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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



terça-feira, 3 de novembro de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 38

Santo-e-senha
(sobre A Verdadeira História de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, de Rodrigo Sobral Cunha)
Pedro Martins

Perante um livro inclassificável como este, não temos palavras bastantes: sempre algumas ficarão por dizer – um pouco à imagem daquelas com que, noite após noite, Xerazade retoma e reata os relatos suspensivos da ira do sultão. Foi justamente na tradição assim percebida que Rodrigo Sobral Cunha se escorou e escudou ao empreender a façanha de reinventar Aladino.
Tradição – sabem-no os juristas versados no comércio das coisas – significa sobretudo transmissão e entrega. Rodrigo, que se guardou da ocupação pretoriana, pôde depositar o seu escrúpulo na recepção da herança. Daí o denso intróito brunino dos parágrafos iniciais, firmando a tardia recepção europeia da narração interminável. Só na aparência o aparato erudito ali está a mais. É por ele que o autor requer homens despertos. Que o leitor há-de saber merecer este livro!
Aquém do mistério, inexpugnável, que determinou a obra de arte autêntica, fica destarte revelado o segredo que, contra os falsários, importa relevar. Mas além deste segredo, há ainda outro, que são dois. O autor anuncia-os de viva voz: 1) é dentro da própria história que a coisa que está fora dela se passa; 2) é fora da própria história que a coisa que está dentro dela se passa.
Na distância indistinta que separa o interior do exterior veio a caber toda a luz da criação, ou não fosse a obra uma apologia exaltada e exaltante do primado da imaginação. A um tempo, Rodrigo tornou-se escravo e senhor deste poder soberano, quase derradeiro. Foi o preço a pagar pela ventura das palavras primogénitas. Dito de outro modo, talvez o autor, de início, apenas tivesse em mente a composição de um ensaio sobre o conto celebrado. Depois disso, um momento terá havido em que a narrativa oriental invadiu o estudo do hermeneuta. Ou, quiçá, entrementes, haja sido a razão atlântica do filósofo a potenciar o estro anónimo fixado por Galland… Quem o saberá?

Fosse como fosse, quando Rodrigo se deu conta, já era tarde. Passava da hora inaugural. A coisa estava em marcha; fazia, inexorável, o seu caminho.

Na extrema concisão de uma só linha, de um só período, breves parágrafos indicadores da acção pelo movimento verbal fulguravam não obstante como aforismos. Como versos dispersos pela planície prosaica do grande poema. Perscrutando, subterrânea – segundo a citada, transcrita tradução de De Quincey –, os sons que atravessam o mundo, a geomancia do mago africano, conducente ao lugar onde encontraria o rapaz, volvia-se afinal – na alusão implícita, por sugerida – em exercício de ritmanálise. Era um livro que entrava no outro. E havia palavras que saíam voando de outras palavras, desenrolando o tapete, desfazendo o turbante, desvelando Aladino – palavras que no paladino revelavam, alfim, o alado imo. No filósofo emergente do ritmo, semelhantes divertimentos, lembrando musicalmente scherzos, sempre seriam coisa séria; e, em verdade, eram prelúdios do grande final, tingido por uma apoteose serena, na recriação inaudita dos momentos em que Aladino, já na posse da lâmpada, se detém a contemplar o jardim.

Depois dos segredos, o milagre. É para cima, e não em frente, que as fronteiras se diluem nesta narrativa poética e filosófica, sinal de que o agir, o sentir e o pensar vibraram em uníssono na alma do autor. E, por entre as coisas que são de sempre, há coisas novas que aguardam o leitor atento a este novo modo de dizer e ao que nele vai dito, sinal de que a nova geração da filosofia portuguesa procura não se deixar represar em sistemas perfeitos ou fórmulas acabadas, no que aliás intenta honrar os seus maiores.

Reconhece-se, evidentemente, a marca da escola – de uma escola – neste livro. “Rodrigo Cunha tirou uma história de outra história” – escreve António Telmo no prefácio que intitulou de Chamamento, de alguma sorte fazendo lembrar o gesto do muezim que, do alto do minarete, convoca os fiéis à oração, às horas santas. E, na verdade, assemelha-se este livro a um concerto de vozes que se erguem para a luz. É que, acompanhando a nota prefacial subscrita pelo autor de Viagem a Granada, nas suas laudas iremos ainda encontrar uma notável série de ilustrações de Carlos Aurélio, e um posfácio – Silsila – onde Pedro Sinde ilumina a iniciação que no Aladino encontra, por analogia com a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.

Lembro-me então de um outro extracto do livro de Rodrigo, numa transcrição tirada de Ruskin: “Os grandes feitos da arte são tornados possíveis quando as almas dos homens se encontram como as jóias nas janelas do palácio de Aladino, puras por igual as pequenas gemas e as grandes, sem precisar de cimento, mas sim da harmonia das suas facetas”. Lembro-me depois de que Aladino permaneceu na caverna durante três dias (sexta-feira, sábado e domingo) que – coisa ainda não inteiramente notada a este propósito – são os dias santos das três religiões abraâmicas, aquelas que, segundo Álvaro Ribeiro, confluem no formação do pensamento português. Se a interpretação iniciática que Pedro Sinde fez do Aladino estiver correcta – como, de facto, está –, a passagem de Ruskin pode bem ilustrar outrossim a unidade interna, e transcendente, com que a gnose da tradição lusíada, pelo prisma da imaginação criadora, cingiu os três monoteísmos. Nas sucessivas lembranças deixadas ao leitor, deponho a esperança de haver correspondido ao chamamento que pede o santo-e-senha desta obra:

Continua!

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