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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



terça-feira, 16 de novembro de 2010

ANTÓNIO TELMO, SEMPRE

António Quadros

António Telmo, filósofo da razão estética*

por António Quadros

Conheci-o há pelo menos quarenta anos na «Universidade» da Filosofia Portuguesa, como ele atraído pelo magistério marginal de Álvaro Ribeiro e José Marinho, discípulos de Leonardo Coimbra, para quem a filosofia não era um modo de vida, mas um modo de ser…
Essa «Universidade» informal teve como sedes, primeiro o Café Palladium, onde ainda apareciam às vezes o Casais Monteiro, o Jorge de Sena, o Eudoro de Sousa, o José Blanc de Portugal, o António Banha de Andrade, o Eduardo Salgueiro ou o Domingos Monteiro, depois a Brasileira do Rossio, onde assentou arraial durante os anos em que nós lançámos com entusiasmo e espírito de desafio o Acto, o 57, a Espiral, anos em que aqueles nossos mestres saudosos publicaram, o primeiro A Arte de Filosofar (em 1955) e A Razão Animada (em 1957), o segundo a Teoria do Ser e da Verdade (em 1961). Mais tarde, outros cafés tomaram o lugar daqueles, o Colonial na Almirante Reis ou o Estrelas Brilhantes em Campo de Ourique…
Nesses cafés, nossos jardins de Akademos, nos juntávamos António Telmo e o seu irmão Orlando Vitorino, Afonso Botelho, Fernando Sylvan, Jorge Preto, Luís Espírito Santo, Luís Furtado, um pouco mais tarde Pinharanda Gomes, António Braz Teixeira, Romeu de Melo, Joaquim Braga, além de outros infelizmente já desaparecidos, como Francisco da Cunha Leão, Amorim de Carvalho, Luís Zuzarte, Francisco Sottomayor, Fernando Morgado, Alexandre Coelho ou Rui Vitorino, irmão de António Telmo e Orlando Vitorino, todos então rapazes que, fascinados, pela primeira vez deparavam com uma filosofia viva, não escolar.
Em cada um de nós se desenhava uma vocação, uma tendência, que sobretudo Álvaro Ribeiro estimulava de um modo subtil, mais inteligente que insistente. Quanto a António Telmo, veio a ser o que de todos nós levou mais longe o conhecimento gnóstico, o conhecimento do que está escondido e é inacessível pelas vias da percepção sensível, da ciência positiva e da erudição livresca.
Dizia Álvaro Ribeiro que a arte de filosofar (arte porque queria acentuar o papel da criação mental, da imaginação, da intuição e da indução) procurava o conhecimento pela tripla via gnósica, pística e sófica. O que António Telmo buscou toda a sua vida foi, não unicamente uma gnose (como o tentam os ocultistas e os esoteristas), mas uma harmonia entre a gnose e a razão ou melhor, a sophia ou a sabedoria abonada pela exigência intelectual da razão teórica.
É um filósofo da razão estética. É um decifrador de escritas perdidas, a da poesia de Dante, de Camões, de Pascoes ou de Pessoa, a da simbologia iniciática dos Jerónimos, a da língua portuguesa e da sua gramática secreta, a do saber antiquíssimo expresso no pensamento de Bruno, de Leonardo, de Álvaro ou de Marinho, a da relação de uma filosofia que não é a filosofia das Universidades oficiais, com uma cabala que também não é a cabala dos esotéricos sem filosofia.
Depois dos anos da juventude, na Universidade dos cafés, António Telmo é um fugitivo dos grandes centros urbanos, procurando o sossego e o silêncio para melhor guardar a sua autonomia. Beja, Brasília (para onde o levou Agostinho da Silva), Estremoz, são lugares do seu itinerário existencial, mas o característico da sua inteligência invulgar, é a capacidade para atravessar ou penetrar para lá das camadas sobrepostas da cultura morta em que «coisamos» os nossos saberes satisfeitos.

António Telmo

Calmo por fora, parco em palavras, autor de livros pequenos e densos, poucos imaginam a rapidez do seu movimento mental: chegamos, já lá esteve; alcançamo-lo, já subiu mais uns degraus; quando publica um livro, é sempre o inesperado; é um heterodoxo, mas em nome de uma fidelidade ao essencial.
Sempre desdenhou de honrarias, de títulos, de «posições na vida». É ignorado pelos universitários, mas o que estes sabem é o por ele há tempos sabido que nem se dá ao trabalho de o referir. Alguns gostariam que ele escrevesse mais, explicasse melhor, desenvolvesse as sugestões e os enigmas que apenas esboça. Mas ele prefere propor-nos charadas. Que as decifremos nós, como ele próprio a decifrou. Esse é o acto genésico de filosofar. Começa por uma hermenêutica, pela arte de Hermes.
Pensará talvez António Telmo (nunca mo disse) que não vale a pena escrever para os desatentos, para os desinteressados e para os filisteus. Que não é pedagogo, quer dizer, que não é o escravo que leva pela mão os meninos até junto do mestre. Mas ele não é um pedagogo porque é verdadeiramente um mestre. Como Leonardo, como Álvaro e Marinho.
António Telmo escreveu, no prefácio do seu último livro, Filosofia e Kabbalah, que a razão é um órgão para o conhecimento mas as suas articulações não coincidem com a realidade. Por isso a razão não pode dispensar a comunicação com o desconhecido, que a poesia, a música e as artes plásticas procuram estabelecer.
Englobante pois da razão e das artes, o pensamento é como a ave Fénix, uma energia, um fogo, uma actividade do espírito que todas as manhãs renasce das próprias cinzas…
Escassas embora, estas duas citações desenham já o perfil do filósofo. Interiorizou como poucos a herança de Álvaro Ribeiro: a de um pensador da arte de filosofar e da razão animada, explorando vias que ele próprio abriu, no trânsito da autognose para a heterognose, do conhecimento do espírito no eu para o conhecimento do espírito no além-eu.
Janeiro de 1991
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* Publicado originalmente na edição de 13 de Fevereiro de 1991 de O Setubalense, no suplemento de artes e letras «Arca do Verbo», coordenado por João Carlos Raposo Nunes.

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