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terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O CAMINHO DO CAMINHO, 21












Transgressão e Transmutação

Cynthia Guimarães Taveira

Transgredirias? Transgredirias nu? Não estás sempre nu? Conseguirás estar sempre nu? Genuinamente nu, sem ritos, nem ideias, nem abismos, nem alturas. Assim sujeito como um menino num berço lançado ao rio. Nascendo duas vezes a cada instante. Há tantas transgressões mas só algumas são escutadas. Só algumas são actos de amor genuíno. Amor genuíno, despido, entregue,
vertical. Como um beijo no qual se projecta a alma toda. Como um abraço que é um vôo de liberdade.



No filme “Indiana Jones e a Grande Cruzada” de Spielberg, a fotogramas tantos, o herói é confrontado com um abismo. Entre ele e o Graal, um imenso vazio se estende para baixo. Perante a dúvida, e pensando rapidamente, o herói tem a atitude mais surpreendente e lança-se sobre ele. Surpreendentemente, uma ponte de luz aparece para o suportar. Nos seus movimentos interiores voláteis o herói associou o salto no abismo à fé e, em última análise, a transgressão é um acto de fé como se esta fosse a sua essência.

Porque nada acontece por acaso, no outro dia, dei-me conta de que nada sabia sobre esse Santo a quem foi dado o nome de S. Valentim. Vim a constatar que existiam dois prováveis mas que, no entanto, a lenda girava em torno do amor e da transgressão. Eis uma versão da lenda e suas origens romanas:

A história do Dia de São Valentim remonta a um obscuro dia de jejum tido em homenagem a São Valentim. A associação com o amor romântico chega depois do final da Idade Média, durante o qual o conceito de amor romântico foi formulado.
O bispo Valentim lutou contra as ordens do imperador Cláudio II, que havia proibido o casamento durante as guerras, acreditando que os solteiros eram melhores combatentes. O bispo continuou a celebrar casamentos apesar da proibição do imperador. A prática foi descoberta e Valentim foi preso e condenado à morte. Enquanto estava preso, muitos jovens enviaram-lhe flores e bilhetes dizendo que ainda acreditavam no amor e, durante esse período na prisão, apaixonou-se pela filha cega de um carcereiro devolvendo-lhe a visão milagrosamente. Antes da execução, Valentim escreveu uma mensagem de adeus para a sua amada, na qual assinava como “Seu Namorado” ou “De seu Valentim”. Considerado mártir pela Igreja Católica, a data de sua morte - 14 de Fevereiro - também marca a véspera das lupercais, festas anuais celebradas na Roma Antiga em honra de Juno (deusa da mulher e do matrimónio) e de Pan (deus da natureza). Um dos rituais desse festival era a passeata da fertilidade, em que os sacerdotes caminhavam pela cidade batendo em todas as mulheres com correias de couro de cabra para assegurar a fecundidade.

Esta última parte parece muito violenta mas ela faz parte de uma associação entre a terra e a mulher por parte dos agricultores. Antigamente, era também costume bater-se na terra de maneira a que esta despertasse e se tornasse fértil. Não é violência doméstica…

Bem, mas o que têm em comum estas duas histórias, a do Indiana Jones e a de S. Valentim? A transgressão. Lembremos que é também, por alturas de Fevereiro/Março que é celebrado o Carnaval, lugar de todas as transgressões, herança de festas pagãs. Antes da ordem, da fertilidade, da Primavera, da abundância, parece haver necessidade de se celebrar o fim de um ciclo e a inversão de todas as coisas (homens vestidos de mulher, escravos que se tornam reis, etc.), é a marca de um fim de ciclo: esta conversa é muito parecida com a descrição do fim do mundo moderno de René Guénon, mas neste caso não é isso que interessa. O que interessa é o valor da transgressão e quando é que ela é efectivamente válida.


Se observarmos a vida de alguns Santos, constatamos que, surpreendentemente, muitos deles foram transgressores, só que a sua transgressão não era nula, ou seja: não partia do nada em direcção ao nada. A sua transgressão era sempre feita em nome de um ideal: ou de pureza, ou de amor, ou de sabedoria .A transgressão era uma necessidade. No filme referido, o herói tem três provações: a humildade, o nome de Deus (sabedoria) e a fé (sempre muito ligada ao amor, à morte e à vida), e embora a transgressão esteja presente em todas elas, é na última que esta está mais evidente: nesse salto no vazio. Não é um salto do vazio para o vazio, mas é um salto pelo vazio, o que é diferente, e é essa a confusão que se faz muitas vezes.

Os jovens rebeldes adoram transgredir, e transgridem muito, só que há uma diferença de vazios. A maior parte salta de um vazio para o outro. Estão vazios em casa, vão para o carro, transgridem os limites de velocidade, e encontram o vazio da morte do outro lado. É a chamada transgressão inútil.

Depois também há a falsa transgressão, por exemplo, roubar para seu próprio deleite. É a chamada transgressão para benefício próprio. O transgressor é aquele que retira prazer imediato da transgressão.

E no, fim, há a verdadeira, aquela que, normalmente, numa primeira fase tem consequências nefastas para o transgressor mas que, depois, se torna símbolo da sua própria santidade. Relembro aqui o poema que Eduardo Aroso publicou há pouco neste blogue: “Verás que os punhais de fora/Dentro são um Hino de amor.”

Transgredir por Amor, normalmente, leva a que setas ou pedras sejam atiradas contra o transgressor, mas a lógica do divino e do amor inverte mais tarde as coisas.

Transgredir por transgredir é inútil. Transgredir por Amor, é transmutar. Amor com A grande. O amor nada tem a ver com o fanatismo. Mas tem tudo a ver com o conhecimento… já dizia o Camões.

2 comentários:

  1. Visão excelente. Não conhecia a possível lenda de S. Valentim. Vai pensando em escrever um livro...

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  2. Só com um pseudónimo masculino!

    Bjs
    Cynthia

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