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segunda-feira, 13 de julho de 2009

NOS 70 ANOS DE PINHARANDA GOMES, 1

“Das Palavras[1]

Todas e cada uma das palavras que constituem as línguas, são palavras e, por isso, criaturas significantes e significativas, que existem, criadas por necessidade. As palavras não se substituem umas às outras, cada uma existe em si e por si, com natureza, valor e função inalienáveis. O argumento que enuncia a regra – não há sinónimos – vale ou tem valência aqui: nenhuma palavra é significada por uma outra fora dela, ou existente a par dela. Cada palavra designa, indica, demonstra e ou significa um ente, seja esse ente de natureza eidética, conceptual, material, sensível ou insensível, formal ou informal. À realidade da palavra equivale a realidade do ente por ela designado. Assim: à palavra água equivale uma natureza objectiva, a mesma água; e à palavra bruxa equivale uma natureza objectiva, a mesma bruxa. Tudo depende, neste último caso, de compreender, por adequada definição, o que seja bruxa como ser. Pode não passar de um conceito, de uma noção, de uma imagem superativa, mas bruxa existe tal como a palavra a identifica.

Nenhum ser é dito por outro ser. Pode, no mínimo, oferecer dele uma breve, ou ilusória, ou instantânea aproximação. Assim: passou uma forte ventania, mas Deus não estava na ventania; sobreveio um terramoto, mas Deus não estava no terramoto; ergueram-se colunas de fogo, mas Deus não estava no fogo; e, por fim, perpassou uma suave, murmurante brisa, e parece que Deus estava na brisa. O episódio acha-se na vida do profeta Elias (I Reis, 19, 11), e também nos serve para entender (isto é: para entrar dentro, in-tendere) que o estar pode oferecer uma aproximação ao ser, mas que o estar não é o ser. Estar alegre não significa necessariamente ser alegre, e também o estar em Deus não significa ser Deus, nem Deus estar em significa esse em ser Deus.
A palavra Natureza pode, mediante prévia isagoge, dar-nos uma aproximação à ideia de Deus-criador; mas a palavra Natureza não substitui a palavra deus. Num plano mais acessível: a palavra bonito não substitui a palavra belo, nem a palavra belo se compadece com bonito.[2]
Cada nome é uma ideia. Cada ideia exprime-se ou acha-se expressa num nome. Abandonamos agora a questão muito antiga, mas ainda insolvida, de saber se a ideia emerge do nome, ou se o nome emerge da ideia. A economia humana cria palavras porque precisa delas. Se não precisasse não as criava, e, por recurso à polivalência das palavras, cada língua teria meia dúzia delas, e não mais. Ora, as palavras são entes singulares, criaturas vivas (sujeitas ao crescimento e à morte, como toda a criatura situada nos limites da geração e da corrupção) e têm vida própria: a sua vida, e não a de outra palavra, ou de outras palavras. Cada palavra vive, coabita e convive com todas as outras palavras. Até as antónimas (bem e mal, claro e escuro, Deus e o Diabo…) coabitam e jogam umas com as outras, umas a favor de outras, umas contra outras, mas jamais se fundem ou confundem. A menos, claro, que se ignorem as artes de diferenciação ensinadas na homofonia, na homografia, na univocidade, na equivocidade, na paronimidade e noutras subtilezas com que espreitamos o que as palavras valem por dentro. O que limita o valor das palavras é, muitas vezes, a limitação situativa do humano.
A palavra canto, ouvida por um pedreiro, significa canto da casa, ouvida por um músico, significa o que se canta, e assim por diante. No entanto, o filósofo, ouvindo a palavra, tem o dever de lhe identificar desde logo todas as acepções, para que se saiba de que se fala. Aristóteles, mestre dos que sabem, e que ora não é mestre de ninguém, revelou a tekné nos seis livros do Organon, e de modo particular nos Analíticos, Tópicos e Elencos. Tudo o que se julgue poder acrescentar é pura ilusão, ou falta de modéstia. O que todos temos dito, desde Aristóteles, é o que ele disse, por outras palavras e outras frases. Quem sabe, então, se dizemos o que ele disse?”
Pinharanda Gomes

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[1] «Portugal, Possível e Impossível», in Entre Filosofia e Teologia, Lisboa, Fundação Lusíada, 1992, pp. 191-192;
[2] Em português, bonito (…) é um diminutivo: bonus, bonum + ito, que vem a dizer bonzinho, ou pequeno bom, não sendo, nem sequer, parente de belo. Bonito é da esfera da Bondade, belo é da esfera da Beleza.

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