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terça-feira, 10 de agosto de 2010

O CAMINHO DO CAMINHO, 14

Cynthia Guimarães Taveira

Os Extravagantes

“No período da Idade do Ouro, o Homem, renovado, ignora qualquer religião. Rende, apenas, graças ao Criador, de que o Sol, a sua mais sublime criação, lhe parece reflectir a imagem ardente, luminosa e benfazeja. (…) No seio do brilho do astro, sob o céu puro duma terra rejuvenescida, o Homem admira as obras divinas, sem manifestações exteriores, sem ritos e sem véus.”

Fulcanelli, in “Mansões Filosofais”

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Os extravagantes eram um grupo estranho à monotonia histérica da contemporaneidade. Quando estava com eles nunca os via como verdadeiramente apareciam no seu aspecto físico. Não usavam calças de ganga, nem t-shirt´s, nem casacos comprados em multinacionais. Via-os sempre pelo lado de dentro e, se os tivesse que vestir mentalmente, vesti-los-ia com algodões leves, brocados alguns, outros de turbante, elas flutuantes em roupas esvoaçantes, filigranas de ouro, indícios de plumas, algo de leve e belo, assim quase etéreos, assim juntos a conviver no “avarandado do amanhecer“, para usar uma expressão de Caetano Veloso.
Os extravagantes, para quem os visse à superfície, pareciam nunca estar de acordo, e quem os visse, assim nessa distância superficial, nunca poderia estar de acordo com eles. As suas conversas pareciam sofrer de o duplo abismo: discordantes até à totalidade, e concordantes até à supra totalidade. Tinham um estranho olhar, um olhar avaliador sem crítica. Quando dois olhares se cruzavam, havia neles a tentativa recíproca de chegar ao fundo da alma. Eram olhares arqueológicos, escavadores e, no fim, sorridentes das contradições em que viviam. Sorriam acima da contradição, e era esse estranho sorriso, como aquele dos anjos da Catedral de Chartres, que prevalecia.
Por vezes havia crispações e, nessas alturas, o coração pulsava mais sério. As coisas eram levadas a sério… havia uma seriedade no facto de se saber que se vivia entre dois ou mais planos. Nenhum deles era indiferente às estrelas. Elas sobrepunham-se no seu caminho, interiores ou exteriores e nos momentos de contemplação, interiores e exteriores. As estrelas que brilhavam neles…
Os extravagantes eram uma causa muito improvável e um efeito ainda mais improvável. Assim como a gota de chuva caída num dia de sol. Sabiam-se todos profanos na medida em que tinham a consciência de gravitar em torno da Idade do Ouro, não podendo, no entanto, ainda pertencer totalmente a ela. Essa Idade não constava no tempo desenrolado. Estava à parte do tempo e vivia lado a lado com ele.
Quando se encontravam, não eram apenas seres que se encontravam. Normalmente traziam livros, ao milhares, memórias infinitas, construídas a partir de viagens e sensações, pensamentos difusos perdidos algures numa contemplação mais aguda, intuições várias de outros mundos, certezas da existência de um espírito que planava como uma águia acima das suas cabeças. Num palácio visível não caberia tudo o que traziam para esses encontros, teria de ser um palácio extensível como o espírito.
Havia excentricidades neles, mas a maior, nestes tempos modernos, era o gosto pela originalidade, o que lhes permitia serem extremamente flexíveis no abraço que poderiam dar àquilo que lhes era absolutamente estranho. Tendiam a ser religiosos no sentido em que permitiam a entrada do Totalmente Outro nas suas conversas, nos seus corações e, enfim, no seu Espírito, que assim se enriquecia e se tornava ainda mais leve.
Encaravam o laço do tempo como uma inevitabilidade da sua condição humana mas não lhe prestavam grande atenção. Por isso nunca estavam na moda e conseguiam ser sempre extravagantes com um lado deles fora do tempo.
As conversas podiam ser até fúteis mas a voz, nessas conversas, fazia mais companhia do que nas outras do dia a dia. Conseguia adivinhar-se o calor da voz vindo directamente do coração, fogueiras que se aqueciam umas às outras. Havia neles uma voz poética que parecia atravessar todo o tempo quando estavam juntos no avarandado do amanhecer.
Era um estranho grupo indiferente às leis da física e absolutamente sensível à paisagem. Eram amigos e neles algo amanhecia em permanência muito para além dos conflitos do mundo. Envolvendo-os a todos, em jeito de céu, estava Portugal. O seu sublime mistério e o seu segredo mais bem guardado.

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