(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

RAZÃO POÉTICA, 9



OS REIS MAGOS
(in A História de Jesus, de Gomes Leal)

Nas torres, olhando os astros,
que viajam pelos céus,
Os Reis Magos viram rastros
do avatar de um grande Deus.

Leram em livros profundos,
que a Caldeia e Assíria têm,
que estava a descer dos mundos
um deus a Jerusalém.

Cheios de assombro, à janela,
mudos ficam os seus lábios!
De pé olhando uma estrela,
velam noites os reis sábios.

Não querem mais alimento,
nem com rainhas dormir.
Não tomam ao trono assento!
Não mais volvem a sorrir!

Somente olham, sem cessar,
a branca estrela brilhante
como o ceptro dominante
do rei que vai a reinar.

Abraçam a esposa amada.
Dão as chaves aos herdeiros.
Mandam vir seus escudeiros,
Os seus bordões de jornada.

Despejam os seus erários,
cheios de alvoroço imenso.
Carregam seus dromedários,
d’ouro, de mirra, de incenso.

Passam rios e cidades
cheias de estátuas guerreiras,
palácios, campos, herdades,
cisternas sob as palmeiras.


Seguem a luz do astro belo,
que as estradas lhes clareia,
até chegar ao castelo,
do rei que reina em Judeia.

Chegados ao rei cruel,
que de Herodes nome tem,
bradam: «O Rei de Israel
nasceu em Jerusalém?...»

Fica assombrado o Tetrarca,
Diz-lhes tal nova ignorar.
- «Mas, em nome da Santa Arca,
voltai, reis, ao meu solar!»

Seus olhos ficam sombrios:
vê perdido o seu tesouro,
soldados, terras, navios,
da Judeia o ceptro de ouro!

Tomam os reis seus bordões
Levantam as suas tendas.
Carregam as suas of’rendas.
Demandam novas regiões.

Passam rios e cidades
cheias de estátuas guerreiras,
palácios, campos, herdades,
cisternas sob palmeiras.

Passam colinas, rebanhos,
campos de louras searas,
quando a lua faz desenhos
no chão das estradas claras.

Passam o quente areal
que a palmeira não conforta.
Eis que a estrela pára à porta
de um decrépito curral.


Descem dos seus dromedários,
cheios de pó, os reis sábios.
Descarregam seus erários.
- Mas estão mudos seus lábios.

Rojam as barbas nevadas
Sobre o deus que adormecera.
Com as mãozinhas rosadas
Da Mãe nos seios de cera.

Seus olhos sentem assombros
e nadam cheios de choro.
- Rasgam seus mantos dos ombros.
- Dão-lhe mirra, incenso e ouro.

Esquecem sua nação,
mais seus carros de batalha.
- Seus ceptros rolam na palha!
- Seus diademas no chão!

E erguendo seus olhos graves,
perguntam então – olhando
as pombas voando, em bando,
os aldeões, mais as aves:

«É este o rei dos senhores?
Tábua da Lei das rainhas?
Por archeiros – tem pastores.
Por pajens – as andorinhas.»

GOMES LEAL

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 117


"Observando para lá de cá" por Margarida Cepêda, 2009

Cynthia Guimarães Taveira

Arcos e pontes das nossas idas
Desdobram-se nos rios densos e difíceis
Em veias expressivas
Marcam a nossa condição
De fronteiras intransponíveis

Arcadas, portais, portas
Em edifícios de pedra fria
Níveis de uma graça ou de um sonho
Construídos num só dia

Espaço marcado pela esfera
Que se ergue a metade do que somos
Quis Deus ver-nos em gomos
Em saudade, em rito de espera

Arcos, portais e dias
Erguidos em terras inesperadas
Dimensões em pedra gravadas
Demandas e etapas ultrapassadas

Escadas, arcadas e portas
Marcam a história da nossa alma
Arcos dentro de arcos
São os círculos das esferas visíveis
Erguidos pelo dom do arcano
Em que a outra metade
Vive e pensa noutro plano

Arcos, escadas, abóbodas
Rosáceas e vitrais
São o plano dos templos
Dos futuros irreais
Que deslizam e se erguem
No hemisfério que cada um guarda
Esse que é a outra metade
Da metade que nos ampara

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 116



NATAL ARDENTE *

Eduardo Aroso

No descampado do mundo
Chocam-se os corações
Pelas ruas carregadas de sinais,
Ou estranhas direcções.
O galo canta ao vento agreste
E aos pesados madrigais
Onde ouvidos soltam lágrimas
Na difícil partitura comovente.
Só no céu frio de Dezembro
Fora do tempo e nele vendo
Clareia eterna a sarça ardente!

Natal, 2010

* Poema enviado pelo autor a alguns amigos. Para os outros, aqui fica esta simples mas fraterna dádiva natalícia.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

DESEJOS DE UM BOM ANO



Para o próximo ano...

Desejamos um excelente ano de 2011 para os nossos leitores e colaboradores.

Desejamos o impossível, ou não:
Que um batalhão de anjos nos envolva e nos fale ao ouvido
Que os nossos corações brilhem na sua presença
Que consigamos escutar as mensagens
Que as consigamos decifrar, sobretudo...
Que a pouco e pouco os homens percebam
Que as suas almas são importantes para Deus
Que se multipliquem gestos de ternura
Que se multipliquem momentos de paz
Que nos invada o amor absoluto
Que assim se dê uma reviravolta na esperança
Que tudo mude para melhor
Que haja um grande milagre
Impensável
Irreversível
Surpreendente
Benevolente
Consequente

Boas Festas!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

CURSOS



Novos Cursos do MIL

Inscrições (até à 1ª sessão de cada curso): Curso IV, 40 euros; Curso V, 65 euros; Curso VI, 40 euros (direito a Certificado de Participação)
MIL: MOVIMENTO INTERNACIONAL LUSÓFONO (www.movimentolusofono.org) ; CONTACTO: info@movimentolusofono.org (967044286)

SEDE: Sociedade da Língua Portuguesa, Rua Mouzinho da Silveira, 23, 1250-166 Lisboa ; NIB: 0036 0324 99100004336 09; NIF: 509 580 432

IV
CICLO "PROBLEMÁTICAS EM ESTUDOS PORTUGUESES" (1)
(Da 2ª metade do séc. XIX ao início do séc. XXI)

1. Cesário Verde: Tradição; Tendência artística; A temática da oposição;
Influências literárias
2. Fernando Pessoa/Alberto Caeiro:
A poética da não-filosofia reflexiva ou da filosofia não-reflexiva
3. João de Araújo Correia: A arte de Contar a vida
4. José Saramago: A ficção/O fantástico na intervenção cívica romanceada

António José Borges
4 sessões, a partir de 12 de Janeiro (até 2 de Fevereiro), às quartas (18h30-20h00)

V
FINANCIAMENTO DE PROJECTOS CULTURAIS ATRAVÉS DE PATROCÍNIO E MECENATO

Objectivo:
Conhecer as metodologias e os processos necessários à angariação de financiamento através de Patrocínio e Mecenato Cultural.
Destinatários:
Organizações culturais públicas ou privadas: associações, cooperativas, fundações, estudantes, artistas e todas as pessoas interessadas em obter informação sobre Financiamento de Projectos Culturais através de Patrocínio e Mecenato.
Metodologia:
As sessões serão maioritariamente divididas em períodos expositivos e de debate, com recurso a "casos de estudo" e exercícios, Encoranjando-se os formandos a desenvolverem uma proposta/dossier de patrocínio ou mecenato ao longo do curso bem como à sua discussão/apresentação.
Materiais Pedagógicos e certificado:
Será entregue um Manual completo do curso, bem como declaração de participação no curso. É igualmente disponibilizado o acesso online a documentação em formato digital sobre Marketing da Cultura e Patrocínio/Mecenato.

Rui Matoso
15 horas (5 sessões de 3 horas),
Segundas e Sextas-feiras, das 18h30 às 21h30. Início: 10 Janeiro Fim: 24 Janeiro

VI
LER NAS PEDRAS

... E se fosse possível aprender a ler não apenas as letras do alfabeto mas também os elementos de leitura das nossas capelas, igrejas, mosteiros, conventos, monumentos de pedra -que os seus constru tores, há tantos séculos, con ceberam como autênticos livros de pedra?

Durante quatro sessões, sem sairmos daqui, mas vendo imagens e reflectindo sobre elas, vamos viajar no tempo e no espaço deste Portugal que tão mal conhecemos, tentando decifrar as mensagens escritas nas pedras dos monumentos da chamada Pré-História e das arquitecturas Românica, Gótica e Manuelina – correspondentes a três fases fundamentais da nossa História.
E talvez seja possível acabar por descobrir que nem tudo vem nos livros das nossas bibliotecas, esses outros livros feitos de pa pel e letras de tinta…
As letras das pedras contam-nos outras histórias, feitas de imaginação e de sonhos ainda não concretizados.

Primeira Sessão: Relação entre os monumentos megalíticos e os monumentos das artes consideradas históricas. Arte Românica em Portugal.
Segunda Sessão A arte Românica em Portugal e a sua linguagem própria, surpreendente de imaginação, em relação com os Bestiários medievais e com as influências orientais.
Terceira Sessão A arte Gótica, a luz e o movimento das pedras para os céus.
Quarta Sessão Síntese da arte Manuelina num momento de refundação do país.

As sessões serão ilustradas mediante a projecção de imagens dos monumentos, que fazem parte da colecção particular do formador. Assim, sem sairmos do mesmo lugar, viajaremos no tempo e no espaço...

Objectivos: Chamar a atenção para o nosso património construído an tigo – capelas, igrejas, conventos, mosteiros, com exemplos no Norte, no Centro e no Sul -, geralmente mal conhecido, e cujas pedras têm inscritas mensagens importantes para todos nós, sejamos ou não religiosos. A intenção deste curso breve é ensinar «a ler as pedras» desses monumentos.
Destinatários: Todos aqueles, sem limite de idade, que sintam curiosidade em tentar perceber o que esses monumentos representam, sobretudo o que significam aqueles portais, aquelas escul turas, aquelas estranhas gárgulas, os desenhos daquelas ar quitecturas, os homens que os construíram de tal modo que ainda hoje estão de pé, tantos séculos depois. A linguagem deles.

António Carlos Carvalho
4 sessões, a partir de 11 de Janeiro (até 1 de Fevereiro), às terças (19h00-20h30)

VII
CONTOS QUE CURAM

Como utilizar os contos como ferramenta de mudança
Comum às diversas culturas, as histórias e a sabedoria popular oferecem informações sobre regras e conceitos e ilustram a fantasia milenar dos povos, permitindo o desenvolvimento de conceitos, valores e habilidades na resolução prática de conflitos.
Mediante as histórias, preconceitos, ressentimentos e mesmo as resistências são reduzidos, promovendo a mudança educativa das pessoas, em contexto terapêutico, escolar laboral ou mesmo familiar.
Como mediadores entre as pessoas (terapeutas e pacientes, líderes e equipe, docentes e discentes, membros da mesma família e/ou casal), permitem que o ouvinte se identifique, e, assim, fale de si, das suas dificuldades e dos seus conflitos, e dos seus desejos, pois o conto não “ataca” diretamente – nem a ele nem aos seus conceitos ou à sua auto-estima.
Essa mudança de posição ajuda à reinterpretação de conceitos e, sobretudo, ampliá-los, numa relação com os outros.

Conteúdo programático
1. Apresentação:
a. Levantamento de conhecimentos prévios dos participantes;
b. Apresentação e consulta conjunta do programa de formação;
c. Partilha de bibliografia, histórias e autores conhecidos.
2. Introdução à teoria das histórias:
a. Alguns modelos explicativos sobre as histórias;
b. Padrões interculturais nas diversas histórias;
c. As funções das histórias.
3. As histórias na prática:
a. Que história pode ser utilizada em que contexto;
b. As histórias na educação;
c. As histórias nas organizações;
d. As histórias na psicoterapia;
4. Avaliação final:
a. Avaliação dos formandos, através da seleção de um contexto ou um caso, real ou fictício, utilizando uma determinada história, justificando a escolha;
b. Avaliação da atividade formativa, através do preenchimento de ficha escrita de avaliação do curso, dos conteúdos, dos módulos e do facilitador pelos demais participantes;
c. Debate final sobre a atividade formativa, aspectos a melhorar e temas a aprofundar.
Objectivos do curso
No final do curso, os participantes irão estar munidos com um depósito superior de histórias que deverão ser capazes de utilizar em contextos diversos (educativo, organizacional e/ou psicoterapêutico), no momento oportuno.

Destinatários
Profissionais e estudantes e das áreas de diversas áreas, num número mínimo de 10 participantes inscritos no curso.

Sam Cyrous
4 sessões, a partir de 13 de Janeiro (até 3 de Fevereiro), às quintas (16h00-20h00)

Sam Cyrous (shcyrous@gmail.com) é Psicólogo, Mestre em Psicoterapia Relacional e membro da International Academy for Positive and Cross-Cultural Psychotherapy, fundada por Nossrat Peseschkian, criador do modelo de Psicoterapia Positiva e Transcultural e especialista na utilização de histórias como ferramentas psicoterapêuticas.

sábado, 18 de dezembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 115



O EQUÍVOCO DA CHAMADA «MORTE DA EUROPA»

Eduardo Aroso

«A esperança na salvação do mundo pela Europa nada tem a ver, no espírito de Carlos Aurélio, com finanças ou economia. Como a ciência económica nada tem resolvido até agora, das duas uma: ou a ciência económica não é ciência ou aqueles que dedicaram toda a vida a estudá-la ainda não conseguiram penetrar nos seus misteriosos segredos».
Do prefácio de António Telmo à obra Mapa Metafísico da Europa, de Carlos Aurélio (ed. Fundação Lusíada)

É curioso começar por observar que não se diz a morte da Ásia, ou a morte da África, quando actualmente se repete incessantemente a morte da Europa. Só o que nasce pode perecer. Assim sendo, é caso para perguntar se os dois primeiros continentes, imunes à degeneração, ainda não vieram à luz do mundo (!), ou se estão todos bem de saúde, de modo a não sofrer da dita fatalidade. Ou existe algo do nosso continente que não pode escapar a essa implacável lei natural?
Não me parece que a Europa de Bach e de Beethoven, de Gaudí e de Rodin, de Victor Hugo, de Camões e de Dostoiévski, de Leonardo da Vinci e de Rafael, de Newton e Einstein, de Kant e de Hegel, possa morrer definitivamente, como se as obras destes pioneiros não servissem para mais nada. Se nos interrogarmos se a Europa das ciências e das humanidades se encontra, há já muito, diluída por outros continentes, é evidente que a resposta é fácil. Mais difícil é apurar o que de melhor da cultura europeia tem ajudado ao desenvolvimento de outros povos, no contraste actual de certa barbárie feita com as cinzas daquilo que o velho continente não superou, ou que outros aproveitaram em avassalador materialismo. É certo que, ou por premeditada e obscura intenção de alguns autores, ou pela ligeireza informativa e cariz político com que se fazem certas notícias, tem-se decretado a morte do nosso continente. Mas, seja como for, se houver morte da Europa, a esta só lhe resta renascer de si mesma. Isto pode não passar pela cabeça de muitos, como não passou ao tempo do Renascimento que, depois do Direito Romano e da teologia da Idade Média, ainda nasceria de novo para o ideal grego nas suas várias manifestações.
Seria numerosa, se mencionada, a lista de grandes construtores do mundo ou espíritos da Grande Obra. O que nos legou uma Maria Montessori, um S. Francisco de Assis, uma Joana d’ Arc e um Bandarra, serão ainda um sol do futuro, ao contrário de muitos meteoros do presente que nos caem em cima, tapando-nos o céu que guarda estrelas muito mais perenes. A haver “cadáver” Europa só pode ser o da sociedade de negócios, em partes desiguais, chamada C.E.E., que já não usa aquela típica sigla S.A.R.L. (sociedade anónima de responsabilidade limitada). Não tem havido, sobretudo nos últimos tempos, a responsabilidade dos sócios maioritários para com os restantes, desabando, como consequência, sobre milhões de seres que, apesar de existir uma UNESCO, observam impavidamente a mutilação das culturas regionais e nacionais com a perda do melhor que cada povo tem: o seu casticismo e singularidade. Por outro lado, vêem desaparecer a chamada classe média, a única que pode proporcionar a formação das elites no cultivo da alta cultura, como garante civilizacional. Nisto tudo impera o domínio obscuro através da tecnologia a que também se chama globalização, não sei se igual ou diferente daquela no tempo do Império Romano que utilizou o latim como “instrumento de ponta”.
Seria pouco razoável admitir que a História da Europa não tem traços negros, fragilidades várias, corpo de civilização sujeito ao mesmo que um ser humano tem, a partir de certa idade: o de partir facilmente uma perna ou um braço ou estar sujeito a outras mazelas próprias dos anos. Todos sabemos que muitos europeus cultos de séculos passados acreditavam que certos povos indígenas mais se assemelhavam a bestas de carga do que a seres humanos, homens do velho continente, da sociedade e da política, e representantes eclesiásticos que também tiveram as suas “guerras santas”, com mais perdão, diga-se, do que aquelas que, passados vários séculos, hoje ainda se fazem, num tempo que devia ser outro, mais à frente e mais acima. Se a tecnologia, para o bem e para o mal, globalizou o mundo ao arrepio dos navegadores portugueses que o ligaram e deram a conhecer muito antes, os que hoje exploram o planeta e o injectam de perversidade, sejam europeus ou não, e, directa ou indirectamente, lhes terá servido o Direito Romano e o que Platão e Newton legaram, ainda terão de abrir os velhos livros, se não se quiseram extraviar ainda mais. De modo nenhum para voltarem a fazer comboios a vapor ou outro engenho ultrapassado; não, por certo, os livros de economia que estão praticamente desactualizados a cada ano que passa, mas para perceberem que a Vida encontra-se na Vida, numa (re) leitura ao jeito de quem, por exemplo, olha vezes sem conta o deslizar de um belo rio, numa manhã de primavera, e nunca se cansa de o fazer.
Ainda que toda a experiência seja bem precioso e inalienável quando assimilada, pouca sabedoria o futuro imediato poderá retirar desta sociedade de negócios chamada C.E.E., já com sucursais em todos os continentes, que, afinal, e paradoxalmente, não emprega os seus sócios (leia-se os muitos filhos, havendo apenas lugar para os afilhados). Essa falange europeia – felizmente não toda – orgulhosa, jacobina e sobretudo plutocrata, terá ainda de aprender muito com Eckhart e Leibniz, inspiradores de filósofos, pensadores e até (pasme-se) de cientistas do mundo quântico, ao mais alto nível. Aprender ainda com o primeiro ecologista do planeta, o místico S. Francisco de Assis, livre de dinheiros em bancos, de política corrupta e sindicalismo rasteiro. O seu sentimento - mais que sentido - ecológico não se preocupava com difusas “diversidades actuais” e “ordenamentos territoriais”: o Amor é que ordenava (ordena), verdadeiro sustento de tudo, do homem inteiro na natureza toda, a sensível e a transcendental, bem patente no imortal poema que nos deixou. De tal modo este Amor foi grandioso que a ciência natural lhe deve grande impulso, para já não falarmos da despojada audácia dos franciscanos (e não outros) que iam nas primeiras naus portuguesas da demanda, factos históricos estes bem observados pelo nosso Jaime Cortesão.
Se esta Europa de sempre não pode morrer, há-de ter cirurgia plástica e limpeza interior e externa do corpo, isto é, adoptar um outro paradigma que deponha humildemente o ideal grego, no sentido filosófico (não propriamente a cultura helénica), acrescido de tudo o que o velho continente fez de alquimia civilizacional ao longo das épocas; erguer a luminosa esperança no altar das mais altas expectativas: humilde e laborioso, de justeza mais que de justiça, e de fraternidade mais que de sociabilidade.
É consolador verificarmos que na Europa de hoje há assistência médica mais eficaz e imediata a um sem-abrigo, se compararmos com a ajuda dada a um acometido de peste ou lepra, em séculos passados. Porém, isso não pode ser emblema de orgulho e descanso de consciências, pois nascemos e vivemos no tempo que é o tempo de cada época. A questão é saber se esse sem-abrigo tem alguém que lhe dê uma palavra de consolo (já que o que é oficial não consola ninguém) nas paredes bem limpas e desinfectadas de um hospital, e se a Europa das massas letradas, que sobem nas estatísticas de mestrados, doutoramentos e outras qualificações, ainda sabe o que foi a Europa, no que ela se tornou e o que ela ainda pode vir a ser. Se nos ativermos unicamente aos resultados que nos dão nas televisões, das habituais mostras de inquéritos, concluiremos sem dúvidas que a esmagadora maioria nada sabe do velho continente, nem sequer, provavelmente, o nome do rei-fundador ou do primeiro presidente da república da sua nação.
Assim como Fidelino de Figueiredo viu «As duas Espanhas», o geógrafo antigo Al-Rasis desenhou duas Ibérias, a dos rios que correm para o Mediterrâneo e a dos rios que correm para o Atlântico, também nós podemos ver duas Europas, não já a eslava e a do ocidente, mas a dos alicerces de perenidade, de sinal bem visível no Renascimento (Fénix sobre todos os escombros) e a Europa-Sociedade que hoje fabrica “escravos de ordenado mínimo” e alguns capatazes bem pagos. Uma dessas duas Europas, a da maquilhagem que se desfaz depois da recepção e da festa dos convivas da dita sociedade, é a sombra tétrica da verdadeira que não pode perecer na sua inteireza.

Quase Solstício de Dezembro, 2010

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 48


Baobá Rei (árvore de Moçambique)

António Carlos Carvalho

«Ladainha dos Póstumos Natais»:

«Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito»


David Mourão-Ferreira, in «Cancioneiro de Natal»

Veio-me à memória este poema, na noite passada, depois de receber abruptamente a notícia da morte de Carlos Pinto Coelho, com quem partilhei, durante nove anos, a aventura do «Acontece» -- um telejornal cultural diário, e que foi barbaramente assassinado por um ministro mentiroso e vil, em 2003, com pretextos meramente economicistas (já nessa altura…), ainda por cima sem fundamento algum. Uma mentira descarada e pomposamente ministerial.

Lembrei-me deste poema por razões óbvias mas também porque, quando o David (com quem eu tinha trabalhado em «A Capital») adoeceu, e nós soubemos disso no «Acontece», o Carlos pediu-me para preparar uma peça que devia entrar no ar quando se soubesse da morte do poeta.
Mas eu tinha acabado de encontrar o David na rua, com sinais evidentes da doença (era uma sombra dele próprio, mas ainda teve forças para me dizer, com um sorriso débil: «Estou resistente, não desistente…») e recuei, aterrado com a presença da morte a pairar por ali. Não consegui fazer nada, falhei como jornalista e como consultor do programa -- a verdade é essa.

Porque continuo a pensar que a morte não é uma coisa «natural», que temos de aceitar com resignação: é, sim, um absurdo e um mistério, perante a qual só podemos tomar uma atitude de silêncio impotente. Sei que agora se tornou moda bater palmas nos enterros (chegámos a isto…) como se aplaudíssemos a vitória da Morte. Mas eu sou do tempo dos funerais feitos em silêncio, reverente e comovido.

E depois veio mesmo o Natal, o primeiro de muitos outros, em que deixámos de ver o David em qualquer lugar, excepto no lugar guardado na nossa memória.

E agora chega o Natal em que já não vejo o Carlos, nem ouço a sua voz ao telefone, nem leio as suas mensagens…

Termina assim este ano mortífero, em que perdi, primeiro, três gatos, criaturas também amadas; depois o meu Pai; a segui o António Telmo; e agora o Carlos.
(Aqui a memória traz-me um outro título, terrível, do Vergílio Ferreira: «Onde Tudo foi Morrendo»).

O Homem é realmente como uma Árvore: também ele nasce, cresce (para os Céus, mesmo quando não acredita neles), dá frutos e depois apodrece ou cai de repente no chão, ceifado por um golpe de vento, por um tornado.

A minha floresta tem cada vez mais clareiras, e o sol que entra por elas já não me aquece.

Só me consigo aquecer com a única resposta possível à morte: a vida, o amor -- que é tão forte como a morte, conforme nos ensina o «Cântico dos Cânticos».

Agora tenho também de pedir a Deus que chame a alma do Carlos para junto de Si, que o faça beneficiar da sua Luz -- bem diferente das luzes dos palcos, da iluminação dos estúdios de televisão, das ilusões que inventamos neste mundo.

Assim seja.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

SABEDORIA ANTIGA, 4



Alexandra Pinto Rebelo

Foi-me mostrado, desde sempre, que o mundo clássico, isto é gregos e romanos, tinha um sentido religioso um pouco perturbador.
Aquela gente, capaz de escrever verdadeiros monumentos tais como a "Íliada" ou a "Eneida", referências literárias de uma Europa que ainda não se cansou de as estudar; capaz de lançar alicerces fortíssimos tais como o conceito de democracia, os preceitos da filosofia, da história, do direito e tantos outros; poetas-intérpretes tão sublimes da alma humana que, até hoje, ainda usamos os seus mitos como legendas grandiosas da nossa pequenez tais como o "complexo de Édipo", a "caixa de Pandora", o "calcanhar de Aquiles"; artistas tão surpreendentes que, passados quase mil anos de silêncio, conseguem ressurgir em indicações estéticas para o Renascimento... aquela gente, dizia, que fez tudo ou quase tudo em grande o que uma grande civilização pode fazer, tinha apenas um instinto religioso primitivo, ramalhete de terrores inspirados pelas severidades atmosféricas e de loucuras desculpadas pelos estados psicóticos induzidos.
Nesta leitura há qualquer coisa, então, que não encaixa. Não é necessário pensar muito para compreender que a antiguidade clássica foi julgada pelos vencedores, ou seja, pelos cristãos. Pela segunda vez na história reforçava-se a ideia de que só existia um deus verdadeiro. A minha expressão "reforçar a ideia" é, claro, um eufemismo. Existindo só um deus, todos os outros se tornavam falsos, por seu decreto. Os adoradores dos outros, podiam tomar vários adjectivos desde os mais simpáticos como patetas, aos mais benevolentes, como iludidos, até aos mais perigosos, como heréticos. Estes adjectivos mais perigosos eram geralmente acompanhados de uma acusação que levava à morte. O percurso até ela era, geralmente, muito humilhante, perturbador e doloroso.
Pretendo com tudo isto deixar só uma pequena nota, por hoje. em relação à religião clássica. Aquela gente que a praticava tinha exactamente os mesmos instintos religiosos de todos os povos. Os seus deuses funcionavam tão bem como os de quaisquer outros. Torna-se comovente para nós, hoje, lermos as suas inscrições nos templos. Podermos partilhar dos seus desejos íntimos, do seu louvor, dos seus desabafos para com os seus deuses é uma espécie de bênção.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 114


Caravela
Cynthia Guimarães Taveira

Foi a caravela
Que tudo viu
Seus olhos de proa
Foram quem tudo sentiu
De braços erguidos
Em jeito de velas
Furou ventos, marés
Ouviu os sentinelas
Foi a caravela quem sentiu o frio
Sua madeira tosca
Rangendo nos passos do mar
Ergueu-se acima da onda
Voou, deixando a espuma a dançar
Foi a caravela a esperar
Pelos homens de braços cheios
Vindos de longe para embarcar
Foi ela quem contou
Os sóis dos dias
As estrelas, as gotas de mar
Foi ela quem soube
De melhor porto para orar
E quem conheceu os homens
Pelo seu cantar
Foi ela quem nos disse
Onde podíamos amar
E trocou o nosso coração vivo e quente
Por si mesma, no seu lugar

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

ENIGMAS, 3


"Melancolia" de Dürer

Rectas e mundos paralelos
David R. Nelson, fisíco da Universidade de Havard, resumiu do seguinte modo o impacto dos cristais de simetria pentagonal no pensamento teórico:

"Sobre certos aspectos, esta descoberta fez, em relação a uma das ciências físicas, aquilo que a descoberta da geometria não euclidiana tinha feito, em relação às matemáticas: demoliu um axioma e dissipou uma certa presunção. Criara-se o hábito de pensar que as linhas paralelas nunca se encontravam e que os cristais tinham de ser bem educados e apresentar, sempre, estruturas periódicas. Pois bem, agora sabemos que as linhas paralelas, de facto, se encontram sobre uma esfera e que os cristais icosahedral phase possuem estruturas ordenadas, mas não periódicas"

in "515, O Lugar do Espelho" , Lima de Freitas, Ed. Hugin, 2003, pág. 351

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 113



APOCALIPSE DE URGÊNCIA
Eduardo Aroso

Ao Pedro Martins

Eis que se fazem outras as mesmas coisas
Onde do lume da terra já são as bocas
Puras renascidas na palavra do Espírito Santo.
Das águas do presente sem memória
Há frescura subindo como as manhãs
Às estrelas mais altas irradiando.
Eis a mão de Deus no afago
Da tarde dourada nunca vista
Para o silêncio das nocturnas sinfonias
Onde nascem flores no pântano da solidão.

Crianças de sorriso cintilante,
Ó anjos intocáveis,
Bússolas de todo o dia,
Delas ninguém se distrai.
Eis que se fazem outras as mesmas interrogações
Na inquietação do tempo equidistante
E a chuva ácida quando cai
Traz o mel das constelações.

Meu berço sem hiatos,
Nave de todas as horas,
Fénix de todas as provações,
Sou o simples vento dos prados,
Boca límpida de todas as orações.
Plantarei uma espada como árvore
Virada à alma dos homens
Que se venderam e vendaram nesta geração,
Para que sintam definitivamente o verde
E os actos subindo, talo fresco de bondade,
E a graça virgem ansiada das águas
Do primeiro dia da Criação
Ainda vindouro para a verdade.

3-11-2010

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

ACONTECEU...



Realizou-se no dia 3 de Dezembro, na Escola Superior de Educação Almeida Garrett, em Lisboa, a primeira tertúlia que inaugurou o CELAS – Centro de Estudos de Lusofonia Agostinho da Silva. Subordinada ao tema «Educar, para quê?», foram oradores o Prof. Paulo Borges e Eduardo Aroso. Na sessão estiveram presentes algumas dezenas de pessoas: alunos, professores e outras pessoas. A sessão encerrou-se com um apontamento musical em guitarra portuguesa e guitarra clássica, respectivamente por Álvaro Aroso e Eduardo Aroso, com peças originais do primeiro. O CELAS, no âmbito da Escola Superior de Educação de Almeida Garrett, tem como “patrono”, o poeta e incansável Prof. Carlos Carranca, docente daquele estabelecimento de ensino.

SABEDORIA ANTIGA, 3



Eça e os sinais de reverência

Alexandra Pinto Rebelo

A maior parte dos portugueses limita-se a ter "conversas de corredor" sobre os autores portugueses no ensino secundário. Não há tempo para se aprofundarem questões, para considerar o escritor uma pessoa inteira e, como tal, nada semelhante a um único bloco coerente. Eça é um positivista, tenta-se retirar disso as provas mais do que batidas em "Os Maias" e ponto final.

A minha formação universitária é em literatura. Foi só num dos últimos anos do curso que me apresentaram os outros Eça. Aquele inicial, romântico, mais tarde reunido num volume com o cómico título de "Prosas Bárbaras"; o jornalista que, tendo à porta do prédio o paquete esperando a sua crónica para ser publicada no jornal e que, não tendo nem texto nem ideia do que iria escrever, resolveu arrasar o bei (governante) de Tunes, capital da Tunísia; o jovem viajante, escrevendo páginas emocionantes sobre a sua viagem ao Egipto; o homem religioso que, quase no fim, escreve sobre a vida de santos.

Há dois momentos da sua vida que considero comoventes para nós enquanto leitores. Leitores sobretudo da personalidade de um escritor. O primeiro momento é descrito por Raul Brandão no seu livro "Memórias", ocorrido na viagem que Eça faz ao Egipto acompanhado pelo seu futuro cunhado, o Conde de Resende. Ambos assistem à missa no túmulo de Jesus, em Jerusalém. Eça, profundamente emocionado pela situação, cai de joelhos em reverência. Quando o Conde de Resende levantou os olhos, dois ou três mil peregrinos tinham imitado aquele impulso emotivo, ajoelhando-se da mesma forma.

Outro episódio, mostrando o mesmo sentido de devoção profunda, é nos relatado pelo próprio Eça de Queirós, em "In Memoriam", colectânea de textos publicada em 1896 em memória de Antero de Quental. O testemunho de Eça tem o título sugestivo de "A um génio" que era um santo. Descreve como, andando em Coimbra, ainda estudante, numa noite macia de Abril ou Maio avistou sobre as escadarias da Sé nova um homem, de pé, que falava. "O homem com effeito cantava o Ceu, o Infinito, os mundos que rolam carregados d´humanidades, a luz suprema habitada pela ideia pura(...)". Deslumbrado, o jovem Eça toca o cotovelo de um camarada que lhe murmura entre gosto e pasmo: "- É o Antero!..." Sentados nos degraus da igreja, outros homens embuçados, escutavam, em silêncio e enlevo "como discípulos". "Então, (...) destracei a capa, também me sentei n'um degrau, quasi aos pés de Anthero que improvisava, a escutar, n'um enlevo, como um discípulo. E para sempre me conservei assim na vida."

sábado, 4 de dezembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 112


Portugal
Cynthia Guimarães Taveira

Perdeste a memória
e a esperança
Perdeste a glória e o desejo
Perdeste a honra e a espada
Perdeste o mar e o sonho
Perdeste o esquadro e o compasso
Perdeste a juventude
e o sentido da diáspora
Perdeste as naus no grande mar
Perdeste a voz e o cantar
Perdeste a esmola de Deus
Perdeste o dom e o sacrifício
Perdeste os tesouros e os sorrisos
Perdeste a alma na lama
Perdeste a alegria e o sabor
Perdeste o saber e o ardor
Perdeste os filhos que hão-de vir
Perdeste a lança e o pendor
Perdeste a vitória e o dragão
Perdeste a virgem e o anjo
Perdeste a viagem a fazer
Perdeste a veste azul da bandeira
Perdeste a força da maré
Perdeste o gesto do sol posto
Perdeste o encanto do sol a nascer
Perdeste os cabos da dor
Perdeste a esperança no amor
Perdeste os poetas sem pudor
Perdeste a revolta de saber ser
Perdeste os cravos e o sangue
Perdeste Cristo nas escadas
Perdeste as escadas dentro de ti
Perdeste o rasto da serpente
Perdeste a caça ao outro mundo
Perdeste a graça
Perdeste a língua
Perdeste o escudo
Perdeste o nome
Perdeste tudo

Perdeste?

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

É NOTÍCIA...

NO PRÓXIMO SÁBADO, ÀS 15:00, NA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE SESIMBRA
Lançamento da edição fac-similada da 1.ª série da revista A Águia, com a chancela da Al-Barzahk, com a presença do editor M. N. Vieira. Apresentação de Pedro Martins.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 111




(RE) CRIAR UM MITO PORTUGUÊS
Eduardo Aroso

As contradições do predomínio do pensamento lógico-racionalista, que ainda persiste, só poderão resolver-se, ou pelo menos atenuar-se, pela (re) criação de um mito. Fernando Pessoa disse que a sua maior ambição era a de ser criador de mitos. Natália Correia respondendo, de algum modo, ao apelo do surrealismo, escreve na antologia de poesia que organizou dedicada a esta corrente artística: «Não se trata de reabilitar os mitos legados pelo passado, mas de restabelecer as forças que nutriam a consciência mítica, utilizando-as para consumar o parto difícil de um mito moderno que a nossa época exige como única solução possível para as precárias condições de vida que nos oferece». Assim, à autora parece essencial o sopro ou espírito do mito para incubar um outro na contemporaneidade, o que acaba por ser o reconhecimento de algo presente na Tradição.
Enquanto que nesta primeira década do século XXI, que Natália Correia já não chegou a viver, o sentido do precário, de que nos fala, está quase todo ele atolado nas condições de sobrevivência alimentar, habitacional e pouco mais, já na sua época – que não foi substancialmente diferente da actual - a criadora de versos entre a ousadia lírica, a ironia e o mítico, reclamava outras condições de vida para a precariedade dominante, ontem como hoje, no sufoco do compulsivo pensamento lógico-racionalista.
Se (re) criarmos um novo mito que tenha o Sol como o maior herói de sempre, dispensador de alimentos, saúde e elevada inspiração para tudo o resto que a vida requer, é possível que ajude a solucionar o grave problema da chamada sustentação social. Assim, no presente mundo em que os habitantes vivem mais anos que no passado, eliminadas muitas doenças pelo científico aproveitamento solar e desenvolvimento da medicina, e na possibilidade de a idade gerar sabedoria, talvez a renda da casa, electricidade e algo mais estejam pagos.
Mas também não seria despicienda a ideia de um mito marítimo. E por que não um contra-mito? Bastaria que o sentido do medo e do não agir, na figura do Adamastor, se volvesse um Anjo luminoso. Mas esta é uma impossibilidade manifesta, a de haver apenas uma das partes, isto é, um contra-mito que não suponha um mito. Como se verá de seguida, temos tido esse contra-mito, face a face, por certo mais renhido em determinados momentos da nossa História. Tanto o ensino oficial como a grande maioria dos intelectuais portugueses têm recusado o mito do Desejado, embora ele subsista nos subterrâneos da nossa psique. Esta atitude, que vem de longe, foi-se estratificando na sociedade portuguesa, de tal modo que hoje temos uma egrégora que ronda as instituições: a da atitude imediata de obstrução, a do não, a do «isso é muito difícil», a de preencher mais um papel, corporizando assim um estado de espírito que, face a uma ideia ou projecto (sobretudo se for de índole portuguesa) logo surjam indesejados.
E, tal como entre todas as tradições mitológicas onde o pano de fundo é a eterna luta das forças das trevas contra as forças da luz, podemos conceber entre nós (não terá já existido desde o distante passado?) o confronto entre o Adamastor e o Arcanjo de Portugal. Mas não nos iludamos: apesar de vencido, o inimigo volta sempre, para provação do vencedor. Daí também o sentido destes tempos de decadência de Portugal. Resta-nos a esperança de que no combate entre as hostes das trevas e as da luz, somos e sempre seremos lusíadas!
Num ciclo já dilatado, em que Portugal foi descendo aos infernos ou corredores mais escuros da existência (fase involutiva do mito) só a luz solar - cujo prenúncio pode ser de novo um espiralado voo de águia (quem sabe se, desta vez, a imediata captação energética através da alma!), poderá ser redenção para tanta escuridão. Mas não tem sido a falta de claridade o pior dos cenários, pois na ausência há sempre ecos de alguma presença, mas a humilhação e a dilaceração provocadas à pátria portuguesa, cuja alma está hoje aturdida e por isso impedida de escutar e compreender as palavras de Agostinho da Silva: «o tempo que vivemos, se for mesquinho, amesquinha o eterno."

Eduardo Aroso
Outubro 2010

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 47


(Fotografias de Alberto Peixoto)

António Carlos Carvalho

Folheando papéis velhos (guardo poucos recortes do que escrevi nos jornais), encontrei um texto publicado exactamente há trinta anos. Lembrei-me então de visitar o hospital onde Fernando Pessoa morrera quarenta e cinco anos antes -- o Hospital de S. Luís dos Franceses, na rua Luz Soriano, em Lisboa. Levava comigo, como guia, a biografia de Pessoa escrita por João Gaspar Simões, em que este descrevia os últimos dias do poeta neste mundo.

Nessa reportagem descobri então a folha numero 13 do livro de registos do hospital, referente a Novembro de 1935. Lá encontramos assinalada a entrada de «Monsieur Fernando Pessoa» no dia 29, tendo recebido o número de ordem 1351. E a data da morte, 30. Segundo o mesmo registo, a sua estadia no hospital custou quarenta e cinco escudos. O funcionário de serviço não registou a sua morada, como fazia a todos os doentes -- porque se esqueceu? Porque não houve tempo para tal? Ou porque não havia ninguém para lhe dar essa informação? No entanto, o mesmo livro regista que este doente morreu de «cólica hepática»

Descobri também que, segundo rezava a tradição desse hospital, Pessoa tinha morrido no quarto número 30, situado no terceiro andar. Claro que esse quarto já não apresentava o mesmo aspecto que tinha nessa altura. Sofrera obras, tinham-no pintado de outra cor, tinham retirado os móveis antigos, substituindo-os por outros mais modernos e funcionais. Mas, seja como for, «alguma coisa», não sabia bem o quê, ficara ali, permanecia entre aquelas quatro paredes.

E então descobri ainda uma estranha coincidência: nesse mesmo quarto, trinta e cinco anos depois, em 1970, viria a morrer também Almada Negreiros, amigo de Pessoa…

Nunca mais me esqueci disto. E agora sinto algum reconforto reencontrando este recorte amarelado de jornal. Como se o passado nunca passasse realmente, na memória dos lugares, das coisas, das pessoas.

domingo, 28 de novembro de 2010

SABEDORIA ANTIGA, 2


Os olhos de Cabíria
Alexandra Pinto Rebelo

É de 1957 o excelente filme de Fellini, "As Noites de Cabíria" (no original, "Le Notti di Cabiria").
Cabíria vive num dos mundos pelo qual todos nós preferimos passar ao lado. Vive numa casa tosca, num subúrbio inenarrável da cidade de Roma. Prostitui-se, ganhando com isso algum dinheiro que vai pondo de parte. O local onde se mostra, juntamente com outras cúmplices de infortúnio, é um complexo de ruínas do antigo império romano.
Cabíria tem o sonho de encontrar alguém que a ame. Passa, por acaso, num velho teatro que apresenta, nessa noite, um espectáculo de ilusionismo. Cabíria entra e é escolhida por entre o público para ser parte integrante daquilo que se vai passar. Cabíria é hipnotizada, revelando perante uma plateia cheia de desconhecidos, que dela se riem, o seu sonho inocente.
No fim do espectáculo, um homem vem ter com ela. Oferece-lhe um café. O homem, tal como Cabíria, tem um olhar cansado, tão cansado, mas capaz ainda de algum brilho. Começam a encontrar-se com alguma regularidade. Ambos vivem num exílio da sociedade comum, exílio esse escolhido ou não (talvez nem os próprios saibam. E nós, saberemos?). Crescem os sorrisos e o brilho. Ao fim de algum tempo planeiam casar e comprar um pequeno negócio. Cabíria vende a sua casa tosca, levanta todo o dinheiro junto até então. Encontram-se num restaurante agradável fora de Roma, com vista sobre um lago. Cabíria leva um rolo enorme de notas, tornadas em símbolo que se metamorfoseou. Eram elas o resultado da sua vida de excepção, pela negativa, representando agora a base para o início do sonho que se irá cumprir. Mas cumprir-se-á?
O homem sugere-lhe ver o pôr-do-sol à beira do lago (ideia tão antiga esta do Sol se pôr, incorrecta, é certo, mas poética). Leva-a até ao topo de uma arriba. A testa dele sua demasiado. Compreendemos que algo está errado, muito antes de Cabíria. Ela tem os olhos ainda cheios de paixão. Escorrega, quase caindo. Nesse momento pressente o que aconteceu, o que acontece, o que vai acontecer. Os seus olhos mantêm a forma da paixão, mas são atravessados de dor, enchendo-se de lágrimas.
Com este texto apenas queria chegar aqui, onde cheguei: a este olhar de Cabíria. É um olhar humano, perfeitamento coadunado ao nosso plano humano. Há uma mulher tornada feliz que, no momento em que pressente a desilusão, junta dois sentimentos díspares no mesmo olhar. No entanto, este olhar também pode ser elevado ao plano civilizacional. Todos nós, os do Sul da Europa, ou de uma forma mais extensa, os do Mediterrâneo, compreendemos bem isto. O olhar de Cabíria são os nossos sonhos interrompidos. O olhar de Cabíria são as ruínas pelas quais passamos diariamente, representando a morte daquilo que foi projectado. Não me refiro só aos sonhos de um Cristianismo puro, aos de um Islão doce, aos dos Descobrimentos ou àquele do V Império do mundo. Refiro-me também aos sonhos mais práticos e mais recentes de uma sociedade justa, com emprego, baseada no mérito e no humanismo.
Este é o último sonho da Europa que está, agora, pleno das lágrimas de Cabíria. Qual será o final? Não falei dele propositadamente. O do filme é fácil de ver. O da Europa do Sul, logo se verá.

EXTRAVAGÂNCIAS, 110


Portugal sonhado
Cynthia Guimarães Taveira

Hoje acordei com um sonho estranho e com uma confusão paradoxal. Sonhei com a essência de Portugal. Era uma arriba que se elevava do mar praticamente na vertical. Uma arriba comprida para cima. Incrustada na arriba, em pedra branca, ligeiramente translúcida com laivos subtis de âmbar, estava esculpida uma cara de criança aí com uns três anos de idade. Essa cara era a proa de um barco e esse barco era Portugal. Não era uma jangada de pedra, era um enorme barco. A expressão da criança que havia sido esculpida era tão forte como o mar (nela havia determinação, inocência e uma certa violência contida). A criança, que era a alma de Portugal, tinha exactamente as mesmas propriedades que o mar. Do sonho ficou-me a lição: Portugal era, no seu âmago, todo virado para fora, Portugal era de natureza marítima, Portugal não era uma jangada de sobreviventes, era um barco imponente, carecendo de movimento.
O paradoxo é este: como é que estando a imagem de Portugal tão afectada pela miséria, pelo desnorte, pela corrupção, pelos sucessivos maus tratos de que é alvo se vai ter um sonho destes? Como é que o sonho tem a capacidade de retirar o excesso e de se ficar apenas com a essência? Com que mundos paralelos lidamos? Só somos saudáveis nos sonhos e esses sonhos são reais. Inesquecíveis pela concentração de mensagens, verdadeiros trampolins no espaço e no tempo, imprescindíveis se amamos a vida, irmãos gémeos da nossa alma, encobertos pelo sono. Mas estão lá.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

AS DANÇAS DE DALILA, 3



Entardecer

No Jardim em Berlim,
subiu minha alma ao céu.
As flores suas cabeças baixaram
os pássaros se calaram
as fontes ais murmuraram
ao longe um pastor passou
sua flauta tangendo.
Com a noite caindo
e o sol adormecendo
a alma acordou ao mundo do alto.

5-12-1992

Dalila Pereira da Costa

terça-feira, 23 de novembro de 2010

É NOTÍCIA...




ADIADA CONFERÊNCIA DE PEDRO MARTINS NA SOCIEDADE DA LÍNGUA PORTUGUESA
Contrariamente ao que estava previsto, a conferência de Pedro Martins subordinada ao tema Pátria, História e Epopeia – no cinquentenário da morte de Jaime Cortesão, e que integrava a programação da Sociedade da Língua Portuguesa para o mês em curso, já não se realiza na próxima quarta-feira, dia 24 de Novembro, dada a coincidência desta data com a greve geral. A conferência realizar-se no próximo dia 20 de Janeiro, pelas 18:30.

NO PRÓXIMO SÁBADO, ÀS 15:00, NA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE SESIMBRA
Conversa Fiada
O Pessoa na 1.ª Pessoa
com Carlos Otero

Numa conversa informal, Fernando Pessoa ousa falar de si próprio numa histeria em que “…tudo acaba em silêncio e poesia…”. Conversa Fiada é pois uma maneira de dizer algo de novo ou diferente sem receio da contradição. Esta conversa, da autoria de Carlos Otero (encenador, declamador, actor, realizador e autor de peças de teatro), pretende assinalar os 75 anos da morte (30/11/1935) deste grande vulto da cultura portuguesa.

sábado, 20 de novembro de 2010

SABEDORIA ANTIGA, 1



Alexandra Pinto Rebelo

Num destes dia, andando lentamente ao longo de um passeio, ouvi uma conversa que me surpreendeu. Um indivíduo falava ao telefone com alguém. Esse outro deu-lhe a notícia da morte de um amigo, ou conhecido. Mas o indivíduo estava incrédulo. Uma incredulidade retórica, note-se. No meio do seu não acreditar, saiu-lhe o argumento tão óbvio: "Morreu, como?! Ainda ontem ele esteve na festa connosco!!!"
Como é comummente aceite, depois da célebre tirada da diva das revistas muito leves, a morte é o contrário da vida. Constitui aquele ponto caótico que as economias mais fortes do mundo ainda não conseguem dominar. Aquele contratempo que a ciência tenta resolver. Cada vez menos sabemos lidar com a morte em termos culturais. Parece ser uma coisa que não faz sentido em sociedades que vivem com algum conforto material e numa rejeição máxima dos valores espirituais. Num dia estamos em festas, noutro dia mortos. Numa sociedade assim, a morte devia fazer-se anunciar. Devia mandar-nos as suas intenções em carta registada para podermos resolver a nossa situação enquanto contribuintes, enquanto cidadãos. Esta poderá ser uma ideia para aquelas incríveis equipas que realizam estatísticas bombásticas. Quanto perde o país em impostos em relação àqueles que partem para uma morte que não se fez anunciar?

Fica bem, agora, fazer o contraponto com a civilização egípcia, elogiando a sua postura perante a morte. Se me é permitido o exagero, parece que quando nascia uma criança, o túmulo era encomendado antes do berço. Aquela gente adorava morrer. Mas, o mais curioso, é que, depois de já ter entrado em vários túmulos egípcios não encontrei a sensação de morte em nenhum dos seus cantos. Parece que os egípcios descobriram que, não a podendo vencer, o melhor é aliarmo-nos a ela, convertê-la de alguma forma em supra vida.

Esse prazer da morte, no Egipto, era qualquer coisa, também, de individual. O defunto era colocado no seu túmulo e por aí ficava em sossego. Atitude bem contrária tinham os barrocos. São bastante comuns as inscrições tumulares deste tempo em que, os próprios defuntos, nos dizem mais ou menos isto: "Andas aí todo contente tal como eu andei! Bem podes deixar de sorrir que, mais dia menos dia, vais encontrar-te num túmulo frio como o meu". Os mortos barrocos não estão pois, sossegados. Carregam consigo uma espécie de inveja pelo facto de nós estarmos vivos e eles não. Interpelam-nos sem pudor numa comunicação imediata entre mundos: "Ó tu, que estás vivo! Olha! Vem cá! Vê o que te espera!"

Para um egípcio, seria talvez considerada uma boa passagem para a morte estar um dia antes numa festa. Uma espécie de despedida de solteiro. Para um barroco isso seria entendido como um "Eu bem te avisei. Isso já aconteceu a um primo meu que está naquela sepultura a dois passos aqui da minha."
Talvez a melhor resposta para isto seja a da poesia. Em Roma, num túmulo sem nome (mas que sabemos pertencer ao romântico Keats), pode ler-se a seguinte frase: "Aqui jaz alguém cujo nome foi escrito na água."

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 109


Dias de Luz
Cynthia Guimarães Taveira

Há poucos dias acabei de ler um romance de Carlos Ruiz Zafón intitulado “Marina”. Nele, a Barcelona que eu conheci é uma outra Barcelona, um verdadeiro cenário de um filme “noir”, um ambiente gótico, às vezes macabro, uma permanente chuva e escuridão, uma procura da luz no meio das vísceras em ferida da cidade.
É curiosa a capacidade transmutadora dos autores quando fazem leituras sobre a cidade. Para mim, Barcelona, quando lá estive, pareceu-me uma cidade com luz e com muita cor; para o autor, é o oposto.
Recentemente, vi a apresentação do filme português “O filme do desassossego” e, nessa apresentação, Lisboa aparece quase sinistra, com os prédios amontoando-se numa perspectiva impossível sob um céu de chumbo. Para mim, Lisboa é sobretudo luminosa, um pouco triste em certos recantos mas nada que se pareça com essa imagem tenebrosa do filme. A cidade, quem sabe, é um espelho que reflecte o nosso estado de espírito.
Tudo isto para falar do sonho.
Nesse livro, «Marina», os sonhos da personagem principal são recorrentes e mais uma vez me deparei com uma incapacidade pessoal: não consigo acreditar nos sonhos quando estes aparecem a pontuar a ficção, quer de uma obra literária, quer de um filme. Sei que a incapacidade é minha e um pouco paradoxal, pois acreditando na ficção já não acredito na ficção dentro da ficção. E porquê? Quando temos atitudes irracionais talvez seja bom pararmos um pouco para pensar, para descobrir o porquê dessa atitude. Assim, cheguei à conclusão que o espaço do sonho, estranhamente, é uma espaço de verdade, mais até do que o verdadeiro real. O sonho é o que de mais espontâneo nós temos e, por isso, o que de mais incontrolável nós temos. Quando se cria um sonho a partir de elementos do real e se conjugam esses elementos com uma racionalidade e um propósito implícitos perde-se a realidade desse mesmo sonho. Subjuga-se o sonho à nossa vontade quando, na sua essência, ele está para além da nossa vontade e, mesmo quando interpretamos os sonhos de maneira a sossegar o espírito, há sempre alguma coisa que nos escapa, porque a racionalidade é que é irreal e a verdade total está no sonho irracional.
Tentando explicar esta perspectiva a uma amiga, ela relatou-me um estranho sonho que tivera: sonhara que entrava numa cidade da América Latina e os prédios estavam cobertos de esculturas. Casas e pessoas tinham cores tão vivas que quase ofuscavam. Dentro do sonho, a minha amiga saia da cidade e, já longe, notou que se tinha esquecido de um objecto numa das casas. Voltou à cidade para recuperar o objecto e, quando lá chegou, verificou que a cidade e as pessoas eram afinal de papelão. Ela não podia entrar de novo naquele sonho porque, de alguma forma, o “tempo” do sonho tinha acabado. Achei aquele sonho extraordinário. Os sonhos tinham um tempo certo para acontecer, tinham um nascimento precioso, verdadeiramente espontâneo, mas fora dessa espontaneidade deixavam de poder existir como eram. Era o próprio sonho da minha amiga que explicava o meu cepticismo face à ficção dentro da ficção, como os sinais da matemática mas ao contrário: “mais” com “mais” dá “menos”, “menos” com “mais” dá “mais”. A lógica do real e do imaginário eram o contrário da lógica. Surpreendente!
Mas verdadeiramente surpreendente foi um episódio que me aconteceu há uns anos: morava ainda noutra casa que tinha uma grande varanda da qual se podia ver uma grande avenida em declive. Nessa manhã fui à varanda e, qual não foi o meu espanto quando reparei que no parapeito e no chão se passeavam dezenas de aranhas pequeninas. E fios de teias estavam suspensos no ar. Não era um ou dois fios, eram imensos fios. E olhando para avenida notei um brilho diferente nos telhados dos prédios: brilhavam ao sol como certas zonas do mar iluminadas. Depois percebi que eram milhares de teias que, esticadas, cobriam os telhados e, com a brisa e a luz dos raios solares, brilhavam a um ponto tal que parecia um sonho. Telefonei a uma amiga a contar o sucedido. Apenas a mãe dela, que se encontrava na baixa, tinha dado pela concentração excessiva de aranhas. Não ouvi falar do sucedido a mais ninguém. Lembro-me de olhar para baixo da varanda e de ver as pessoas a passar tranquilamente na rua como se nada estivesse a suceder. E o sonho presente mesmo acima das suas cabeças. Pensei que andávamos tão obcecados com o pseudo-real que, quando o sonho nos aparecia nesse pseudo-real, nem nos apercebíamos. O fenómeno ali estava à vista de todos e ninguém o viu. Não foi notícia no jornal. Era um “mais” com um “menos” que dava “mais“. Era mais realidade e, afinal, permanecíamos no sono.
Hoje, estou a ler um livro que é um sonho, chama-se “A Tapeçaria do Sinai” de Edward Whittemore. Nele não há sonhos ficcionados. A ficção fascinante chega por si. É um sonho que sonho enquanto espero que, um dia, o sonho me entre pelos dias dentro, como as aranhas e as suas teias inexplicáveis. Ainda bem que não há explicação para tudo.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

ANTÓNIO TELMO, SEMPRE

António Quadros

António Telmo, filósofo da razão estética*

por António Quadros

Conheci-o há pelo menos quarenta anos na «Universidade» da Filosofia Portuguesa, como ele atraído pelo magistério marginal de Álvaro Ribeiro e José Marinho, discípulos de Leonardo Coimbra, para quem a filosofia não era um modo de vida, mas um modo de ser…
Essa «Universidade» informal teve como sedes, primeiro o Café Palladium, onde ainda apareciam às vezes o Casais Monteiro, o Jorge de Sena, o Eudoro de Sousa, o José Blanc de Portugal, o António Banha de Andrade, o Eduardo Salgueiro ou o Domingos Monteiro, depois a Brasileira do Rossio, onde assentou arraial durante os anos em que nós lançámos com entusiasmo e espírito de desafio o Acto, o 57, a Espiral, anos em que aqueles nossos mestres saudosos publicaram, o primeiro A Arte de Filosofar (em 1955) e A Razão Animada (em 1957), o segundo a Teoria do Ser e da Verdade (em 1961). Mais tarde, outros cafés tomaram o lugar daqueles, o Colonial na Almirante Reis ou o Estrelas Brilhantes em Campo de Ourique…
Nesses cafés, nossos jardins de Akademos, nos juntávamos António Telmo e o seu irmão Orlando Vitorino, Afonso Botelho, Fernando Sylvan, Jorge Preto, Luís Espírito Santo, Luís Furtado, um pouco mais tarde Pinharanda Gomes, António Braz Teixeira, Romeu de Melo, Joaquim Braga, além de outros infelizmente já desaparecidos, como Francisco da Cunha Leão, Amorim de Carvalho, Luís Zuzarte, Francisco Sottomayor, Fernando Morgado, Alexandre Coelho ou Rui Vitorino, irmão de António Telmo e Orlando Vitorino, todos então rapazes que, fascinados, pela primeira vez deparavam com uma filosofia viva, não escolar.
Em cada um de nós se desenhava uma vocação, uma tendência, que sobretudo Álvaro Ribeiro estimulava de um modo subtil, mais inteligente que insistente. Quanto a António Telmo, veio a ser o que de todos nós levou mais longe o conhecimento gnóstico, o conhecimento do que está escondido e é inacessível pelas vias da percepção sensível, da ciência positiva e da erudição livresca.
Dizia Álvaro Ribeiro que a arte de filosofar (arte porque queria acentuar o papel da criação mental, da imaginação, da intuição e da indução) procurava o conhecimento pela tripla via gnósica, pística e sófica. O que António Telmo buscou toda a sua vida foi, não unicamente uma gnose (como o tentam os ocultistas e os esoteristas), mas uma harmonia entre a gnose e a razão ou melhor, a sophia ou a sabedoria abonada pela exigência intelectual da razão teórica.
É um filósofo da razão estética. É um decifrador de escritas perdidas, a da poesia de Dante, de Camões, de Pascoes ou de Pessoa, a da simbologia iniciática dos Jerónimos, a da língua portuguesa e da sua gramática secreta, a do saber antiquíssimo expresso no pensamento de Bruno, de Leonardo, de Álvaro ou de Marinho, a da relação de uma filosofia que não é a filosofia das Universidades oficiais, com uma cabala que também não é a cabala dos esotéricos sem filosofia.
Depois dos anos da juventude, na Universidade dos cafés, António Telmo é um fugitivo dos grandes centros urbanos, procurando o sossego e o silêncio para melhor guardar a sua autonomia. Beja, Brasília (para onde o levou Agostinho da Silva), Estremoz, são lugares do seu itinerário existencial, mas o característico da sua inteligência invulgar, é a capacidade para atravessar ou penetrar para lá das camadas sobrepostas da cultura morta em que «coisamos» os nossos saberes satisfeitos.

António Telmo

Calmo por fora, parco em palavras, autor de livros pequenos e densos, poucos imaginam a rapidez do seu movimento mental: chegamos, já lá esteve; alcançamo-lo, já subiu mais uns degraus; quando publica um livro, é sempre o inesperado; é um heterodoxo, mas em nome de uma fidelidade ao essencial.
Sempre desdenhou de honrarias, de títulos, de «posições na vida». É ignorado pelos universitários, mas o que estes sabem é o por ele há tempos sabido que nem se dá ao trabalho de o referir. Alguns gostariam que ele escrevesse mais, explicasse melhor, desenvolvesse as sugestões e os enigmas que apenas esboça. Mas ele prefere propor-nos charadas. Que as decifremos nós, como ele próprio a decifrou. Esse é o acto genésico de filosofar. Começa por uma hermenêutica, pela arte de Hermes.
Pensará talvez António Telmo (nunca mo disse) que não vale a pena escrever para os desatentos, para os desinteressados e para os filisteus. Que não é pedagogo, quer dizer, que não é o escravo que leva pela mão os meninos até junto do mestre. Mas ele não é um pedagogo porque é verdadeiramente um mestre. Como Leonardo, como Álvaro e Marinho.
António Telmo escreveu, no prefácio do seu último livro, Filosofia e Kabbalah, que a razão é um órgão para o conhecimento mas as suas articulações não coincidem com a realidade. Por isso a razão não pode dispensar a comunicação com o desconhecido, que a poesia, a música e as artes plásticas procuram estabelecer.
Englobante pois da razão e das artes, o pensamento é como a ave Fénix, uma energia, um fogo, uma actividade do espírito que todas as manhãs renasce das próprias cinzas…
Escassas embora, estas duas citações desenham já o perfil do filósofo. Interiorizou como poucos a herança de Álvaro Ribeiro: a de um pensador da arte de filosofar e da razão animada, explorando vias que ele próprio abriu, no trânsito da autognose para a heterognose, do conhecimento do espírito no eu para o conhecimento do espírito no além-eu.
Janeiro de 1991
____________
* Publicado originalmente na edição de 13 de Fevereiro de 1991 de O Setubalense, no suplemento de artes e letras «Arca do Verbo», coordenado por João Carlos Raposo Nunes.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

AS DANÇAS DE DALILA, 2



DALILA PEREIRA DA COSTA
(Homenagem)

Tem os olhos uterinos
Onde brilha o tempo
Acendido na saudade.
Seus dedos femininos
Escrevem com acento
Na noite mais antiga,
Labirinto de Ariane.

Ísis das sombras,
Sorriso da aurora!
Os anjos do mistério,
Vigiando os sete selos,
Segredam-lhe livres
Os motivos da demora.

Eduardo Aroso

9 de Maio de 2008

domingo, 14 de novembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 108



O Grande Crime
Cynthia Guimarães Taveira

Às vezes é bom regressarmos às origens e debruçarmo-nos um pouco sobre as sociedades ditas primitivas. É bom porque, em principio, os pequenos núcleos de pessoas podem fornecer-nos informações muito úteis sobre o ser humano, de forma (e não “por forma”, como diz teimosamente o nosso primeiro ministro, fórmula que pegou na comunicação social e nos meios políticos; se o primeiro ministro o diz é porque está correcto, como se isso fosse assim, vejam-se as “correcções” esplendorosas que tem feito ao nosso país…), de forma ou de maneira, dizia, a que não nos deixemos cair no vazio e na confusão das massas de gente que se estupidificam num espaço de dias a uma velocidade vertiginosa.

Nas sociedades primitivas existem vários tipos de iniciação. Uma delas diz respeito à passagem da idade infantil para idade adulta. Normalmente os jovens são “apanhados” pela iniciação nos anos da puberdade e, em conjunto com provas físicas, por vezes dolorosas e difíceis, é-lhes dada informação preciosa sobre a sua tribo ou grupo. As razões das provas físicas são várias e, para além dos mitos (histórias verídicas, e não mentiras, como hoje se diz, como se um mito fosse naturalmente uma mentira -- a inversão das palavras parece não ter fim…) que as sustentam, servem também para uma melhor memorização daquilo que é transmitido.

Antes de António Damásio falar de inteligência emocional, já as tribos tinham há muito dado conta dela… assim, ao sofrer um pouco, o neófito não esquece o que lhe é dito, e o que lhe é dito é precioso. É-lhe dado um lugar no mundo, simplesmente. Exactamente o que nos falta hoje, andando meio mundo perdido no mundo. É-lhe dada a sua história, a sua proveniência, a razão dos seus gestos, dos mais sagrados aos mais quotidianos, enfim, é dada a esse ser a noção da sua situação no espaço e no tempo, bem como o propósito da sua existência. O neófito é assim agarrado exactamente na idade dos problemas existenciais e, antes que ele os faça crescer a ponto tal que se sinta perdido, os mais velhos dão-lhe as respostas antes que haja uma dúvida demasiado niilista. Assim, a iniciação, que requer a morte, é afinal um sinal fortíssimo de amor à vida.

Já tenho passado de carro pela 24 de Julho em Lisboa e caminhado pelas vielas do Bairro Alto, iluminada parcamente por uma lua triste. A quantidade de álcool e drogas ingeridas todas as noites por jovens confrontados com a sua primeira borbulha assusta-me. O que vejo ali são corações aflitos em busca de respostas. E entristece-me saber que este país tem as respostas, não tem é quem as transmita, não tem é condições para que essas respostas ecoem nos corações aflitos.

Na minha história pessoal tive sorte. Sorte com uma professora que nem era minha. No 8º ano, por via da amizade com colegas do 10º ano, dava por mim a ir a visitas guiadas da escola, dos alunos mais velhos do que eu. Conheci Fernando Pessoa através de uma professora que não era minha. A paixão com que falava e a importância que dava ao discurso pessoano agarrou-me por completo. O que o poeta dizia era importante. Foi assim que o poeta me foi apresentado. Muito cedo comecei a perceber o meu lugar no mundo por via de um poeta, e, procurando quem o estudasse, descobri Dalila Pereira da Costa. Antes das dúvidas em demasia já me estavam a ser dadas respostas: os mitos portugueses, as lendas, a poesia, a literatura, mais tarde a filosofia portuguesa, tudo me parecia falar ao coração. Facilmente foi entendido o papel de Portugal no mundo, e mais do que isso, o valor da diáspora, individuo a individuo, trazendo no estandarte a pomba do Divino Espírito Santo. E nem tive de passar por qualquer igreja para entender a mensagem. A mensagem portuguesa estava para lá de qualquer igreja ou religião. Era verdadeiramente universal e abstracta e fazia sentido porque no seu cerne estava o amor pela vida e o amor pelo próximo. E saber que hoje, neste momento, jovens bebem perdidos, jovens se drogam perdidos, passando-lhes tudo isto ao lado, não sabendo a riqueza que o país contém, riqueza de que poderiam usufruir e fazer frutificar.

Só posso apelidar de crime tal ocorrência. Um crime executado pelo Estado. Porque já não há ninguém que cometa um crime lesa Estado, não é preciso: o Estado lesa-se a si próprio e lesa aqueles que deveria proteger. Não só em termos económicos, mas também, e mais grave, porque é a base de tudo, em termos espirituais, não falo em religião, falo em espírito, em espírito que nos anima ou deveria animar. A verdadeira correcção não está na banda larga acessível aos infoexcluídos, parafraseando o estranho primeiro ministro, começava antes por valorizar a poesia, coloca-la num pedestal, e juntava-lhe a literatura, a história, os mitos, as intuições, as aspirações mais altas e, a pouco a pouco, as fracas almas se iriam curando, por via da palavra, por via da arte. De produtivos (que não somos, nem seremos enquanto formos prisioneiros da ignorância), passaríamos a artistas da alma (a produção é uma consequência da arte e não vice-versa), porque verdadeiramente transmutadores do mundo: “Não a nós, Senhor, não a nós mas ao Teu Nome dá glória”. O propósito templário continua actual e necessário.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

AS DANÇAS DE DALILA, 1



Na poesia trovadoresca galaico-portuguesa e ainda na do Renascimento, semelhante união com os elementos da Natureza se confirmará; tomando então forma dialogal de vera participação mística:

“Fala Crisfal: companheiros do meu mal
águas que do alto correis,
onde caís desigual,
parece que me dizeis:
porque não choras, Crisfal?”

Participação perfeita de todos os seres num único fluxo vivo, em formas partilháveis, indiscerníveis, como algo de labiríntico e turbilionário: tal como essa antiga arte céltica da pré-história europeia; e nela, da portuguesa, impressa na arte sumptuária, como nos bordados das túnicas dos guerreiros galaicos, nas jóias, armas, na Pedra Bela, decoração das pedras da construção castreja, como as portas da citânia de Briteiros… Tal ainda a da belíssima arte irlandesa da alta Idade Média; ou também da sua poesia, onde as coordenadas espaciais e temporais do nosso mundo visível são anuladas, ou sofrendo uma libertação completa, graças à força da imaginação criadora própria deste povo.

“É no alto dum bosque que flutua
teu barco através dos cimos
há um bosque cheio de belos frutos
sob a proa do teu barco”


Assim canta a epopeia irlandesa, a Navegação de Brân. Ou D. Beltrão do nosso Romanceiro:

“Esse cavaleiro, amigo
Morto está nesse pragal,
Com as pernas dentro d’água
O corpo no areal,
Sete feridas no peito
A qual será mais mortal:
Por uma lhe entra o sol,
Por outra o luar,
Pela mais pequena d’elas
Um gaivão a voar”

Nesta força da imaginação criadora, o real sensível sofre assim essa libertação que é transmutação, ou melhor, rebenta os seus limites a nós aparentes, abrindo-se para o real absoluto. Dando-se ao mesmo tempo uma perfeita reintegração do homem na natureza e no cosmos: este sempre visto como grande ser vivente que a todos e a tudo em si envolve e contém. Cosmicização do homem, se poderá chamar a este processo de pensamento e vivência dos celtas: e de seus herdeiros, os portugueses; e que nestes teria a sua expressão máxima na obra da Descoberta.

Dalila L. Pereira da Costa

retirado de Corografia Sagrada, Lello & Irmão - Editores, 1993, pág. 198




quinta-feira, 11 de novembro de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 46

António Carlos Carvalho

Hoje é dia de São Martinho, dia de «castanhas e vinho». Mas é só por cá -- e nem sequer sabemos, geralmente, de que São Martinho é que estamos a falar, se do de Tours, se do de Dume (na verdade é do de Tours, e o segundo tomou esse nome monástico por causa daquele).

Noutros países da Europa, hoje é feriado porque se comemora o Armistício da Grande Guerra, aquela que se julgava ser «a última das guerras» e que afinal foi apenas a Primeira Guerra Mundial: como se tivesse sido pouca coisa, vinte anos depois fizeram a Segunda Guerra Mundial, para completar, e generalizar, a destruição, agora das populações das grandes cidades.

Portanto, noutros países, hoje é dia para lembrar o primeiro acto do que alguns chamaram «Guerra Civil Europeia», 1914-1918 e 1939-1945. Visitam-se os gigantescos cemitérios, colocam-se flores nos monumentos aos mortos e nos túmulos dos «soldados desconhecidos», fazem-se discursos de circunstância e, no caso de ainda os haver, homenageiam-se os veteranos sobreviventes.

Por cá, é mais «castanhas e vinho», porque há muito se decidiu comemorar, não o fim do conflito, a 11 de Novembro de 1918, como seria lógico, mas o dia da trágica batalha de La Lys, a 9 de Abril desse mesmo ano. E eu cresci a ouvir as fúrias do meu Avô paterno, que também andou lá pela guerra, e que ficava furioso com essa opção do 9 de Abril: «Onde é que já se viu comemorar uma derrota…!!!» (o destino pregou-lhe uma partida cruel: o meu Avô morreu precisamente num dia 9 de Abril…)


Monumento aos Mortos da Grande Guerra, Av. da Liberdade, Lisboa

Na verdade o 9 de Abril de 1918 foi uma das páginas mais negras (e sangrentas) da nossa História militar -- como, aliás, o foi toda a nossa intervenção na Flandres, desejada pelos políticos e pelos republicanos idealistas, mas não pelo povinho mobilizado à força e enviado para terras estrangeiras e desconhecidas, para o meio da lama e do gelo das trincheiras -- André Brun chamou-lhe «a Malta das Trincheiras» --, submetido às «tempestades de aço» de que falou Ernst Jünger, o veterano das duas guerras.

Há anos, fui parar à Alfândega da Fé, onde me competia dar um curso de formação na biblioteca local. E aí descobri, numa história da terra, que em Alfândega da Fé, lugar ainda mais remoto nessa altura do que é hoje, foram mobilizados dois mancebos para combater na Flandres. Ficaram lá os dois, mortos pela metralha alemã…

A esses e a muitos outros (foram milhares, entre mortos e feridos, as nossas baixas na Grande Guerra) foram depois erguidos esses numerosos monumentos que se encontram espalhados pelas cidades e vilas do País, de onde saiu essa massa de «carne para canhão». Os monumentos continuam lá -- nós é que já não os vemos, muitos de nós passam por eles e nem sequer sabem o que representam…

E também se construiu o túmulo do Soldado Desconhecido, na Sala do Capítulo do Mosteiro da Batalha -- um lugar onde me comovo sempre, por aquilo que significa de derradeira tragédia: nem sequer sabemos o nome daquele corpo, daquele morto mais morto do que todos os outros mortos com direito a nome no cemitério…

E depois tivemos as sequelas nos outros, nos que foram vítimas do horrível gás lançado para as trincheiras do inimigo, e que o vento se encarregava de disseminar. Um tio-avô meu sofreu o resto da vida com os efeitos dessa arma química. E as descrições que li desses ataques deixaram-me aterrado -- confesso também. Entre elas as páginas que Malraux escreveu no seu romance «Lazare», em 1974.

E agora a mão amiga do Pedro Martins fez-me chegar uns excertos das «Memórias da Grande Guerra», de Jaime Cortesão, capitão-médico, também ele gaseado:

«21 de Março de 1918.
(…) logo de princípio começam a chover sobre toda a planície as granadas de gases. Sopra o vento. Não obstante as portas e as janelas estarem fechadas, o quarto [da casa intacta onde se abrigam] para onde eu e o Frazão nos atirámos, está empestado de cheiro nauseabundo. Pomos as máscaras e tentámos dormir com elas postas. Mas aquilo, horas seguidas, somadas às nossas infinitas fadigas, cansa de tal maneira que acaba por destruir a noção do perigo, e deitámo-las fora. Ficamos prostrados em tamanha sonolência que somos insensíveis à ideia da morte.
(…) Durante a noite, os gases envenenaram metade do batalhão. (…) Caem as granadas, e porque muitas são de gases, ordeno a todos que ponham a máscara. Eu e o enfermeiro temos de nos aguentar. É impossível fazer-se com desembaraço o serviço imenso que temos diante, de máscara posta. (…) Sente-se nitidamente que a morte vai chegar. De repente há um fragor cataclísmico. Uma granada cai em cheio (…) E na bruma sufocante, que cheira a alho, os feridos arrastam-se, aos urros, em solavancos, golfando sangue, arremessando-se em gestos loucos, tisnados pelo fogo, e as caras hediondamente mascarradas de negro pelos gases.
-- Às macas! Peguem os feridos!
Bradamos, damos ordens, procuramos salvar o material com que havemos de tratar os feridos, e, a plenos pulmões, sorvemos o ar mortal.»

(Jaime Cortesão, mesmo atacado pelos gases, continua a tratar dos feridos; é louvado pelo comandante do regimento, André Brun, e ganha a Cruz de Guerra; fica cego durante algumas semanas; recupera a vista mas está fraquíssimo; regressa a Portugal em convalescença e é ainda nesse estado que os homens de Sidónio Pais o vão prender e encerrar na Penitenciária de Coimbra… E Cortesão, numa carta publicada em jornal, desabafa: «É esta então a Mãe-Pátria?!»)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

RAZÃO POÉTICA, 8



Teixeira de Pascoaes e a Poesia ...

"Mas, na Poesia aparece a alma de um Povo, no que ela tem de mais profundo e misterioso.
É por intermédio dos poetas que o génio popular se vai fixando em figura viva, cada vez mais perfeita.
O Poeta é o escultor espiritual de uma Pátria, o revelador-criador do seu carácter em mármore eterno de harmonia.
Devemos considerar divina a missão dos poetas, quando não mintam ao seu destino sublime.
Se a ciência é a realidade das coisas fora de nós, a Poesia é a realidade dentro em nós. A Ciência vê; a Poesia visiona, transcendentaliza o objecto contemplado; eleva o real ao ideal; é criadora, e as suas criações ficam a viver, a pertencer à Natureza que, nelas, se excede e acrescenta às suas formas objectivas do domínio Científico, a beleza espiritual.
A Poesia converte a matéria em espírito; e, por isso, ela intervém na criação da alma pátria, definindo e sublimando as suas qualidades, e tornando-as, ao mesmo tempo, universais e duradouras."
Teixeira de Pascoaes in A Arte de ser Português, Assírio & Alvim Edições, 1991, Pág. 67


segunda-feira, 8 de novembro de 2010

NOVO LIVRO DE PINHARANDA GOMES



Notícia de um novo livro e também de uma nova editora.
O livro é Nuno Álvares Pereira -- o Galaaz de Portugal, de Pinharanda Gomes, aliás o primeiro volume das «Obras de Pinharanda Gomes» editadas pela nova editora Pegada do Yeti, que se estreia precisamente com este livro.

Depois de uma nota «Ao leitor» -- em que o autor refere: «Possam estes pequenos passeios pela espiritualidade de São Nuno contribuir para elevar o nosso ânimo, num tempo difícil, tanto ou mais ainda do que esse em que ele viveu para bem de Portugal, com o qual Fernando Pessoa, chamando-lhe São Portugal, o identificou» -- temos os capítulos intitulados «A Imitação de Galaaz», «A Simbologia da Bandeira do Condestável», «A Guerra Justa», «A Espiritualidade Laical», «A Oração de Nuno Álvares», «Os Milagres», «Nossa Senhora na Vida de São Nuno de Santa Maria», «Guerra Junqueiro e a Imagem de Nuno Álvares» e «A Sétima Idade».

A encerrar o volume, um texto de João Bigotte Chorão: «Pinharanda Gomes ou o Espírito da Letra»

Resta acrescentar que o livro (112 páginas) custa 15 euros e pode ser pedido à editora:
http://editorapegadadoyeti.blogspot.com

SOBRE A REPÚBLICA, 100 ANOS DEPOIS



Joaquim Domingues

(Comunicação de Sábado, dia 30 de Outubro, apresentada na Biblioteca Municipal de Sesimbra no âmbito da série de colóquios "Sobre a República, 100 anos depois") .


Da república pombalina à república aquilina

I
Grato pela oportunidade que me foi oferecida de participar na reflexão sobre o significado actual da proclamação da República há cem anos atrás, desejo com ela homenagear o Dr. António Telmo, cuja presença se mantém viva nesta como noutras iniciativas. Nesse pressuposto anuí ao convite recebido através do Amigo Rodrigo Sobral Cunha, altura em que surgiu, de improviso, o título que veio a ficar registado no programa. O qualificativo aplicado à república era no entanto assaz bizarro, pelo que tentei explicitá-lo melhor agora, mediante as duas perspectivas representadas pelas aves simbólicas que são a águia e a pomba.
Como é sabido, a palavra república, para além de outras acepções particulares, significa, de raiz, o bem comum, aquele núcleo de interesses que move o conjunto de um povo e que ao Estado cumpre promover no âmbito das suas competências. Aparece já nos escritos dos Príncipes de Avis, quando as noções do direito romano se impunham às do germânico, designadamente as do código visigótico, e consta do elucidativo título de Diogo Lopes Rebelo, De Republica Gubernanda per Regem, ou seja, Do Governo da República pelo Rei, um incunábulo saído em Paris nos fins do século XV. Assim se reconhecia ao rei, sem prejuízo das prerrogativas do clero, da nobreza, dos municípios e das corporações, a missão de velar pelo conjunto da grei, representada nas cortes, com o poder de confirmar e destituir o soberano.
Não haveria pois contradição no uso de expressões como monarquia republicana ou república monárquica, subentendendo que o bem comum depende dos princípios simbolizados na coroa, cujas hastes convergem do aro para a esfera, encimada pela cruz, segundo o modelo tradicional. Com efeito, a doutrina prevalecente entre nós, e vitoriosamente confirmada em 1385 e em 1640, era a de que todo o poder é de origem divina, vindo ao rei mediante o povo; a verdadeira razão da reverência que os Portugueses lhe prestavam, pois nele viam a presença ou a representação de um princípio sobrenatural e sobre-humano, como carisma da função real. Só por anomalia, sanável através da reunião dos três estados, se concebia a existência de incompatibilidades mais do que circunstanciais entre os interesses da república e os do monarca; havendo apenas memória de um caso em que, mercê da intervenção de Roma, o rei foi destituído em nome do bem comum.
O aparecimento do movimento republicano na segunda metade do século XIX, maugrado as interferências de fora parte, deve entender-se neste contexto; ele correspondeu à assunção por alguns portugueses duma irremediável ruptura entre a instituição monárquica e a república, ou seja, os interesses da grei, o bem comum ao clero, à nobreza e ao povo, do qual se destacara entretanto a burguesia, cada vez mais poderosa desde que cessara a distinção legal entre cristãos-velhos e cristãos-novos. A gravidade do conflito ficara patente na luta fratricida entre os Portugueses, divididos em dois partidos, encabeçados pelos filhos varões de D. João VI, personificando orientações divergentes e mesmo inconciliáveis acerca da organização política e social do País. A vitória de um dos partidos não sanou as feridas, porque persistiu a diferente ponderação dos valores; de modo que a realeza, diminuída já no seu conceito desde 1822, se limitou a sobreviver, mais por inércia do que por acção ou omissão dos titulares, cuja perda de carisma era paradoxalmente simbolizada na coroa, pousada sobre uma almofada, a par do ceptro, que ninguém empunhava mais.
Perdida a esperança de que o rei salvasse a república da desagregação que a corroía, julgaram alguns que a burguesia seria capaz de formar a oligarquia que imprimisse ao País um rumo idêntico ao que se supunha garantir a felicidade de outros povos. A expectativa frustrou-se, porém; à falta de um princípio unificador, multiplicaram-se os grupos e as facções (federalistas, socialistas, democráticos, anarquistas, tradicionalistas…), sem acordo quanto aos reais interesses de Portugal. Concebido e organizado como partido, ou parcialidade, o republicanismo logrou derrubar a monarquia – não sem promover ou sancionar actos de extrema violência, onde avultou o assassínio de El-Rei D. Carlos e do Príncipe Luís Filipe –, mas foi incapaz de reunir os Portugueses, que viveram em estado de guerra civil larvar e tiveram de render-se enfim às forças armadas, sob cuja ameaça ou tutela viveram quase todo o século XX.
A meu ver, não há, pois, razões bastantes para celebrar um episódio do passado que, em rigor, assinala apenas mais um passo no longo processo da degradação dos valores que identificam o País e o Povo, os quais não perderam a vigência senão no tempo e no modo, permanecendo incólumes na sua essência. Convicção que nada tem de singular, pois animou homens em cuja grandeza nos podemos rever com orgulho e sobretudo com esperança. Tudo depende de crermos, querermos e sabermos realizar o que, apesar de sistematicamente ignorado pelos detentores do poder, está garantido em obras como as de Bruno e Guerra Junqueiro, Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes, Álvaro Ribeiro e Fernando Pessoa, Afonso Botelho e António Quadros, Orlando Vitorino e António Telmo.

II
Mas república pombalina, porquê, afinal? Admitindo que a expressão seja pouco feliz, remete no entanto para um aspecto que tenho por determinante. De pouco serviria descrever e interpretar uma realidade como a que é objecto destes colóquios sem tentar compreender onde ela radica e esclarecer as causas do persistente desvio do rumo próprio do nosso Povo e do nosso País.
A tese que sustento é a de ter sido no período pombalino que se geraram as mudanças sob cujo signo ainda hoje vivemos, pelo que o modo como o republicanismo tem sido entendido e praticado para ele remete em última instância. Basta atentar no especial apreço pela figura do marquês de Pombal demonstrado pela generalidade dos intelectuais e políticos identificados com a ordem de valores dominante para considerar pertinente a hipótese. Lembro apenas o relevo dado por Teófilo Braga em 1882 ao seu centenário na preparação do clima mental que conduziu ao fim da monarquia, bem como o lugar central do monumento que celebra o ministro de D. José na capital, colocado em posição dominante sobre a cidade e sobre o dedicado ao monarca, erguido na mesma Rotunda onde se entrincheiraram os revoltosos de 1910.
Trata-se de aspectos simbólicos, é certo, mas por isso mesmo significativos do modo como os republicanos entendiam a realidade sobre a qual se propunham agir, como quem reatava um processo remontando ao período histórico de que Sebastião José de Carvalho e Melo foi, sem dúvida, a figura mais representativa. Como asseverou Teófilo Braga, «tudo quanto houve de vida e de iniciativa na sociedade portuguesa concentrou-se nesse homem eminente, que reduziu, mau grado o seu absoluto regalismo, a realeza a uma situação subalterna, a um fetiche teatral» (Os Centenários como Síntese Afectiva nas Sociedades Modernas, Lisboa, 1884, p. 182). Ora, o que o ministro de D. José impôs, de modo inequívoco, foi a razão de Estado, princípio abstracto de que nem o rei se podia reivindicar, por corresponder a algo de impessoal, cujo paradigma era dado pelas ciências e tinha no traçado geométrico da cidade reconstruída a partir das ruínas do terramoto a impressiva imagem.
Compreende-se, por isso, que nenhuma realização fosse mais encarecida pelo Marquês e pelos muitos clérigos, nobres e burgueses que o admiraram e secundaram, do que as reformas do ensino, em especial da universidade, pólo da revolução espiritual que fez primar a razão natural, como então se dizia, sobre a razão iluminada pela fé. Para isso foi mister condicionar a presença da Igreja nesse domínio, mormente a das ordens regulares, o que explica a hostilização da Companhia de Jesus; mas também dar ao Estado um controlo quase absoluto, mais severo que o da Inquisição, sobre a vida intelectual, que por vezes se estendeu mesmo às questões religiosas. A mudança foi de tal ordem que as reacções subsequentes à morte de D. José, voltadas sobretudo para sanar pendências de ordem pessoal, não alteraram a legislação relativa ao ensino, embora aliviassem a vigilância sobre as publicações.
Ao pôr em causa a ordem tradicional, em nome de uma razão que, além dos créditos científicos e técnicos, se empenhara na crítica das doutrinas e práticas religiosas, bem como da ordem social consuetudinária, o iluminismo pombalino abriu caminho ao ascendente poder da burguesia, por via de regra descomprometida de qualquer tábua de valores particular. Ela irá protagonizar os acontecimentos do nosso século XIX e preparar o fim da monarquia, numa sucessão de passos que se diria inelutável. Por isso o novo regime representou o culminar de um processo cuja génese remonta ao período pombalino, do qual, a meu ver, não saímos ainda, como o confirma o esforço oficial para celebrar um episódio sem grandeza, fasto apenas na perspectiva de uma parcela, a menos autêntica, da sociedade portuguesa.
Com todo o respeito e apreço que cada pessoa nos deve merecer, é fora de dúvida que o republicanismo, tal como se impôs, primeiro por via intelectual e depois a partir das alavancas do poder político, constitui uma flagrante contradição nos termos, visto ser de raiz e na prática a expressão de interesses particulares. Não estão em causa as boas ou más intenções deste ou daquele, tão certo é que um homem como Teófilo Braga, por duas vezes Presidente da República, nunca visou satisfazer interesses pessoais e morreu quase esquecido e abandonado, mas convicto de que o principal factor da mudança social fora e deveria continuar a ser a doutrinação, a partir de princípios superiores e reconhecidos, como entendia serem os do positivismo. Outros porém tinham entretanto compreendido que não era possível manter ou gerar a coesão social a partir de uma doutrina abstracta, alheia e hostil aos valores da nossa cultura, defendendo antes um republicanismo radicado, que é como quem diz, nascido das tendências próprias da sociedade portuguesa, avessa a qualquer forma de tutela.
Julgo que Guerra Junqueiro e Sampaio Bruno foram os que melhor compreenderam essa verdade, apesar do radicalismo das posições iniciais, de que corajosamente se foram demarcando, de modo a advertir os que se mantinham noutra rota, cujo fracasso se adivinhava já nas dissenções que muito antes de 1910 dividiam os republicanos. Justifica-se portanto que tivesse sido inspirado na orientação dada às suas obras que surgiu em 1911 o movimento da Renascença Portuguesa, cujo fito era precisamente o de imprimir carácter de autenticidade nacional a uma política cujo facciosismo, de tão ostensivo, alienava tanto as simpatias populares como as de muitos intelectuais e burgueses. O facto de ainda hoje ele servir de referência, mesmo entre as mais novas gerações, parece-me um dos melhores argumentos em prol do projecto renascentista, menosprezado pelos homens do poder, antes e depois tanto do 28 de Maio como do 25 de Abril.

III
Faço jus aos organizadores destes colóquios interpretando o mote ‘Portugal Renascente’ como apontado menos a celebrar o passado do que a pensar o presente e atentar no futuro, que tal é a responsabilidade maior de cada um de nós. Daí julgar pertinente a reflexão acerca duma característica estrutural do tempo em que vivemos, mantendo-nos amarrados ao pretérito, reféns de valores, metas e modelos esgotados. Por estranho que pareça, os destinos do País estão nas mãos de homens que se revêem em concepções do mundo e do homem que diríamos intervalares, pois tiveram a sua génese há duzentos e cinquenta anos e há um século deram o passo decisivo para eliminar ou neutralizar os obstáculos à sua plena imposição a partir das instituições do Estado.
Se assim é, como resulta da idêntica prioridade atribuída à ciência e à técnica, do privilégio dado às questões económicas e financeiras, do controlo exercido sobre a cultura segundo critérios sociológicos e pragmáticos, bom será que reflictamos sobre o valor de tal herança. Aliás, não há que enganar quando vemos como dia a dia os Portugueses são advertidos, depreciados e humilhados por não estarem à altura das exigências de quem sabe o que é bom, belo e verdadeiro... Quando constatamos que até o essencial factor da nossa identidade colectiva, a língua portuguesa, mais do que maltratada, se vê posta ao serviço de interesses estranhos, como se alguém, ainda que sejam os órgãos do Estado, pudesse dispor do nosso património cultural ao seu talante.
Ao lembrar as datas de 1385 e de 1640 tive em mente que elas representam a força de um povo em defesa da sua autonomia e dignidade, animado daquele espírito que, sem prejuízo da singularidade de cada pessoa, configura a realidade colectiva. Gostaria por isso de concluir apelando a uma república aquilina, na lídima acepção da que tenha por símbolo a águia, a ave real que figura no escudo de Avis e os homens da Renascença Portuguesa, como alguns jovens de hoje, escolheram para simbolizar a altura, a liberdade e a lucidez que há-de guiar quem se propunha reconduzir uma sociedade alienada ao perfeito domínio de si mesma. Sem esquecer que a águia está associada a São João, o profeta da Jerusalém futura, que é como quem diz, da consumação do Reino de Deus na terra. Essa, sim, se há-de considerar a perfeita república, conforme à verdadeira monarquia; um mito, se assim quisermos dizer, mas na acepção de modelo supremo, que é o único molde adequado até ao ínfimo projecto humano.