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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O CAMINHO DO CAMINHO, 16

Cynthia Guimarães Taveira



Retratos
A tua casa não tem fotografias, observava o amigo. Pois não, respondia enquanto pensava no “porquê” dessa ausência. No Caminho do Caminho, no seu mais íntimo percurso, havia uma incapacidade de lidar com o seu passado. Quando olhava para trás, honestamente, parecia nada ter ficado resolvido e, quanto ao arrependimento, arrependia-se de uma série de coisas, umas mais graves, outras quase inofensivas. Não era o sentimento de culpa, era o arrependimento na sua forma mais pura. Nao gostava de olhar para trás, para a sua vida. Se um dos seus temas preferidos era História dos povos, das suas convulsões e pacificações, quanto à sua vida, alguma coisa o fazia arrepiar-se quando via um retrato seu. O momento, assim cristalizado no papel, parecia não mais voltar e isso provocava-lhe uma angústia demasiado próxima do sofrimento. Esta incapacidade de viajar no seu próprio tempo tinha bem presente a consciência de não conseguir resolver coisa nenhuma. A vida era um constante puzzle com peças ausentes ou pouco nítidas. Era a consciência da sua infinitude que o levava a não se conseguir confrontar com todas as suas acções finitas, encarceradas em contextos sempre demasiado apertados e delimitadores do seu raio de acção.
Não usas relógio, observava o amigo. Não, justificando-se: o tempo flui, sem medida. Todo o universo é mensurável, apenas o tempo é metido à força em relógios porque, não existindo, existe, e, existindo, não existe. O espaço é o corpo, próximo ou longínquo, o tempo é incapturável como a alma: aproxima-se a uma velocidade vertiginosa e escapa-se-nos por entre os dedos com a mesma rapidez. Estamos sempre no centro da ampulheta e, nesse ponto, somos apenas a passagem por onde o tempo flui. O tempo usa-nos, mas não somos o tempo.
Estranhava aquelas pessoas que diziam, com orgulho e com um brilho nos olhos, “não me arrependo de nada”. Como, se a vida era um constante arrependimento do que somos e não fomos, do que somos e não ousámos ser, do que somos e desejamos ser, do que somos e não somos? Ao nascer já somos arrependimento daquilo que não nascemos. Não somos a causa do labirinto, somos o labirinto. Não nos perdemos no labirinto, provocamos, a cada minuto, múltiplos novos labirintos: eles nascem naturalmente a partir das noções de distância que nos separam do acto e da potência, do sonho e da realidade, do humano e de Deus.
Um simples retrato tinha tantas implicações, sentimentais, filosóficas, que preferia não o ver. O retrato era sempre a consciência da sombra da sua vida, o lado negro da meditação, o encontro com a ilusão, o sabor amargo da finitude. A memória em palavras era sempre menos crua, mais subjectiva, mais fantasista, a memória em imagens era sempre um choque para o qual nunca estava preparado porque se arrependia de tudo e a ausência de tempo era a sua única possibilidade de fuga do irresolúvel.

2 comentários:

  1. «Não nos perdemos no labirinto, provocamos, a cada minuto, múltiplos novos labirintos: eles nascem naturalmente a partir das noções de distância que nos separam do acto e da potência, do sonho e da realidade, do humano e de Deus».

    No meu entender, a Cynthia expressou muito bem o seu pensamento ao definir, em sentido lato, o nosso percurso evolutivo. Bonitas e precisas estas palavras «…eles nascem naturalmente a partir das noções de distância que nos separam do acto e da potência, do sonho e da realidade, do humano e de Deus».

    Grande verdade a de que provocamos, a cada dia, os nossos próprios labirintos (Oh! Divina liberdade!) também no exercício constante para nos libertarmos deles.

    Com a estima do
    Eduardo Aroso

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  2. Dalila Pereira da Costa escreveu: "a única forma de se sair do labirinto é pelo alto". Quando li esta frase senti-me iluminada. O tema do labirinto, também muito bem desenvolvido por Lima de Freitas é recorrente na humanidade pois pertence à categoria do simbólico e, na sua dimensão menos elevada, à categoria do psicológico. Às vezes penso que o próprio universo físico é um imenso labirinto, semelhante aos nossos universos interiores, e que, também nesse, nalgum momento, nalgum espaço, há-de haver uma saida pelo alto, para uma outra dimensão.

    Grata pela atenção,


    Cynthia Guimarães Taveira

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