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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 90


Nos 100 anos da República como estão a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade?
Evocando o Sesimbrense Virgílio de Mesquita Lopes*
Luís Paixão
2.ª parte [leia aqui a 1.ª parte]
Coincidente com a divulgação da tríade acima referida, no período republicano vivia-se também em Portugal o advento do positivismo de Augusto Comte, que foi pensado e ensinado principalmente pelo ilustre patriota e presidente da Republica Teófilo de Braga, passadas que estavam as obscuras idades teológicas e metafísicas da humanidade. Perseguia-se cegamente o teísmo, em muitos casos por rancor à memória dos terríveis actos da inquisição e divinizou-se a Humanidade e a República numa espécie de deusa feminina de belo perfil com um barrete frígio, mais próxima das Senhoras do Ó ou das deusas da fertilidade, do que das Virgens católicas. A nova religião estava instituída. Num país mariano e panteísta, a substituição foi fácil. A divulgação da obra de Henri Bergson oposta ao positivismo, com a importância dada por alguns dos membros da geração da Renascença Portuguesa à intuição intelectual, ainda estava no seu começo, não chegando a ser a devida, pelo triunfo da geração da Seara Nova e do racionalismo de António Sérgio.
Neste ambiente de turbulência ideológica e, simultaneamente, de esperança de redenção, muitas foram as almas generosas que se entusiasmaram e entregaram as suas fortunas e vidas ao ideário patriótico e republicano.
Virgílio de Mesquita Lopes, que muito justamente tem hoje o seu nome inscrito numa rua que atravessa o coração da vila de Sesimbra, foi uma dessas almas. Maçon de grau 33
[1]; Grande Tesoureiro do Grande Oriente Lusitano no período do Grão Mestre Magalhães Lima; Presidente da Câmara Municipal de Sesimbra, de 1913 a 1917, pelo Partido Democrático republicano, num período extremamente difícil da vida do País: o envolvimento na 1ª Grande Guerra, a fome, o poder da rua, as lutas internas dos republicanos entre democratas, evolucionistas, unionistas e monárquicos (na época apenas tolerados). Num período de enormes dificuldades económicas, Mesquita Lopes soube segurar o leme da Câmara, vindo a executar parte das obras de abastecimento de água potável à vila de Sesimbra (lembre-se a Fonte Nova situada no largo com o mesmo nome). Homem da razão prática, progressista e activo, viveu o tempo de abertura à sociedade e de exposição pública do Grémio Lusitano, em sessões de beneficência ditas brancas, onde participavam todas as famílias no exercício da virtude da generosidade. Cabe aqui referir o seu papel na resolução da epidemia da pneumónica que assolou Sesimbra no período da guerra, e que foi debelada pela contribuição decisiva de um homem seu contemporâneo e amigo, o Dr. Aníbal Esmeriz, o qual veio a falecer por contágio, num episódio de santidade civil tão raro e que revelou o mais alto espírito de liberdade, igualdade e fraternidade. Nas cerimónias fúnebres, quem fez o discurso in memoriam foi Virgílio Mesquita Lopes, num registo apartidário e humanista que muito revela da grandeza do seu carácter e das suas qualidades como ser humano, e do qual não posso deixar de transcrever alguns elevados trechos ilustrativos[2].
Mais tarde, já depois de ter sido Presidente da Câmara, veio a envolver-se num projecto de desenvolvimento do distrito, que dirigiu: a linha de caminho de ferro Tejo-Oceano-Sado (também uma tríade!) que ligaria Cacilhas, Sesimbra e Setúbal. Por razões que escaparam à sua vontade e que se devem à deslealdade de alguns amigos próximos, e também ao estado de balbúrdia das instituições que exerciam o poder no País, o projecto não se chegou a realizar, tendo ficado apenas pela colocação de umas primeiras linhas em Cacilhas. (Hoje, passados quase 100 anos, ainda só existe a ligação a Setúbal). Por esta razão, a família de Mesquita Lopes vem a perder todas as suas posses e, no alvor da implantação da ditadura do General Gomes da Costa, é preso e condenado ao degredo na ilha do Sal. Um conjunto significativo de pessoas das mais diferentes origens e dos mais diferentes credos interessaram-se pela situação e, in extremis, quando Virgílio já estava na fila de embarque, é-lhe conseguido o indulto, sendo absolvido. É nesta altura que escreve um texto de agradecimento, no qual, perante a possibilidade da perda objectiva da sua liberdade, os valores da igualdade e da fraternidade sofrem uma ascensão para um plano ético onde se verifica que, afinal, a fraternidade, numa hierarquia insuspeitada, também abrange os inimigos políticos (na resolução do seu caso, a intervenção de um aristocrata terá sido decisiva), e não apenas os do seu partido, que, por sinal – e sem, por pudor, os referir –, foram alguns dos que o traíram:
“Mal pensava eu que ao atingir esta altura da vida, teria de pôr o meu coração a sangrar de agradecimento nas mãos de centenas de pessoas, no número das quais avultam os dos meus inimigos políticos.
A minha prisão a que por falsas e desleais denúncias fui submetido ultimamente deu-me ensejo a conhecer a magnanimidade de pessoas que, inúmeras pessoalmente, por telegramas, por cartas e por outras formas me protestaram a sua amizade ou muito simplesmente a sua cativante simpatia.
As horas amargas do encarceramento sobretudo as do Domingo 20 do corrente, domingo magro, em que já estava na formatura para embarcar, nunca mais as olvidarei; e por este mesmo motivo as demonstrações de afecto e de carinho que recebi trazem-me a alma a transbordar de gratidão.
Nunca a política me serviu para meu lucro pessoal.
Não me faltaram oferecimentos e alguns de incontestável valor.
Renunciei a conveniências e servi sempre princípios.
Se incomodei amigos foi para servir amigos que, para mim, contem mais do meu esforço do que do favor alheio.
A situação penosa em que me encontrei, trouxe-me revelações e desenganos. Gentes a quem nada fiz encheram-me de atenções; pelo contrário outros me fizeram o vácuo…
Não lembrarei estes.
Para todos os que se lembraram de mim, vai neste momento renunciando a todo o partidarismo, quero ser e ficar só republicano., a minha mais viva gratidão.
Á Ex.mª.Camara Municipal de Cezimbra protótipo da dignidade administrativa; às agremiações aos amigos e aos antigos correligionários; aos inimigos políticos; á Direcção da Companhia Tejo- Oceano-Sado, etc. aqui fica o meu cumprimento de profunda e sincera gratidão já que não posso fazer pessoalmente
...
Obrigado, muito obrigado.
Lisboa 28 de Fevereiro de 1927

Não obstante o carácter discreto deste escrito, considerei ser a sua divulgação uma exigência, porque muito do que está expresso neste agradecimento deveria servir de guia para a actividade política em Portugal, e para as gerações que hão-de vir a exercer o poder.
____________
* Versão integral do artigo recentemente publicado no jornal SUL. Foi um dos últimos escritos que António Telmo leu.
[1] A ave que aparece desenhada no avental deste grau é o Pelicano alimentando as crias com o seu sangue, o qual, como se sabe, tem altíssimo valor simbólico.
[2] “Era em Março de 1914. As lutas políticas eram acesas, referviam em Cezimbra. Vivos estão quasi todos os contendores e não é aqui o momento para apreciar prélios dêsse período agitado, em que a propósito de tudo e de nada se desencadeavam furias tremendas.
“Sei bem que tive de lutar com atrictos de vulto e influencias de pezo para nomear o candidato que melhores provas apresentou para a vaga deixada pelo Sr. Dr. Sá e Melo.
“Trabalhando só e exclusivamente pelo bem e pelo engrandecimento de Cezimbra não procurei saber da cor política do pretendente; eram elevadas as classificações académicas, as mais elevadas de entre todas as que concorriam; as informações sobre a honorabilidade não podiam ser mais lisonjeiras, e então não hesitei um ápice, na escolha do medico. A 24 do referido mês e ano a Comissão Executiva nomeava o Dr. Esmeriz medico municipal, e o Senado Camarario confirmava em 11 de Abril a nomeação feita sendo a posse conferida quatro dias depois.”
O trecho que acabo de transcrever, retirado do folheto intitulado Consagração Póstuma em homenagem aos falecidos mutualistas Srs. Dr. Antonio Anibal de Araujo Esmeriz e José Bastos (Lisboa, Minerva Lisbonense, 1923), ilustra bem o superior sentido da Liberdade que norteava a acção de Virgílio de Mesquita Lopes. Do mesmo documento, tenha-se ainda presente um outro extracto, pelo qual facilmente se infere a importância que atribuía aos três valores da tríade:

“Porque o Dr. Esmeriz, pelos sacrifícios da sua enorme dedicação ao serviço dos miseraveis, constitue um alto ensinamento para a sociedade, e é como que um convite a iguais altruismos, ficando o seu nome um simbolo, e a sua memoria uma saudade.
“A sua presença á beira de um leito inspirava, pelos bons modos do medico, aquela confiança, aquela esperança, que não curando o doente o alivia imenso, deixando-lhe a impressão de que não morrerá.
“Cumpriu ele a sua missão de medico como se para esta carreira o tivesse levado o pendor da sua vocação, quando a verdade é que a maior ambição na sua mocidade, e uma grande pena que o acompanhou pela vida adiante, foi o não ter podido seguir a carreira de uma arma superior do exercito, por via da sua débil constituição fisica.
“Mas porque caracteres de boa tempera são-no em qualquer ocasião e sempre, o medico só porque voluntariamente o foi, jamais perdeu de vista o que devia a si e aos outros, no cumprimento rigoroso das suas obrigações profissionais. Se fôra militar, honraria a farda pela pratica das virtudes que a honra da nação requere; foi medico, e adaptando-se, integrando-se no seu nobre oficio, pobres e abastados, todos tiveram ensejo de conhecer a mais bela alma servindo a mais humanitária profissão.”

2 comentários:

  1. Belo exemplo de homens com carácter que colocavam, via de regra, o bem dos outros mais alto que as suas convicções políticas. Estes artigos são muito oportunos pela efémeride que, mais do que motivo de festa, deve constituir tempo de reflexão e educação cívica dos portugueses.

    Os meus cumprimentos

    Eduardo Aroso

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  2. Fim da Cidadania Infantil!
    'Vira o disco e toca o mesmo' - vulgo eleições antecipadas atrás de eleições eleições antecipadas - não é solução!...
    A democracia directa também não é solução...
    Os cidadãos não podem ver os políticos como um 'paizinho'... devem, isso sim, é exigir maior fiscalização e controlo sobre a actividade política!
    De facto, quem paga - leia-se, contribuinte - tem de ter um maior controlo sobre a forma como é gasto o seu dinheiro!
    EXPLICANDO MELHOR: todos os gastos do Estado que não sejam considerados de «Prioridade Absoluta» [nota: a definir...] devem estar disponíveis para ser vetados durante 48 horas pelos contribuintes [nota: através da internet].
    Para vetar [ou reactivar] um gasto do Estado deverão ser necessários 100 mil votos [ou múltiplos: 200 mil, 300 mil, etc] de contribuintes.

    Resumindo e concluindo: não se queixem do facto de estar a ser mal gasto dinheiro do Estado: abram os olhos... e vetem!

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