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sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

TEMPOS DE HOJE

Eles "andem" aí

Cynthia Guimarães Taveira

Está a nascer um Portugal europeu, que é um país com uma mentalidade racionalista, que apenas valoriza a eficiência, e no qual a transcendência não tem lugar. Dar sentido à vida, hoje em dia, é gozar a vida. Gozar a vida é ir para a farra, é ir ao futebol, beber umas cervejas, ter uma grande actividade sexual, ir ao Brasil apanhar sol. O homem está reduzido a um corpo, a carne, o canal do Estado mostra reportagens sobre trocas de casais, que sentido tem isto?”
Miguel Real in Noticias Magazine, 15 de Junho de 2008

Pois é, Miguel Real, eles “andem” aí, este novo e valoroso povo, alimentado desde o berço a telenovelas brasileiras, baralhado na gramática e no pensamento, baralhado nesta dupla identidade em que nenhuma é Portuguesa: ou personagens de novelas irreais com sotaque apelativo e a imitar, ou personagens europeias (seja lá o que isso for) com palavras americanas que se atravessam nos gestos dos loosers e dos winners. Personagens e não pessoas.

Eles, são esta nova, e perdoem-me a expressão, chungaria que ascendeu socialmente, vinda directamente das profundezas de um qualquer lugar muito abaixo do povo, pois o povo sempre teve dignidade e sabedoria. O povo já não existe. O povo português desapareceu ou os últimos espécimes estão encravados em lares ou perdidos em aldeias desertas.

O novo Portugal é profundamente democrático, pois esta nova gente, de geração espontânea, ascendeu e espalhou-se por todos os quadrantes, desde as novas cidades coladas às antigas, subúrbios sem lei nem roque, à classe política que passou directamente da aldeia e dos passeios de burro para os carros topo de gama, num ápice de quinze ou vinte anos, sem tempo sequer para aprender a comportar-se no parlamento.

Portugal, neste momento, está reduzido a uma bola de espelhos de discoteca, reflectindo tudo ao mesmo tempo, em danças de Pavlov, drogas rápidas, jet sets fulminantes, miséria exterior e interior e bem presente numa auto-flagelação repetitiva a caminho do abismo.

Eles “andem” por aí e falam exactamente assim. Trocam os verbos, os nomes, os adjectivos e poupam na língua de telemóvel -- e quanto mais a poupam e a reduzem a cliques de sucção, mais a perdem, mais acordos ortográficos luminosos assinam, mais a sua pátria é o acordo ortográfico.

Perante tal ascensão, toda e qualquer teoria da conspiração deixa de existir. Toda e qualquer uma já não é necessária, já se cumpriu, porque eles “andem”, “andem” muito e cercam o pais a pouco e pouco.

A política tem uma identidade parecida com a de dois grandes grupos de futebol, e em plena campanha já vi quem votasse em “x” por ser mais bonito. Venham as plásticas, urgentemente, salvar o país da hecatombe das rugas e venham todos dançar ao som da nova dinastia de Armadouro, com o Tony e o Mickael Carreira a conduzir os passos românticos da nação, e o Quim Barreiros mais à frente, esse com nome português, novo Infante de panela e bacalhau na mão, dando novos mundos ao mundo. E já agora não venham comigo, venham vocês “mais” eu, que “comigo” é uma palavra antiga e estamos cá para somar vitórias. E a culpa é desta maldita traça que gira e gira no candeeiro de três lâmpadas. A traça é alma portuguesa.

Somos um povo auto-flagelado nestes tempos em que o mundo deixou de ser vasto para se tornar num ponto do cosmos, numa qualquer imagem de satélite. Auto-flagelamo-nos desde que D. Sebastião se perdeu nas areias movediças dos sonhos e, neste longo velório, convinha que nos lembrássemos, um a um, da palavra dos mestres sobre o nosso povo.

Há quem defenda uma espécie de refundação do nosso país. Partir do zero e começar tudo de novo. Mas qualquer fundação, para ser válida, começa na leitura simbólica do lugar. Onde está uma montanha, está um provável lugar de ascensão, de contacto com os céus; onde corre um rio, há a probabilidade de fertilidade; onde está uma árvore ampla, há um lugar de reunião e de encontro. Funda-se a partir do lugar, e o nosso lugar, Portugal (por enquanto), é esse rosto “esfíngico e fatal“, olhando o mar, é essa Serra da Estrela apontando a estrela polar, são esses monumentos megalíticos, passagens, portas para o céu, são essas cabeças de cavalo e de ave na gruta do Escoural lembrando os velhos xamãs, são essas duplas espirais incrustadas em pedras que incorporam tão bem esse movimento de saída e regresso a nós, e ainda são essas Ophiussas, serpentes clandestinas que ainda hoje se passeiam nos quintais, nas hortas e na serra da Lua, é esse granito sereno e imponente do Norte e essa planície ao Sul, no Alentejo, apontando sempre mais além do horizonte.

Para refundar Portugal é necessária a arqueologia da terra e, também, esse mar como espaço para o imaginário, para o futuro. Mas a vontade da traça dança mais alto e quer queimar as asas em estâncias turísticas, em campos verdes, lisos, de golfe, em auto-estradas para não-lugares, em prédios rápidos, insufláveis e altamente perecíveis. Ama-se a América, não se ama Portugal.  

Outra lâmpada ardente, na qual Portugal se vai diluindo, é a língua. Fernando Pessoa gritou o canto do cisne chamando à pátria a sua língua. Mas não vamos necessitar mais da nossa língua. Um brilhante comentador político de olhos azuis disse que a próxima potência era o Brasil e que, por isso, nos convinha submeter ao seu modo de escrever (e de falar, claro), e uma brilhante Ministra com olhos achinesados pensa que actualmente o Inglês é a porta aberta para o mercado de trabalho e, consequentemente, para a felicidade. Eles amam o Brasil e a Europa Nórdica, mas não amam Portugal.

A terceira lâmpada, essa absolutamente irresistível, é a educação. O papel do professor vai tornar-se cada vez mais secundário até que um dia se alcance o seu desaparecimento total. Se não, vejamos. O Ensino está cada vez mais semelhante à fast-food. A qualidade do primeiro ciclo deixa muito a desejar, pois com estas psicologias baratas nos modelos de aprendizagem os garotos acabam por fazer uma quarta classe da qual saem sem saber ler e escrever como deve ser. Depois vem o segundo ciclo, normalmente caótico, sem uma fase de adaptação, com mochilas sobrelotadas de livros, dossiers, cadernos de actividades e sei lá que mais, tudo devidamente acompanhado por quilos de imagens para ilustrar bem todas as matérias e todas as disciplinas.

Os miúdos, hoje, não sabem pegar num livro sem imagens porque na escola só lhes dão livros aos quadradinhos e porque o ensino deve ser muito "lúdico". Os manuais de Português são deveras interessantes nos disparates que contêm, desde perguntas sobre textos sem sentido, até textos sem sentido perante os quais não é possível fazer uma pergunta decente, mas isso é apenas um pormenor sem importância nenhuma, pois a língua portuguesa tende a desaparecer face aos interesses do acordo ortográfico, e aos interesses obscuros de alguns linguistas que, não tendo um bom livro para ler, se vão distraindo a reformular a gramática até atingir delírios teóricos deveras abstractos, o que lhes dará, por certo, muito prazer, mas, por outro lado uma amnésia total da "velhinha" gramática, que embora "velhinha", era o motor de uma quarta classe com muito mais qualidade do que a de hoje em dia. Ou seja, a velha gramática funcionava perfeitamente porque era de uma lógica acessível. Esta assemelha-se à arte contemporânea, não tem sentido e ainda por cima não utiliza a estética que existe na língua portuguesa.

Os alunos assim vão caminhando (ou rastejando) até ao nono ano. E eis que o Ministério se lembrou de dar "novas oportunidades" a quem nunca as teve (será??? -- aquilo que há hoje em mais quantidade é a possibilidade de estudar!). Assim foi criada a nova oportunidade no ensino e esta consiste em tirar vários anos lectivos em poucos meses.

Primeiro, o "desajustado social" inscreve-se, tem umas aulas (muito poucas) de preparação. Estuda um dossier (verdadeiramente genial -- um dos exercícios a que tive acesso era o de ir a um multibanco e levantar dinheiro e depois escrever o que se tinha feito!) E eis que, em poucos meses, pode ter o 12º ano e ir para universidade (pobres professores universitários!). Ou seja, a fast-food do ensino nunca funcionou tão bem. Depois, com o "diploma” do 12º ano na mão, chega, finalmente (veja-se o tempo que demorou) à faculdade, de onde sairá "com mais oportunidades de trabalho - boa anedota: basta ver o número de desempregados licenciados - mas é tudo uma nova oportunidade!).

Chegando lá, já não se depara com aquele ensino mais sério e pesado, não senhor, depara-se com o Acordo de Bolonha! Ei-lo, vivo e tão incandescente que cega: onde antes havia uma cadeira anual, agora está uma apenas semestral, onde dantes se lia a Ilíada e a Odisseia, agora lê-se apenas um capítulo de cada porque "não há tempo para mais", saindo de lá com um conhecimento verdadeiramente exemplar, os engenheiros podem construir pontes (que caem -- as dos romanos ainda estão de pé!) e os restantes, com uma cultura menos técnica, têm o seu lugar cativo num restaurante de fast-food, acabando por fazer jus à sua formação, também ela de fast-food.
O papel do professor, como disse acima, vai deixar de ser relevante porque agora somos todos "pró-activos" (as inteligências que usam o termo “pró-activo” ainda não perceberam que ele quer dizer "a favor da acção" e não propriamente "activo", são pró, não são activos nem deixam de ser -- o "americano" é uma grande língua!); e sendo todos pró-activos também somos inter-activos, e interagimos já não com o professor ou com os colegas mas sim com um grande ecrã projectado na parede.

Este novo professor, a "parede" é utilizado nalgumas escolas em Inglaterra e ameaça conquistar as restantes escolas europeias. O professor, quanto muito, é o "ponteiro" que aponta para o verdadeiro "professor": a parede, e aquilo que é o essencial do ensino, uma troca de vida e de experiências entre professor e aluno, troca absolutamente irrepetível, única e fundamental para a educação, vai pura e simplesmente deixar de existir porque o computador fala mais alto. Fala tão alto que, hoje, os trabalhos dos alunos muitas vezes se limitam e um "copy"/"paste", como dizem, para dar situações surrealistas -- como aquela a que assisti há uns dias, de uma aluna que apresentou um trabalho que acabava assim: "para ver mais clique em baixo". Só que aquilo era uma folha, não se podia “clicar“, era apenas uma cópia de um texto que nem tinha sido lido pela aluna. Vindo direitinho da Internet.

Sim, eles amam Inglaterra e a Finlândia, mas não amam Portugal.

Às vezes, voltar atrás não é andar para trás, é andar para a frente. Quando a traça se transformar em borboleta e começar a amar o seu território, a sua língua e a sua educação, dar-se-á um grande e gigantesco passo atrás. Para variar. E nessa altura, só nesse dia será a Hora e um vasto horizonte se abrirá com o vento a nosso favor.

Junho, de 2008

4 comentários:

  1. Este texto, infelizmente, continua actual. Sei outra "anedota" das Novas Oportunidades. Uma colega perguntou-me se eu sabia fazer Sudoku. Eu respondi-lhe que sim. Ela solicitou-me, então, se podia trazer um para eu fazer, pois tinha uma prima que não conseguia completar os quadros. Respondi-lhe com um sim, meio arrastado (era um estranho pedido, semelhante a solicitar a alguém que complete as nossas Palavras Cruzadas). Só depois me comunicou a chave do mistério: o Sudoku era a tal prova de Matemática! As competências não são reconhecidas a sós com o candidato, sendo que os trabalhos podem ser feitos pela sua rede de conhecidos!!!

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  2. Bom Dia.
    O meu problema não é os cidadãos a quem deram competências, que por naturais até deram seguimento para a universidade.
    De facto o problema são a grande quantidade de licenciados que estão na frente de alguns organismos e no entanto são completamente iletrados.
    Aquele que aprende retórica apenas sabe falar, a mais não é obrigado, e como aprendeu a fala repete como um psittacidae,
    aquilo que serve ao sistema.

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  3. Isto tornou-se numa rede que pura e simplesmente enreda as pessoas numa falta de qualidade e de consistência que as adormece. Facilmente nos tornamos carneirinhos obedientes à chamada na hora do voto e, quando não votamos, há sempre quem vote por nós. A democracia, tal como está programada vai acabar por se abater sobre ela própria. No entanto, há sempre dois factores que escapam: a transcendência e o génio próprio com o qual cada um nasce. Os dois, em conjunto são, neste momento, o outro movimento do pêndulo que reequilibra as coisas. Acredito que há agora um despertar para uma maior consciência do papel dos homens no mundo. Essa consciência está a nascer indivíduo a indivíduo o que é, curiosamente, uma característica que naturalmente se opõe às "massas". Alguns vão saindo a pouco e pouco da "rede" e criando universos próprios à parte e, como esses universos estão ligados a uma memória do passado, em muitos pontos se vão tocando a achando algum acordo. Nm tudo está perdido. Cumprimentos da Cynthia

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  4. Não podemos ser tão pessimistas. Temos que ter esperança num mundo melhor.Realmente no meu dia a dia observo situações assustadores relativamente ao ensino,à própria sociedade,aos políticos etc. Mas ainda acredito na democracia, apesar de ainda continuar a existir dentro desta, situações incríveis como "os novos escravos do sec XXI" mas foi através deste sistema politico que o povo teve acesso à frequência obrigatória de escolaridade, melhor qualidade de vida,liberdade de expressão etc.Em Portugal antes do 25 de Abril o povo vivia miseravelmente e o trabalho infantil predominava nesta classe, pois as crianças começavam a trabalhar a partir dos 10 anos de idade (o meu pai e a minha mãe por exp.) Cada um opina e expressa-se de acordo com as suas vivências pessoais e culturais. Em todas as épocas existiram coisas boas e más. A História relata-nos épocas assustadoras em que as maiores vitimas eram o povo,os mais desprotegidos economicamente, os negros e todo e qualquer individuo que tivesse ideologias quer politicas, religiosas etc diferentes dos demais.Na minha opinião não há sistemas políticos perfeitos. Concordo que actualmente há muito facilitismo em relação ao ensino por exemplo e também noutras vertentes da sociedade. O mundo não pára e cada um de nós deveria ter consciência que para existir harmonia na sociedade seria preciso acabar com um certo egoísmo individual, este que se instalou há muito tempo nas nossas vidas. Tenho e quero continuar a ter esperança num mundo ainda melhor.

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