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sexta-feira, 17 de julho de 2009

NOS 70 ANOS DE PINHARANDA GOMES, 5

“Anagnose do Mestre
[1]

Anagnose significa revisão, o acto de olhar de perto, em repetitivo exercício. Se há sinónimos, como Aristóteles ensina na gramática elementar, anagnose constitui o puro admirar, que, para os efeitos do magistério, significa trazer, isso que se admira, “na melhor companhia das nossas almas”.
O filósofo distingue-se por quanto amar a verdade, o que supõe a companhia interior do espírito de verdade, a permanente anagnose (vigília e oração) dos caminhos e dos itinerários que a ela conduzem, por forma a evitar a ilusão e, ainda mais, propondo-se um fim – a rectificação da mente segundo o espírito da verdade. Razão animada, o filósofo sucumbe aos desvios da condição humana. Em palavra cifrada: o anjo está sempre contemplante do espírito de verdade, sempre admirante da verdade do espírito. O homem, algumas vezes, sai do caminho para a estrada do desvio, insensato ou inconsciente, quando conjectura que, pelo desvio, evitará a agónica transposição da porta estreita. Esta estreita porta é irreversível em filosofia. Inevitável. (…) A filosofia não é um curso; é uma via mística, uma forma peculiar da via mística. Subir a montanha propõe-se ao filósofo qual a imagem querigmática da sua professio vitae: procurar a estreita vereda que conduz à estreita porta; evitar as estradas do desvio; não retirar os olhos do contemplum para o contemptum. (…) A filosofia decide-se numa vida, é uma “carreira”, (permaneo, ficar até ao fim), e constrói-se como casa viva dentro da própria filosofia. É mansão, casa (permansio, do verbo permaneo). Casa de portagem do conhecer como saber, e do saber como conhecer, palestra da educação permanente. Nunca se chega a ser sábio. (…) Na communio magistral de Álvaro ecoava (ecoa, porque o espírito do pensamento permanece para sempre) a lição leonardina – contribuir, com a modéstia de uma tese, para a arquitectura final de uma obra a realizar pela humanidade é, pelo menos está perto de ser, filosofia. Via sacra, decidida desde o princípio do tempo, que é coincidente com o princípio do pensamento. Prisão e naufrágio, referências dos tópicos situativos da filosofia: (…) Entre a prisão do saber convencional e o naufrágio nas águas do erro, a filosofia exerce uma jurisdição, sem a qual jurisdição, também não é filosofia: a liberdade. Por esta se evade da prisão, por esta se salva do naufrágio. (…)

Álvaro Ribeiro

O que nesta concentrativa anagnose nos aparece hoje (…) é a pessoa do mestre, individuação singular do magistério – o castigo, a disciplina, a correcção, a doutrina, a arte de pesquisar, o método, enfim, o cilício da professio philosophiae. Emendar, tirando do desvio, castigar, corrigindo o erro – o castigo dirige-se ao erro e ao mal, não ao errante, nem ao mal jacente – supõe amor. O primado do amor é indiscutível na posição magistral de Álvaro Ribeiro: o mestre é o amante, o discípulo é o amado. Não obstante, o mestre é também o amado e, o discípulo, o amante. Só que não se amam um ao outro, mas ambos amam um mesmo outro, que não vem a ser nenhum deles. Isto garante ao discípulo a liberdade de ser discípulo, de se separar, que é o verbo inerente a discípulo. E garante de igual modo ao mestre a felicidade de ver o discípulo separar-se dele, como o filho se separa do seu pai. Se não se separasse, não nasceria, não seria filho. O amor magistral exerce-se como amor paternal, o amor discipular exerce-se com amor filial. O coração deste amor recíproco chama-se lealdade. O pai, que é mestre, transmite a disciplina ao filho, que é discípulo. O mestre obriga-se ao bom conselho. Não engana o discípulo, salvo se achar oportuno sujeitá-lo a teste, a tentação, para ver se o discípulo está como espera. Se achar que o discípulo sucumbe à tentação, revelando imaturidade, ingenuidade, ou inocência, e que ainda o não pode largar de sua mão, o mestre permanece. Volta ao princípio. Inicia a isagoge e progride na repetição do caminho. Nunca é tarde para repetir o caminho que leva à porta estreita do espírito de verdade.
O mestre é uma razão para o discípulo. “A razão vai à frente da alma para a iluminar.” A razão é mestre da alma. Em Descartes, a razão é uma balança. Em Álvaro, a razão equivale a uma luz. Metáfora, sem dúvida, mas metáfora de luz, se não for endeusada.”
Pinharanda Gomes

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[1] «Anagnose do Mestre», in Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa, Ano I, nº 2, Lisboa, Junho de 1988, pp. 14-15.

1 comentário:

  1. UMA PASSAGEM DO TEMPO

    Sempre que subo à colina de mim mesmo, procuro espreitar no espelho da minha frontalidade, o reflexo da verdade que me ensine todos os caminhos do saber o que não sei. Nunca encontro portas estreitas. Nunca atravesso a porta da Humanidade sem ouver o que as estradas da demência humana produziram como contemplação da sua imperfeição. São estradas repletas de mansões, onde as perguntas que se constroem, são as respostas dos defuntos, cujos olhares nunca contemplaram as mentiras que a verdade fabrica para construir as linhas de montagem da produção imatura, ou melhor, da falha de civilidade que a razão não ilumina porque os mestres que programam, são abalados pela cegueira dos que aprendem, aprendendo a não saber a aprender.
    Todos nós olhamos para a clareza dos iluminados, tentando encontrar com eles, os discípulos que nos ensinem a encontrar o caminho da individualidade, inserida na multiplicidade dos pensamentos que nos revelem o amor, a lealdade e a luz que seja o olhar do conhecimento profunda, mas a tentação dos hálitos nocturnos da razão, transportam nos seus fluidos uma balança que desconhecem, porque a decisão de se eliminar para se reconstituir, é uma verdade que não existe na realidade do Futuro que somos todos nós.

    Jorge Brasil Mesquita

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