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sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 36

António Carlos Carvalho

Blogtailors, um dos poucos blogues que consulto diariamente para saber novidades do mundo da edição e do livro, dava conta, há dias, da venda a pataco do espólio da extinta livraria Buchholz – local que frequentei durante muitos anos e cujo fecho me deixa magoado, embora pareça ser esse o destino de quase tudo o que conheci.
O mesmo blogue citava uma notícia desses saldos publicada pelo DN, jornal em que trabalhei durante dezoito anos, antes de me trocarem por uns mais novos e mais baratos.
Com espanto – porque ainda me espanto e indigno com estas enormidades –, verifiquei que tanto a notícia do jornal como a do blogue falavam em venda do «estoque» da livraria.
Não resisti e enviei um comentário para o tal blogue, perguntando se aquilo era, afinal, uma corrida de touros à espanhola, com morte do touro e tudo, visto que se falava em «estoque»; ou se o estoque era para matar os livros, numa tarde de sol, «às cinco em ponto»; ou se, vendo bem, não estaríamos já perante as funestas consequências da aplicação do famigerado (des)Acordo Ortográfico ...
Claro que o meu comentário não foi publicado.

Aguardando a queda do touro, após a estocada

Mas a minha pergunta fazia sentido, com ironia e tudo, porque bem sabemos por cá (pelo menos alguns de nós) que os brasileiros transformaram «stock» em «estoque», ignorando que «estoque» é uma «arma branca comprida e direita, de forma prismática e que só fere com a ponta», como diz o dicionário.
E também sabemos, ou começamos a perceber, que o tal (des)Acordo é uma cedência às normas que os brasileiros inventaram – e que nós, obedientemente, vamos aplicar a partir do próximo ano, para honra e glória da língua portuguesa, claro.
Ou seja, vamos agora assistir – ver, ouvir e ler – a muitas mais destas verdadeiras estocadas na língua comum, dadas na arena triste dos jornais, das legendas dos filmes e das séries, dos textos da Internet e dos próprios livros.
Um dia destes só nos restará, para não nos indignarmos muito mais, ler apenas o que se publicou antes da instauração desta ditadura.
E, como em todas as ditaduras, a palavra de ordem é – RESISTIR!

2 comentários:

  1. No que for oficial, certamente não será possível fugir à regra (desregrada). Quanto ao mais, é escrever do modo como cada um decidir. Não foi isso que Fernando Pessoa e outros fizeram? Diz o poeta de Mensagem: «Se, por análise e meditação, eu me convencer de que devo usar de determinada ortografia – seja ela a agora oficial, ou não – é meu dever cultural escrever nela, pelo menos em livros, em que estou “sub specie aeternitatis”, liberto da hora e do lugar. Convicto da vantagem cultural dessa ortografia, passa a constituir meu dever “social” o fazer dela não só a defesa e justificação, senão também a propaganda». Assim, nesta matéria, o escol de uma nação deve decidir o que fazer.

    Com os cumprimentos do
    Eduardo Aroso

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  2. Os níveis de loucura na nossa língua já foram atingidos há muito na nossa língua. Havia o eixo orientador da antiga ortografia, agora há o eixo orientador da nova ortografia que apenas veio abrir as portas à loucura geral de uma nova língua viva há muito. Essa nova língua portuguesa é caracterizada (e isto nada tem a ver com o acordo) pela loucura geral, pois ouço pela boca do povo (que são sempre “eles” e nunca “nós” como observou um professor da minha mãe, o que nos desvincula de qualquer responsabilidade...) uma nova forma de falar plena de “pró-actividade”, seja lá o que isso for. As formas reflexas acabaram, ninguém “lhe” diz alguma coisa e todos dizem “a ele”. Nas novas gerações ouço muito “te amo” e não “amo-te” . Na televisão dizem “procedimentos” em vez de “normas” ou “regras” de actuação. O nosso condutor da pátria para o abismo, Sócrates, o “desfilósofo”, inaugurou a moda do “por forma a” em vez de “de forma a “ ou “de maneira a”. Nos testes de Português a juventude escreve com a linguagem hermética do telemóvel. As frases começam muitas vezes por “é assim”, sobretudo ditas pelas mulheres, como se existisse uma pulsão para uma verdade absoluta e uma vontade inconsciente de valorizar o feminino desvalorizado durante milénios. E o resultado de ouvir sistematicamente “é assim” acaba numa surpreendente falta de educação...
    O “povo” só tem classe se numa frase repetir incessantemente que tudo é “fantástico”, para já não falar no “tá” em vez do “está” e no arrastar a voz de uma maneira dita “beta” que identifica imediatamente o “novo-riquismo” ou a vontade de participar nele, esquecendo-se que os verdadeiros “betos” têm uma entoação perfeitamente normal. No povo ouvi “filhambre” em vez de “fiambre”, “embigo” em vez de “umbigo”, “jeineiras” em vez de “joanetes”, “brancelhas” em vez de “sobrancelhas”, para além do célebre “tu fizestes” em vez de “tu fizeste”, tornando a 2ª pessoa do singular numa constante 2º pessoa do plural (reminiscência do tempo em que não tinham carros “topo de gama” e serviam os senhores da tal 2ª pessoa do plural? E, para finalizar, porque muito mais exemplos há dum supra-analfabetismo (andamos analfabetos sem o sermos), no outro dia entrou no meu local de trabalho um espécime (com apenas vinte anos) de linguística surpreendente dizendo em voz cristalina: “Deu uma anorexia no “estôgamo” da minha irmã. O estôgamo dela deixou de comer”. O meu espanto foi total e disse-lhe: “Isso é mesmo muito grave!”.
    O acordo apenas abriu as portas da legalidade à loucura que já está instalada e, penso que para se ser Fernando Pessoa é necessária uma veia poética e uma cultura que, francamente não revejo neste povo híbrido, uma mistura de ele próprio e coisa nenhuma. Para reinventar a língua é necessário conhecer a sua base e nós perdemos a nossa há muito tempo.

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