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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 46

António Carlos Carvalho

Hoje é dia de São Martinho, dia de «castanhas e vinho». Mas é só por cá -- e nem sequer sabemos, geralmente, de que São Martinho é que estamos a falar, se do de Tours, se do de Dume (na verdade é do de Tours, e o segundo tomou esse nome monástico por causa daquele).

Noutros países da Europa, hoje é feriado porque se comemora o Armistício da Grande Guerra, aquela que se julgava ser «a última das guerras» e que afinal foi apenas a Primeira Guerra Mundial: como se tivesse sido pouca coisa, vinte anos depois fizeram a Segunda Guerra Mundial, para completar, e generalizar, a destruição, agora das populações das grandes cidades.

Portanto, noutros países, hoje é dia para lembrar o primeiro acto do que alguns chamaram «Guerra Civil Europeia», 1914-1918 e 1939-1945. Visitam-se os gigantescos cemitérios, colocam-se flores nos monumentos aos mortos e nos túmulos dos «soldados desconhecidos», fazem-se discursos de circunstância e, no caso de ainda os haver, homenageiam-se os veteranos sobreviventes.

Por cá, é mais «castanhas e vinho», porque há muito se decidiu comemorar, não o fim do conflito, a 11 de Novembro de 1918, como seria lógico, mas o dia da trágica batalha de La Lys, a 9 de Abril desse mesmo ano. E eu cresci a ouvir as fúrias do meu Avô paterno, que também andou lá pela guerra, e que ficava furioso com essa opção do 9 de Abril: «Onde é que já se viu comemorar uma derrota…!!!» (o destino pregou-lhe uma partida cruel: o meu Avô morreu precisamente num dia 9 de Abril…)


Monumento aos Mortos da Grande Guerra, Av. da Liberdade, Lisboa

Na verdade o 9 de Abril de 1918 foi uma das páginas mais negras (e sangrentas) da nossa História militar -- como, aliás, o foi toda a nossa intervenção na Flandres, desejada pelos políticos e pelos republicanos idealistas, mas não pelo povinho mobilizado à força e enviado para terras estrangeiras e desconhecidas, para o meio da lama e do gelo das trincheiras -- André Brun chamou-lhe «a Malta das Trincheiras» --, submetido às «tempestades de aço» de que falou Ernst Jünger, o veterano das duas guerras.

Há anos, fui parar à Alfândega da Fé, onde me competia dar um curso de formação na biblioteca local. E aí descobri, numa história da terra, que em Alfândega da Fé, lugar ainda mais remoto nessa altura do que é hoje, foram mobilizados dois mancebos para combater na Flandres. Ficaram lá os dois, mortos pela metralha alemã…

A esses e a muitos outros (foram milhares, entre mortos e feridos, as nossas baixas na Grande Guerra) foram depois erguidos esses numerosos monumentos que se encontram espalhados pelas cidades e vilas do País, de onde saiu essa massa de «carne para canhão». Os monumentos continuam lá -- nós é que já não os vemos, muitos de nós passam por eles e nem sequer sabem o que representam…

E também se construiu o túmulo do Soldado Desconhecido, na Sala do Capítulo do Mosteiro da Batalha -- um lugar onde me comovo sempre, por aquilo que significa de derradeira tragédia: nem sequer sabemos o nome daquele corpo, daquele morto mais morto do que todos os outros mortos com direito a nome no cemitério…

E depois tivemos as sequelas nos outros, nos que foram vítimas do horrível gás lançado para as trincheiras do inimigo, e que o vento se encarregava de disseminar. Um tio-avô meu sofreu o resto da vida com os efeitos dessa arma química. E as descrições que li desses ataques deixaram-me aterrado -- confesso também. Entre elas as páginas que Malraux escreveu no seu romance «Lazare», em 1974.

E agora a mão amiga do Pedro Martins fez-me chegar uns excertos das «Memórias da Grande Guerra», de Jaime Cortesão, capitão-médico, também ele gaseado:

«21 de Março de 1918.
(…) logo de princípio começam a chover sobre toda a planície as granadas de gases. Sopra o vento. Não obstante as portas e as janelas estarem fechadas, o quarto [da casa intacta onde se abrigam] para onde eu e o Frazão nos atirámos, está empestado de cheiro nauseabundo. Pomos as máscaras e tentámos dormir com elas postas. Mas aquilo, horas seguidas, somadas às nossas infinitas fadigas, cansa de tal maneira que acaba por destruir a noção do perigo, e deitámo-las fora. Ficamos prostrados em tamanha sonolência que somos insensíveis à ideia da morte.
(…) Durante a noite, os gases envenenaram metade do batalhão. (…) Caem as granadas, e porque muitas são de gases, ordeno a todos que ponham a máscara. Eu e o enfermeiro temos de nos aguentar. É impossível fazer-se com desembaraço o serviço imenso que temos diante, de máscara posta. (…) Sente-se nitidamente que a morte vai chegar. De repente há um fragor cataclísmico. Uma granada cai em cheio (…) E na bruma sufocante, que cheira a alho, os feridos arrastam-se, aos urros, em solavancos, golfando sangue, arremessando-se em gestos loucos, tisnados pelo fogo, e as caras hediondamente mascarradas de negro pelos gases.
-- Às macas! Peguem os feridos!
Bradamos, damos ordens, procuramos salvar o material com que havemos de tratar os feridos, e, a plenos pulmões, sorvemos o ar mortal.»

(Jaime Cortesão, mesmo atacado pelos gases, continua a tratar dos feridos; é louvado pelo comandante do regimento, André Brun, e ganha a Cruz de Guerra; fica cego durante algumas semanas; recupera a vista mas está fraquíssimo; regressa a Portugal em convalescença e é ainda nesse estado que os homens de Sidónio Pais o vão prender e encerrar na Penitenciária de Coimbra… E Cortesão, numa carta publicada em jornal, desabafa: «É esta então a Mãe-Pátria?!»)

1 comentário:

  1. Apesar da injustiça cometida, creio não ser a pátria, no meu caso Brasil, a responsável pelas injustiças a nós cometidas, Mas os homens que dela usufruem o poder sobre nós, utilizam de maneira injusta e para seus próprios propósitos.

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