(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



domingo, 20 de fevereiro de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 13



Uma nova cosmogonia

Alexandra Pinto Rebelo


É admirável o livro The Great Transformation, de Karen Armstrong, datado de 2006. A autora, analisa vários momentos do milénio que antecedeu o nascimento de Cristo partindo do princípio de que, nesse período axial, existiram grandes transformações religiosas nas culturas mais influentes a nível mundial. A sua atenção recai, sobretudo, no confucionismo e taoísmo, na China; no hinduísmo e budismo, na Índia; no monoteísmo, de Israel; no racionalismo filosófico da Grécia.

Em todas estas culturas há uma sensibilidade nova em comum, iniciada na Índia, com o hinduísmo. Em princípio, não há uma influência directa entre regiões, mas sim um alcançar de uma espécie de novo mundo como necessidade sentida por todos.

O mundo antigo vive dos condicionalismos dos rituais e dos sacrificios. O cosmos era concebido como um organismo que ia consumindo energias, sendo necessário a reposição dessas forças periodicamente, quer através de rituais cíclicos, quer através de sacrifícios. Os sábios da idade axial, vão modificar esta nossa relação primária com o mundo. Dão um significado ético ao ritual, colocando a moral no centro da nova vida espiritual. Com isto, o ser humano adquire uma importância extrema.

O cristianismo faz parte desta nova sensibilidade humana, constituindo, no entanto, uma das mudanças mais tardias. Se pensarmos de acordo com a proposta de Armstrong, o cristianismo irá renovar, não o judaísmo, que já tinha entrado na sua fase axial, mas sim duas regiões que ainda não tinham entrado na nova sensibilidade, ou seja, a Europa e o Egipto. Esta teoria encaixa na perfeição, se deixarmos a túnica e as sandálias cheias de areia do deserto à nossa porta, tendo a humildade suficiente de admitir o quanto o cristianismo deve à Europa e ao Egipto a nível simbólico, mítico, filosófico. Utilizando uma linguagem mais metafórica, pode dizer-se que o primeiro sopro do cristianismo é na Palestina, mas as suas sementes vão cair nos núcleos mais importantes do império romano, transformando as suas práticas religiosas, dando-lhes um sentido mais humanizado.

Parece-me, então, que as commumente chamadas Virgens de Ternura, poderão ter uma nova interpretação.

Maria é considerada Mãe de Deus no Concílio de Éfeso no ano de 431. É curioso o dogma ter sido proclamado precisamente na cidade de Artemisa, mãe natureza para os pré-cristãos, sendo representada com inúmeros frutos saindo do seu corpo, um dos locais de maior peregrinação da Antiguidade. Parte dos seus atributos, e da devoção a si dirigida, passam, a partir daí, para Maria.

E o fruto de Maria é Jesus. Estamos, julgo, perante uma nova cosmogonia, podendo esta derivar quer do mito de criação hebraico, quer dos mitos pagãos de renovação do cosmos. Depois do mundo estar criado, depois do mundo ser sucessivamente renovado, este novo mito cosmogónico diz-nos que, com Cristo, o mundo voltou a nascer. È, desta vez, um mundo feito de graça e ternura, tanta quanta existe entre uma mãe e um filho. Mas, ao mesmo tempo, é um mundo humanizado, livre já do jugo, muitas vezes incompreensível, dos rituais requeridos pelos deuses. (Os frutos pendiam somente de Artemisa, pertenciam ao mundo vegetal. O fruto de Maria é humano.) Mundo baseado no nosso livre arbítrio, no nosso caminho ético, tantas vezes individual.

A criação do mundo passa então para um plano secundário. O mundo físico de águas, céus, minerais, plantas, de animais, torna-se o cenário simbólico onde o percurso espiritual dos seres humanos se desenrola. A sua reactualização em termos de forças, deixa de ter, igualmente, a importância dada anteriormente. Com Cristo, somos nós, os seres humanos que necessitamos dessa renovação de forças, através da fé, através das assembleias com os nossos pares.

Karen Armstrong não o refere, mas penso que uma outra idade axial começou a ser desenhada em meados do primeiro milénio depois de Cristo. Refiro-me áquela sonhada pela Idade do Espírito Santo e que no oriente se encontra também no budismo zen. A europeia, tem como símbolo a pomba, ou a coroação das crianças, a japonesa tem como símbolo o Buda que eleva à altura do coração uma flor, como resposta às perguntas concretas sobre o Dharma.

3 comentários:

  1. A polémica questão do dogma de Maria Mãe de Deus muita tinta tem feito correr e porventura afastado, infelizmente, os crentes cristãos de determinadas práticas e enfraquecimento da sua fé. À primeira vista não faz sentido que alguém, por mais santo e excelso que seja, possa ter como atributo-essência o de ser MÃE DE DEUS, ABSOLUTO, POR ISSO INCRIADO. A explicação – e nunca encontrei outra que me respondesse satisfatoriamente – de um fundamento que eu diria cosmogónico, a que se resolveu dar o epíteto de dogma - foi transmitida por J.M. Ragon, um maçon místico-hermético (1781-1862), no seu livro «Signos do Zodíaco e festas religiosas antigas e modernas e Letanias de Jesus e Maria, ou do Sol e da Lua, ou dos princípios masculino e feminino».
    Na página 80 refere-se a «Diana Lucífera, porta-luz, Maria stella matutina, estrela mensageira do dia que vai nascer (reaparecer), Mater dei o diei, mãe de um deus (o Sol) ou do dia ( o dis pater dos Celtas). Diana-Maria era e Maria-Diana é a lua lucífera, porta-luz (a lua), o mesmo que o Messias do antigo Olimpo. Mercúrio era o Lúcifer, portador da chama ( O Sol). Diana-Lucífera era a mesma que a lua Ísis e a lua Maria. Na oração que Apuleyo recita, no momento da sua iniciação nos mistérios, encontramos o erro dos sacerdotes isíacos sobre a lua Ísis a respeito do sol Horus; eis aqui o fragmento:
    “Ísis, Ísis, tu dás luz ao Sol. É este falso princípio, adoptado cegamente no passado, o que deu lugar a que Maria-Ísis fosse declarada mãe de Deus (do Sol) e, consequentemente, do dia, «mater salvatoris, dei, diei, pelo Concílio de Calcedónia».
    Ragon diz que o dogma de Maria Mãe de Deus saiu do Concílio de Calcedónia (451) e não do de Éfeso (431). Pode ser que ambos os autores estejam certos, pois o de Calcedónia, 20 anos depois, surgiu para corrigir alguns erros pontos e pontos menos claros do anterior.
    Nos primeiros séculos do cristianismo a Igreja como instituição viu-se a braços com uma certa cosmogonia que vinha do passado, mas também eivada de elementos espúrios que nada tinham a ver com o espírito do cristianismo. Daí a complexidade nas decisões do que devia ficar ou não. O que nunca ficamos a saber pela Igreja (a exotérica ou de Pedro) é a relação causa-efeito das decisões dos concílios e outras. Ou seja, tem-nos afastado mais do mistério em vez de a ele nos conduzir. Cada um terá então que caminhar por si, na sentença bíblica «procurai e encontrareis». A título de exemplo de como a Igreja, apesar de tudo, conserva ensinamentos e práticas que aparentemente sem critério cosmogónico beneficiam a todos, é o da Páscoa. Esta festa do calendário desde sempre, que eu saiba sem interrupções, tem lugar no primeiro domingo a seguir à primeira Lua Cheia depois do equinócio da primavera (HN).

    Saudações

    Eduardo Aroso

    ResponderEliminar
  2. Agradeço o seu comentário. Eu sei que a questão é polémica, bem como o são quase todas as questões em relação à religião. Utilizamos, por comodidade, termos genéricos que nos levam para erros sobre erros. Todos os discursos têm um Wittgenstein escondido com um rabo de fora. Utilizamos o termo cristianismo, quando o que existem são cristianismos e sempre existiram. Veja-se, logo no início, o caso de Paulo, Pedro e João. As associações feitas pelos antigos, não seriam propriamente enganos. Eram antes, resultado da sua cultura que ainda era pagã, mesmo se já tinham optado por ser cristãos. O pensamento pagão, a nível religioso, é deveras interessante. O politeísmo não é um conjunto fechado, permitindo sempre a inclusão de um ou outro deus, de um ou outro culto. É o pensamento que ainda subsiste, por exemplo, nalguns toques do catolicismo. Os santos fazem parte de uma espécie de sub-sistema divino, conjunto nunca fechado. É possível sempre acrescentá-lo, dar-lhe novas coordenadas. Esta era, como dizia, uma prática antiga de povos que teriam como extravagante o conceito de verdade religiosa. Os deuses serviam ou não serviam, sendo essa a única verdade para eles comprovada pela prática. Se me perguntar se eu acho esta noção de conjunto aberto um erro, não sei o que responder. Para mim os únicos erros em termos religiosos são aqueles que levam a crimes devidamente considerados no Código Civil actual.

    ResponderEliminar
  3. A Igreja Católica, parece-me, tornou-se em muitos sentidos a continuadora da cultura antiga (faço aqui uma distinção que nunca vi notada, entre cultura católica e religião católica. Parece-me que é por esta distinção intuitiva que muitos católicos dizem ser católicos sem no entanto serem praticantes, coisa que, sem esta distinção, seria absurda, isto é, como é que alguém pertence a uma religião sem a praticar?) tendo de a incluir no seu pensamento e no seu culto.
    Relendo o seu comentário, não consigo compreender muito sinceramente a que erro se refere. Ísis era mãe de Hórus, não do Sol Invicto, associado a Cristo muito por culpa de Constantino. Maria torna-se Mãe de Deus por um processo teológico muito simples e curioso. Se Cristo é consubstancial ao Pai (Credo de Niceia), então ele próprio é Deus. Mas, ao ser Deus, ele teve um nascimento humano também, tendo uma mãe. Assim Maria é Mãe de Deus. Por outro lado, existia tanto na Europa como no Egipto um arquétipo de deusa-mãe que deixara de estar preenchido, sendo necessário repô-lo.
    Agradeço, mais uma vez os seus comentários, meu caro Eduardo. Acho que este espaço vive também de troca de opiniões. O Eduardo levanta questões bastante interessantes, como não poderia deixar de ser, às quais penso voltar no próximos dias, como é o caso dos antigos cultos mistéricos da antiguidade. Bem haja.

    Nota: Peço desculpa por o comentário seguir partido. Não é nada de simbólico. Simplesmente não consegui enviá-lo de outra forma.

    Alexandra Pinto Rebelo

    ResponderEliminar