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segunda-feira, 9 de agosto de 2010

JAIME CORTESÃO, 50 ANOS DEPOIS, 5

“Se dissermos que esta carta [Enformação… acerca dos costumes e leys da China, de Fernão Mendes Pinto], ainda que resumida, foi, no ano seguinte, traduzida em Espanhol e publicada na Europa, podemos acrescentar que aí se contém, nos seus traços essenciais, o primeiro retrato do chinês supercivilizado, que corre o mundo ocidental. Observa-se ainda que os caracteres do chinês são quase todos tacitamente definidos por contraste. E a China surge na Informação, através das suas leis e costumes, como uma sociedade avançada e liberal, em que só o mérito das letras ou o exercício isento da justiça conduzem à alta burocracia; e a religião se reduz a um sentimento do foro íntimo, puro acto da consciência, que não se impõe ao próximo. Está aqui em germe o chinês, mais plasticamente expresso na Peregrinação. Mais do que isso, estão quase todos os traços do humanismo chinês, que mais tarde tanto impressionaram Leibnitz, Voltaire e Montesquieu.
“Que esta elaboração é essencialmente crítica e de formação heterodoxa, temos a prova numa carta, um pouco posterior, de Fernão Mendes.”
(...)
“Este pensamento, tão firmemente enunciado, de que o chinês, possuidor duma cultura e duma ética superior à do Ocidente, era irredutível ao cristianismo, representa um conceito heterodoxo no mais alto grau, contém o germe do deísmo, e é desde logo uma das mais arrojadas expressões do humanismo universalista, atingida por um português.
“Quase dois séculos depois, em 1745, Montesquieu chegava por processo idêntico à mesma conclusão em De L’Esprit des Lois”.
(...)
“É costume atribuir a Montaigne a prioridade, como precursor do relativismo do século XVIII. Afirma-se igualmente que o racionalismo do século XVII, os fundamentos científicos do método experimental, toda a teoria do «bom selvagem» e o mesmo sonho exótico, encontram elevada, quando não a primeira expressão, nos Essais. Como é sabido, esta obra, cujos dois primeiros livros se imprimiram em 1580, e o terceiro em 1588, só apareceu completa em 1595. Fernão Mendes morreu em 1583, mas nada leva a crer que tivesse conhecimento dos primeiros Essais de Montaigne, pois a sua obra é fruto de elaboração de experiências pessoais e não alheias; tem origem, como mostrámos, pelo menos na carta de 1554, dirigida aos Padres da Companhia, e na Informação de 1555; e obedece a um processo literário inteiramente diverso.
“Acrescentemos que no terceiro livro dos Essais, esse posterior, sem dúvida, à morte de Mendes Pinto, já Montaigne canta a excelência e superioridade da cultura chinesa sobre a francesa. Mas é curioso observar-se que nesse trecho nada se contém que não esteja na Informação sobre os costumes e leis da China, escrita por Fernão Mendes Pinto em 1554, traduzida em espanhol e publicada na Europa no ano seguinte.
Jaime Cortesão
in O Humanismo Universalista dos Portugueses, pp. 140-148.

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