(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



terça-feira, 27 de julho de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 73

Variações sobre um tema de Paul Celan
«Quem anda de cabeça para baixo
tem o céu por abismo debaixo de si».
Eduardo Aroso

Ao António Carlos Carvalho

Na torpe posição
Do pensante que se inverte,
Até mesmo o coração
Não tem o lugar que lhe compete.

E o progresso vai jogando
Ao Carnaval desta maneira;
E nem sequer enxerga
O abismo ali à beira.

Haverá estrelas belas
No sujo e pesado chão?
Ou serão clarões do inferno
Que se contemplam de ilusão?!

Lentos, deixámo-nos cair;
Ficou baço o nosso olhar.
Mas o céu ainda nos espera
Anjos no mais doce cantar.

De cabeça para baixo
Andamos todos nós.
Seja a alma para cima;
Tenha um leve fio de voz.

26-07-2010

domingo, 25 de julho de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 43

António Carlos Carvalho

Paul Celan

Enquanto muitos estão já de férias ou se preparam para isso, nesta «época pateta» em que supostamente não se passa nada de importante (ideia feita desmentida todos os dias pelos noticiários), eu estou afogado em trabalho e preocupações, restando-me muito pouco tempo livre para escrever aqui ou sequer para ler. Enfim, a cada um segundo as suas obrigações e disponibilidades…
Apesar desse constrangimento, tropecei agora nesta frase de Paul Celan, proferida em 1960 -- mas ainda mais actual nestes dias agitados de hoje: «Quem anda de cabeça para baixo tem o céu por abismo debaixo de si».
Não será este o nosso retrato perfeito…?
Celan, que sofreu a fatal atracção de um outro abismo, o das águas, deixou-nos igualmente este desabafo numa carta do mesmo ano:
«Vivemos sob céus sombrios e …existem poucos seres humanos. Talvez por isso existam também tão poucos poemas. As esperanças que ainda me restam não são grandes; tento conservar aquilo que me restou.»
E nós, o que fazemos agora…?

domingo, 18 de julho de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 72




Heresia
Isabel Xavier

Herético
O braço que se ergue
A mão que se abre
Herética
A pele à flor da pele
O silêncio que brotou.
Herético e feliz
O pão e o mel
A boca a que sabe
A que o provou.

Herética
A luz do sol a amanhecer
O dia que finda
A noite a acontecer
Heréticos
Os montes e vales percorridos
A plena certeza dos sentidos.
Herético e feliz
O corpo saciado
À beira - vida abandonado
Herético
O lugar onde morre a heresia
E quem do amor fez liturgia.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

NO 87.º ANIVERSÁRIO DO NASCIMENTO DE ANTÓNIO QUADROS



"Num ambiente social de poetas líricos, senão em valor absoluto, pelo menos com o valor da quantidade, raros são os que amadoreceram a noção do inconsciente individual e que assumiram toda a riqueza substancial e quase infinita do seu conteúdo, já na exegese, já na própria expressão poética. Ainda há quem explique o conceito de poesia pelo conceito de mistério, assim lhe conferindo abusivamente o carácter de uma religião: e não apenas de uma religião, de uma religião de dogma, cujo ritual se fundamentasse, não numa filosofia teológica, mas numa teologia dogmática onde o valor de mistério não pudesse, sequer, se posto em causa. [...] Confortado no seu apressado e espontâneo labor pela convicção do dito mistério, eis que o jovem poeta se põe a cantar, isto é, a falar uma linguagem de rimas, de metros, de palavras incomuns, de imagens alegóricas. Alimenta ele a convicção de que será visitado, misteriosamente, pelo génio poético, pelo génio da invenção, por esse génio subtil e invisível que, misteriosamente, assistiria cada poeta. [pelo contrário] o grande poeta é um homem que assume sobre si a representação de um desiquilibrio psíquico em relação aos outros homens. [...] Em verdade, em sua poética, ele procura comportar-se como inconsciente, na convicção que nos dará assim uma imagem, senão mais lógica e sensata, pelo menos mais verdadeira do mundo. Uma vez entrado nesta zona, que é a zona legítima da invenção, da partogénese criadora, o poeta pode comportar-se de duas formas: ou consciencializar e racionalizar, numa segunda instância todos os seus inconscientes e irracionais [...] ou abandonar-se inteiramente ao delírio do conhecimento inconsciente, relegando para um plano inferior o funcionamento racional. [...]"

sexta-feira, 9 de julho de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 71

A Grande Tareia Cynthia Guimarães Taveira

Gurdjeff
Vi um filme que me deixou a pensar, chamava-se “Sozinha em Tóquio” e contava a história de uma rapariga americana em Tóquio em busca do seu amor que para aí tinha ido trabalhar. Chegada lá, o namorado afinal muda de ideias e decide, ou constata que afinal não gosta dela. Ela fica com um grande desgosto e chora lágrimas sem fim, perdida nas ruas estranhas de Tóquio. Um dia, no meio da chuva e de choros convulsivos, resolve pedir abrigo numa espécie de tasca oriental já fechada àquelas horas. O dono e a sua mulher, benevolamente, dão-lhe então uma sopa. Mas não é uma sopa qualquer, é uma sopa que a faz transformar completamente o seu estado de espírito, de triste passa a alegre, como se tivesse tomado um anti depressivo instantâneo. Instintivamente, a rapariga percebe que existe “arte” atrás daquela sopa e pede ao dono do restaurante que a ensine a fazer tal manjar. Este, que é um mestre na elaboração da sopa, vai recusando tal favor, cedendo apenas ao seu pedido de trabalhar na tasquinha. Nesse trabalho a rapariga é sujeita a todo o tipo de maus tratos por parte do seu dono: ele fá-la passar as “passas do Algarve”, obrigando-a a lavar latrinas, a estar de pé horas sem fim, a lavar panelas. Enfim, uma verdadeira provação oriental. No fim, claro está, ele acaba por ensiná-la a fazer a “sopa mágica” e a história acaba bem. A maior parte do filme é sobre essa relação tensa de amor-ódio entre mestre e discípulo. É da vivência do sofrimento mútuo que nasce a intimidade entre os dois, é do sentimento que nasce a sopa, é com ele e só com ele que esta é capaz de ter alma e de ser, enfim, mágica.

Este artigo tem a ver com as tareias que os ocidentais às vezes levam quando se metem em vias orientais. Lembro-me que uma vez, devido a problemas emocionais, tinha uma dor persistente na barriga. Percebendo que estava completamente desequilibrada, resolvi ir uma tarde a um estúdio onde se praticava zazen, ou seja, uma meditação budista que se pratica sentado. Fiz o que me mandaram, sentei-me na posição devida, e relaxei músculos e contraí outros (o zazen é muito interessante porque a ele preside o espírito barroco do contraste). Fiquei muito tempo na mesma posição, olhando um ponto fixo na parede branca muito perto de mim. Nunca tinha feito aquilo e reparei que o mestre desse templo estava atrás de nós com um pau. De vez em quando batia com o pau nos ombros ou nas costas de um dos meditativos. Pensei para os meus botões que não gostaria muito que ele me batesse, tive até um certo receio. No fundo, ele batia para despertar, porque estando muito tempo parado corria-se o risco de dormitar, perdendo-se assim a posição original. A verdade é que não levei com o pau e saí de lá a planar sobre a calçada portuguesa, leve, leve, como se tivesse asas. A dor de barriga (psicológica ou não) tinha desaparecido, e alguma coisa se equilibrou em mim com tal experiência. Foi este o meu único contacto com o Oriente face a face, corpo a corpo. E não me arrependi.

Frequentemente, nos esoterismos lê-se ou ouve-se falar em despertar. Reduzem-se vários despertares a um único despertar, mas a verdade é que são vários, talvez mesmo infinitos. Mas há de facto um primeiro despertar, provavelmente o mais importante, porque sem ele não há os outros. Mas de que se fala quando nos referimos a despertar? Fala-se num sentido de presença que se quer cada vez mais absoluta, cada vez mais apurada. E a presença está ligada ao corpo, às sensações do corpo, aos sentidos do corpo. Aqui, a filosofia parece encaminhar-se para os antípodas da iniciação, uma vez que dela se tem a visão de algo que é sobretudo cerebral, produto do pensamento, ainda que esse mesmo pensamento seja produto do espírito. Do sentido de presença que se tem: a nossa situação num espaço, a situação desse espaço noutro maior e por aí adiante, passa-se algo também no despertar que é o sentido do símbolo: intui-se e sente-se que as coisas são mais do que aquilo que aparentam. Intui-se e sente-se que nós mesmos somos símbolo vivo, com corpo, alma e espírito. E, parecendo quase sem querer (parecendo, uma vez que despertar exige esforço e concentração, a menos que haja uma hierofania) está-se enfim desperto e o homem desperto é o homem religioso, no sentido tão bem explicado por Mircea Eliade. Esse homem religioso está no centro do mundo, assim falava Leonardo Coimbra quando dizia que se podia imaginar que o pôr-do-sol se punha por nossa vontade. Estranhamente, essa sensação, chamemos-lhe assim, é profundamente efémera (forte porque se passa num tempo e espaços fortes e por isso inesquecíveis), mas profundamente efémera porque facilmente se adormece de novo, embora não se perca a memória do estar desperto. Daí poder afirmar-se: “sonhei que estava desperto” e não ser esta uma frase sem sentido.

Se despertar já é complicado, mantermo-nos despertos é-o ainda mais. De algum modo é o acto violento porque é um pouco contra natura (a natureza é inconsciente, os animais não possuem o mesmo tipo ou nível de consciência que os humanos), uma vez que o homem tende a ir para além da natureza, a acrescentar-lhe algo, provavelmente o voo da sua alma e a consciência do seu espírito. Daí que haja violência no sagrado e não só nas religiões (produtos do homem religioso). Despertar é uma espécie de novo nascimento e os partos não são propriamente pacíficos.
Quando os mestres (quando os há) se propõem acordar os seus discípulos abrem a porta também a alguma violência. No Oriente, com milénios de experiência, provavelmente, esta acção funciona mais tempo e talvez com mais perfeição. O Ocidente, no seu percurso histórico, foi atravessado por vagas de amnésia que o fez esquecer de certas verdades ou tradições, ocupado que esteve em conhecer e manter em cativeiro novos mundos. A sensação de vazio daí resultante levou homens e mulheres a procurar a natureza humana perdida, ou a buscar o tempo perdido… essa natureza é altamente problemática, pois ela no seu intimo é uma supra natureza. Esta procura levou-os naturalmente ao Oriente, não só por uma questão simbólica (é no Oriente que nasce o Sol, ou seja, a luz) mas também porque, muito provavelmente, o Oriente teve outra história, com maior número de pessoas, menos preocupações territoriais, e mais nichos onde a tradição ou verdade puderam sobreviver por mais tempo. Assiste-se então a uma importação em bloco de tradições, muitas vezes parciais, deturpadas ou recombinadas, vindas das Índias, dos sufis, dos samurais, da China profunda. Essas importações cuja verdade pode e deve ser posta em causa resultam muitas vezes numa mixórdia em que matizes de gurus indianos se misturam com cátaros ocidentais (mas com ascendência ariana), ou ritos celtas (muitos deles imaginados por falta de fontes) com rituais iniciáticos sufis, e por aí adiante. É assim que no Ocidente surgem os nossos “mestres”, alguns até despertos, outros até capazes de despertarem o seu semelhante. O problema está no “depois” do despertar. Não é o despertar que nos torna mais perfeitos, tal como um grau maior ou menor de consciência não nos torna fatalmente melhores nos nossos instintos mais imediatos e instantâneos (é preciso muito para nos libertarmos de Freud…). Assim, um amigo me contava os maus tratos infligidos pelo seu mestre Ocidental importador de saberes Orientais e que acabou por abandonar, não sem antes ter sofrido transtornos psicológicos difíceis de ultrapassar. Assim, li há pouco que um “mestre de nome “Solazareff” não se incomodou nada em ordenar a um “discípulo” que comesse uma osga, acção praticada pelo noviço no imediato. Assim, Gurdjieff, o grande despertador, acaba por cansar, com as suas danças, Katherine Mansfield, levando-a ao encontro da morte. Devem ser inúmeros os “mestres” ocidentais que mais tarde ou mais cedo acabam por se revelar grandes ditadores, numa cegueira que não se coaduna com a luz do despertar. Por mais despertos que estejam, não deixam de ter mau feitio.

Há ainda um outro factor que é necessário ter em conta no Ocidente: o peso de algum judaísmo e de muito cristianismo (às vezes parcamente espelhado nas igrejas). Tanto uma religião como a outra provocam e mantêm um elevado sentimento de culpa. E mesmo os “ateus” ou os que seguem o curso de algumas religiosidades marginais, não estão livres de uma sociedade habituada a viver num clima em que o factor “culpa” e o contrapeso “inocência” são fortes incentivos às acções e aos pensamentos das pessoas. Esses dois factores, se suficientemente pesados, já são uma violência em si. Não é necessário infligir violência física porque a psicológica já é suficiente e tem raízes históricas que se estendem para dentro da memória mais escondida dos homens.

Despertar não chega, porque depois de despertos, e conseguindo manter esse estado, é necessário o equilíbrio entre os quatro elementos da natureza que vivem dentro de nós: o fogo da paixão, a água da sensibilidade, a inteligência do ar, o pragmatismo da terra. Só em equilíbrio se evitam pequenas ditaduras, e evita-se também a contradição levada ao limite por Gurdjieff: o grande despertador, que levava as pessoas a dançar pela vida fora de maneira a que estas estivessem bem despertas, com o corpo alerta, com um permanente sentido de presença, capazes de reagirem por elas e não como se fossem máquinas, sim, esse grande despertador, acaba por morrer em consequência de um desastre de carro. E o desastre é o contrário da harmonia.

Quem dera a perfeição de um voo de um pássaro, assim, suave, harmónico, presente, ainda que inconsciente, perfeito…

quinta-feira, 8 de julho de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 70

Sobre o extermínio de uma tradição: os verdadeiros americanos
para o António Carlos Carvalho, pelo seu aniversário


O artigo facsimilado que agora se republica é da autoria de António Carlos Carvalho, que hoje celebra 63 anos de vida, e foi publicado na revista-livro Cadernos de Ecologia e Sociedade, n.º3, 1976 (Ed. Afrontamento).
clique nas imagens para as ampliar








quarta-feira, 7 de julho de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 69

Trovas de um descendente do Bandarra,
sapateiro de Trancoso - (7) - 4.ª e última parte
Eduardo Aroso

Do sagrado simbolismo
Só sábios podem falar.
E não apenas quem pode
Enredos inventar.

Cada um que se contente
Com o que dá a sua leira.
Mas não venha tapar-nos
O sol com uma peneira.

Cada qual não queira mais
Do que dá sua lavoura.
Pois a justiça do tempo
Dá-lhe um golpe de tesoura

Há quem ganhe com a Língua
Às vezes só pela fama;
E há quem pague p’la língua
Se renega a sua cama.

Ali junto a Belém
Queria eu outros fados:
Mudar o tom à nação
De heróis desafinados.

Falsa luz sempre existiu
Tem altar cá no país.
É que tantos frutos d’oiro
Não os dá qualquer raiz.

Mas tudo isto há-de mudar
Com o Arcanjo Miguel.
Quem está lá, lá ficará,
Nas ruínas de Babel.

Solstício de Verão, 2010

terça-feira, 6 de julho de 2010

PARA LER: ISABEL XAVIER

Memória. Uma pessoalíssima evocação da terra natal e da vida familiar, num olhar ternurento e saudoso, que nos transporta ao meado do século que passou -- eis o que nos oferece Isabel Xavier, do círculo dos Cadernos, no muito interessante blogue dos Antigos Alunos do Externato Ramalho Ortigão, na rubrica "À Janela..."

segunda-feira, 5 de julho de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 68


Trovas de um descendente do Bandarra,
sapateiro de Trancoso - (7) - 3.ª parte
Eduardo Aroso


O que se vê diariamente
De bancada em bancada:
Tem rendimento garantido
A república instalada!

E a pátria está pronta
E a bandeira nacional
Perdoando aos seus filhos
Que a trataram tão mal.

O que há que fazer um dia
Aos verdadeiros heróis?
Não os que sempre a deixaram
Embrulhada em maus lençóis.

Portugal anda dormente
Embrulhado na ignorância.
Não distingue a sua alma
Nem calcula a distância.

Tudo muito bem urdido,
Nevoeiro provocado.
Foi trocada a bela trova
Por um sarcástico fado.

Sentou-se o mal no seu trono
Em estilo nunca visto,
Querendo as suas “profecias”
Mais alto que Jesus Cristo!

E enfermas instituições
Só se abrem em certos dias.
Batem-se palmas sem alma,
Palmas de hipocrisia.
(continua)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 42

António Carlos Carvalho
Esta noite sonhei com Monsieur Chouchani. Ou melhor, sonhei que alguém dizia a outro: «Isso faz-me lembrar o que dizia o meu mestre, Monsieur Chouchani.» Então o despertador tocou e acordei, ficando sem saber o resto da conversa.

Monsieur Chouchani

Imagino que este nome não diga nada a quase ninguém. Só faz soar campainhas a quem estudou a fundo a vida do filósofo Emmanuel Lévinas e do escritor Elie Wiesel -- ambos foram discípulos do tal Monsieur Chouchani. E ambos ficaram para sempre marcados por essa experiência. Lévinas e Wiesel falaram dele ocasionalmente, num livro ou noutro ou em entrevistas.

Lévinas: «No meu regresso do cativeiro num campo de prisioneiros franceses na Alemanha, conheci um gigante da cultura tradicional judaica. Não vivia a relação com o texto como uma simples relação de piedade ou de edificação moral mas como um horizonte de rigor intelectual. Gostaria de dizer o seu nome. Era Monsieur Chouchani. Tudo o que publico hoje sobre o Talmude devo-o a ele.» «Foi ele que me ensinou como buscar, como perfurar nos textos, tudo o que se podia tirar de um pedaço de texto». «Um mestre que nos mostrou o que pode o verdadeiro método. Para nós, tornou impossível para sempre o acesso dogmático, puramente fideísta, ou mesmo teológico do Talmude. Um ser excepcional, extraordinário em todos os sentidos e também no sentido literal do termo.»

Emmanuel Lévinas

Wiesel: «Ele conhecia todas as cidades, todos os países, todas as línguas. Era alguém muito misterioso. Era o saber insondável, o conhecimento infinito. De onde vinha? Vinha de todo o lado. Sentia-se tão bem na Argélia como em França, na Palestina como na América. E direi também que se sentia tão estrangeiro aqui como noutro lugar. Era simultaneamente estrangeiro, separado e soberano. » «Viveu dos cursos que dava a professores universitários nos seus campos específicos. Portanto, ensinava a filosofia aos filósofos, a matemática aos matemáticos, e a física aos físicos.» «Aceitava a ignorância, aquela que se confessava como tal. Mas o ignorante que pretendia saber, deixava-o furioso. Demolia, humilhava. Mais tarde utilizava métodos zen-budistas, devastava antes de reconstruir. Transformava-nos em peças dispersas. De repente não éramos nada, tudo o que sabíamos era menos do que nada. Mas era isso que me fascinava nele.» «Não morava em nenhum lugar, não tinha uma camisa lavada para trocar de roupa, podia passar a noite em minha casa sem se despir, dormindo uma hora ou duas; chegava a sentir pena dele. E nunca o ouvia chorar ou rir.» «Tinha uma memória fotográfica. Mas conhecia não apenas o valor da memória como também o peso da memória. Conhecia não somente o Talmude e os comentários do Talmude como também tudo o que foi escrito depois acerca do Talmude, mesmo as obras críticas.» «Ouvi-o falar durante três horas sobre o segundo versículo de Isaías: “Escutai, céus! Terra, presta atenção.“» «Podia falar durante horas, sem nunca se repetir, sobre a mesma frase, o sentido da frase, a importância da frase, a qualidade literária da frase. Tinha o sentido da poesia, a noção da linguagem. Era um artista da palavra. Um artista da magia da palavra. Nunca o vi abrir um livro. Ele próprio era um livro vivo. Conhecia tudo de cor.»
Estes e outros depoimentos encontram-se num livro (o único que conheço sobre este sábio com aspecto de vagabundo errante): «Monsieur Chouchani --L’énigme d’un maître du XXe siècle», de Salomon Malka (ed. JCLattès, 1994). Monsieur Chouchani morreu em 1968, numa pequena aldeia perto de Montevidéu. No livro de registo dos óbitos figura o seu nome assim: «Mardoqueo Bensoussan, entre parênteses Chouchani, novos parênteses, Ohnona. Nacionalidade, marroquina. Solteiro. Idade: 63 anos.»
Salomon Malka comenta: «Conhecem alguém neste mundo que tenha sido enterrado sob três nomes diferentes?»
Este homem enigmático nunca foi manchete de jornal nem notícia de telejornal, passou por este mundo quase clandestinamente -- mas marcou para sempre as vidas daqueles privilegiados que o conheceram.
É importante lembrar estas coisas numa época em que nos enchem os olhos e os ouvidos com criaturas que são apenas imagens, «cascas» sem conteúdo, mais parecendo hologramas do que seres humanos reais.
… E eu continuo sem saber porque é que tive este sonho igualmente misterioso.
Mas talvez uma noite destas o sonho tenha continuidade e eu perceba a razão de ser desta e de outras histórias nocturnas.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 67


Trovas de um descendente do Bandarra,
sapateiro de Trancoso - (7) - 2.ª parte
Eduardo Aroso


Nem toda a luz nos eleva
Que sobre nós se derrama.
Se tem ódio ou inveja
Não é pura essa chama.

‘Stão as direcções trocadas
Neste caótico recanto.
Mas a Hora guia a História
Sopro do Espírito Santo.

Só p’lo dizer Portugal
Sobe ao céu uma oração.
E a quem servimos afinal:
Ao governo ou à nação?

Só de pensar Portugal
Há um grande clarão.
E ao mesmo tempo o mistério
Oculta grande razão.

Mas um dia a juventude
Vai saber certa verdade:
Só um tempo salva outro
Na vera continuidade.

E aquilo que pressinto
É a maior revolução:
É o povo atirar fora
Tanta falsa educação!

São os Silvas e os Sousas,
O José e ainda o Mário;
São os anti-portugueses
Do nosso triste fadário

Diversos lá no seu jeito
Num tom que anda trocado,
E havendo até alegres
São todos fardo pesado.
(continua)

PARA VER

Pedro Martins, Cynthia Guimarães Taveira e Roque Braz de Oliveira durante o lançamento do segundo volume dos Cadernos
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Cadernos. O fotoblogue Sesimbra, da autoria de João Augusto Aldeia, assinalou o lançamento de Singularidades, no passado sábado, na Biblioteca Municipal de Sesimbra.