cujos teoremas irão ser apresentados e debatidos, ao longo de 2009, num ciclo de simpósios promovido pelos Cadernos de Filosofia Extravagante, pode ser consultada, em suporte digital, através desta ligação ao sítio da Hemeroteca Municipal de Lisboa.

CICLO DE SIMPÓSIOS


12 TEOREMAS DO 57
Actualidade dos Teoremas do Movimento de Cultura Portuguesa
1 de Março de 2009, às 15:00
Apresentadores e teoremas:
António Telmo e o Romance
Isabel Xavier e a Poesia
Elísio Gala e a Antropologia

Teoremas do 57. Ao longo de 2009, os Cadernos de Filosofia Extravagante promovem em Montemor-O-Novo, na Livraria Fonte de Letras (sita na Rua das Flores, 10/12, junto à Câmara Municipal), um ciclo de quatro simpósios dedicados à apresentação e ao debate dos 12 Teoremas do «57», originalmente publicados em Dezembro de 1957, num número duplo (3-4) daquele órgão do Movimento de Cultura Portuguesa.

A ordem de apresentação e de ordenação dos teoremas é a seguinte:

I Simpósio – Antropologia / Poesia / Romance
II Simpósio – Filosofia da História / Universidade / Pátria
III Simpósio – Teatro / Artes Plásticas / Arquitectura
IV Simpósio – Indivíduo / Liberdade / Propriedade

Cada interlocutor convidado apresentará durante dez minutos um teorema.

Finda a apresentação iniciar-se-á o debate alargado a todos os convivas do simpósio.

A anteceder a realização de cada um dos simpósios, os teoremas respectivos serão publicados no blogue dos Cadernos.

DIA DE REIS

Celebração dos Reis. É uma tradição que já vem de longe na filosofia portuguesa, e cuja memória próxima remonta ao reatamento verificado em 2007. No mês que passou, essa tradição foi cumprida nas Caldas da Rainha, no dia 10, um sábado cheio de frio e de sol. Ao almoço, que antecedeu o encontro, os Cadernos foram o tema dominante da conversa.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

APRESENTAÇÃO

António Cândido Franco, escritor laureado e professor doutorado pela Universidade de Évora, durante a comemoração dos 150 anos de filosofia portuguesa, organizada e animada por Pedro Martins na Biblioteca Municipal de Sesimbra, declarou que esta, a filosofia portuguesa, se tornou objecto “de uma indiferença quase generalizada”, que “vive um descrédito largo, com juízos críticos em geral negativos e movimentos declarados de antipatia”. E exemplifica com o desprezo também generalizado de que são vítimas os dois principais mentores da filosofia portuguesa: “ninguém conhece Álvaro Ribeiro, ninguém lê uma linha de José Marinho”.

Perante tal sentença, e vinda de quem vem e de onde vem, pôs-se-nos o problema, a nós, os promotores dos 150 anos de filosofia portuguesa, de como não deixar morrer um movimento que julgávamos impor-se por si próprio, tal a sua duração e o valor dos que o mantiveram no decurso de século e meio. Nós os poucos que ainda a amamos começámos a pensar naquilo que deveríamos fazer para que não se extinguisse a chama que durante tantos anos ardeu sem queimar a sarça da indiferença geral. Decidimos então mudar-lhe o nome a essa nossa filosofia. Raciocinámos assim:

Há os capitalistas da literatura e há os pobres da literatura. Aqueles têm prémios que se dão uns aos outros, são propagandeados na televisão, vendem os seus livros aos milhares, aos milhões, têm todos os editores do mundo ao dispor e, mais importante do que isso tudo, são lidos e amados.

Os segundos não têm tudo o que têm os primeiros. São os pobres. Durante 150 anos falaram, falaram, escreveram, escreveram. Hoje ninguém os ouve, ninguém os lê. Desinteresse geral, indiferença, antipatia.

Imaginámos então vários substitutos da palavra portuguesa, porque vimos que nela e não na palavra filosofia é que estava o que devemos esconder e preservar. Ocorreram-nos expressões tais como: Cadernos de uma pobre filosofia; cadernos de uma filosofia esquecida; cadernos de uma filosofia extravagante.

Escolhemos a última. Extravagante. Exactamente, extravagante. Assim ficávamos fora do mundo que não nos queria. Nós, que conhecíamos bem Álvaro Ribeiro e sabíamos compreender bem mais do que uma linha de José Marinho, na qualidade de extravagantes poderíamos continuar a escrever sobre eles, a desenvolver e a aprofundar temas por eles sugeridos, temas que a ninguém já interessam, que a vaga do actual mundo varreu, ocupada como está toda a gente somente com não morrer à fome ou com fazer mais dinheiro.
A palavra extravagante pode ser entendida em várias acepções, conforme registam os dicionários, mas aquelas que melhor se adaptam ao nosso caso são as que a fazem sinónima de estroina ou de perdulário.
Todavia, como disse o poeta, “ter um livro para ler e não o fazer” é coisa deliciosa, assim também é delicioso discretear sobre temas, formular teses e contemplar teoremas que já não dizem nada a ninguém. Perder energias, gastá-las como um estroina do espírito, cogitámos nós, não é, num certo sentido, imitar o Filho Pródigo da parábola do Evangelho?
Eram dois irmãos. O mais novo abandonou a casa do Pai; andou vagueando pelo mundo, estroina e perdulário, mas sem perder no fundo do fundo de si a lembrança da sua superior origem. Um dia regressa e o Pai recebe-o festivamente, com cânticos e com danças. O irmão indignou-se, queixou-se ao Pai: “Então eu que nunca te deixei, que tenho trabalhado para ti e junto de ti terei de suportar que o meu irmão seja assim recebido, que em vez de ser castigado seja acarinhado?”
Algum dia o mundo de Deus há-de ser dos pobres e dos vagabundos. Extravagante é uma nobre palavra. É a única que podemos opor ao articulista. Isto no momento em que recebemos a notícia de que A Razão Animada de Álvaro Ribeiro apareceu nas livrarias reeditada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Um pobre esquecido, lembrado pelos ricos.