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quarta-feira, 15 de setembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 96


Crónica sexta da beira-mar
Eduardo Aroso

A ver o mar, dei comigo a cismar. O verbo na matéria, a precisão fonética. Separar do mar, ou, à maneira de uma lente convergente, juntar o pensamento através do mar? Eu estava sentado numa escarpa; no meu corpo apenas os olhos se moviam pelo focar da visão na distância. De repente, como aqueles grandes clarões das auroras boreais, percebi que o nosso planeta é também corpo do divino, que temos metaforizado no que chamamos Natureza, em vários níveis de entendimento e modos de percepção. A magnitude desse corpo, e no que podemos relacionar com o mundo sensível, mar, rios e lagos só podem ser o seu sangue. Elementos naturais que devem mover-se na flexibilidade que lhes é própria; assentos e canais por onde passam devem estar limpos, pois o que por vezes acontece ao nosso corpo (a.v.c.), também o descuido do homem pode provocar sério dano na natureza, em maior ou menor escala. Entenda-se, todavia, que se diz corpo da natureza, pois quanto à sua alma são outras as relações e mais subtis efeitos.
Eu estava sentado numa escarpa junto ao Cabo Mondego, que só pode ser um osso da terra, ainda que seja, como dizem os clínicos, um osso «exposto». Gerês, Estrela, Lousã e outras serras são tíbias e perónios. Estas expostas ao alto, outros na horizontal, como também o Cabo da Roca ou o de S. Vicente.
A terra é um músculo com muitas nervuras. No corpo humano há centenas deles, como existem variadíssimas qualidades de solos, desde os aráveis aos mais agrestes. Tal como o pão propriamente dito, feito de cereal, é símbolo inequívoco do alimento humano, seja ele qual for, também a hóstia do catolicismo, cuja substância original é o trigo, realiza a transmudação de um elemento natural (cereal) em alimento espiritual. Está de acordo com uma antiga lenda que diz que os países onde não há trigo o cristianismo também não cresce. Compreende-se assim bem melhor o sentido das palavras do sacerdote, no acto dos fiéis receberem a hóstia, quando diz «O Corpo de Cristo».
Só a insensibilidade avolumada do Homem a este corpo tão singular é que o tem impossibilitado de viver plenamente nesta verdadeira epiderme divina. É no ambiente da natureza com o homem, e deste com a mãe de todos os elementos, que a poesia e o pensamento portugueses têm florescido num espírito radical de não agressão, contrariando um modo de vida avassalador que se foi cristalizando em sentenças como esta «conquistar ou dominar a natureza», e que se foram inculcando negativamente nos canais mormente da ciência e da educação. Ou seja, em vez do aproveitamento sábio e amoroso, o ser humano, em muitas situações da vida, tem encarado a natureza como o bicho mais hediondo que é preciso dominar.
Devido à ausência do desenvolvimento científico no passado, hoje alguns podem aceitar uma visão do medonho da natureza, justificando a expressão (que não é tanto de um passado remoto, mas do positivismo europeu) «dominar a natureza». Curiosamente, as chamadas “artes marciais” dizem tão simplesmente que o domínio deve ser em nós, não o do outro. A ciência, embora materialista, veio responsabilizar mais o ser humano para não temer a mãe-natureza como força contra.
Inquestionável foi o contributo pioneiro do português, na era dos Descobrimentos, para uma visão mais científica da vida (na biologia, na astronomia, na botânica e outras), mas ao invés de traduzir o sentimento da natura em conhecimentos matemáticos ou filosóficos, prefere, por exemplo, estabelecer uma relação entre filho e mãe-natureza de maneira directa e sensível, tal nos diz a dulcíssima voz de Frei Agostinho da Cruz «Verei o Criador nas criaturas».
Consideremos, portanto, agora a questão do ponto de vista filosófico e poético. Na obra História Secreta de Portugal e depois em O Horóscopo de Portugal, António Telmo conduz o leitor pelo lado de dentro, ou seja, rumo ao átrio das núpcias alquímicas do pensar e do sentir, para o encontro com a alma da Natureza, com o duplo de todas as coisas e seres irrepetíveis desta, como nos diz a poesia de Pascoaes. Mas, para o exemplo em questão, António Telmo coloca-nos perante a sensibilidade de um poeta português, Carlos Queirós, e de Kant, pensador de estirpe de uma nação triplamente científica, filosófica e poética, mas cuja relação com a natureza é bem diferente daquela do poeta luso. Vejamos:
«Falam-me da beleza de um céu estrelado. Lembra-me um rosto coberto de bexigas (Kant).

«Anoitece.
Faz frio pensar na vida.
E a natureza parece
Dizer em voz comovida
Que o homem não a merece.»
(Carlos Queirós)

Setembro de 2010

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