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quarta-feira, 9 de setembro de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 31

O outro Álvaro Ribeiro
Pedro Sinde

Para o Professor Doutor Paulo Borges

Não esperava antecipar um pouco o trabalho que desenvolvo neste momento em torno do tema da operatividade da filosofia portuguesa, mas creio que a circunstância o pede.
É uma opinião comummente difundida entre estudiosos das universidades e também entre pessoas de pensamento maculado ideologicamente a ideia de que Álvaro Ribeiro é “apenas” um patriota. Não contava, porém, encontrar uma opinião parecida com esta, infundada e precipitada, em Paulo Borges, que tem tido uma responsabilidade grande na divulgação do pensamento português.
Aquilo para que gostaria de chamar a atenção aqui é apenas um dos aspectos “esotéricos” de Álvaro Ribeiro, que o coloca muito longe daquele plano medíocre em que Paulo Borges o quer encerrar; a ele e aos alvarinos, como lhes chama, quem quer que eles sejam.

Álvaro Ribeiro
É certo que Álvaro Ribeiro era muito secreto e só a um ou outro dos seus discípulos ou conviventes deixou transparecer o lado operativo da sua filosofia; poucas pessoas praticaram a disciplina do arcano como este filósofo. Mas se é verdade que o seu ensino era no essencial oral, deliberadamente acroamático e muito discreto, isto é, passado só a alguns que passassem vários testes, o primeiro dos quais era o da análise fisiognómica (como tem testemunhado várias vezes em público António Telmo), nada disto serve de desculpa para uma precipitação tal qual se pode ler num comentário da Nova Águia, feito por Paulo Borges. É que mesmo os seus livros, lidos com boa vontade, deixam transparecer a operatividade da sua doutrina; o que o coloca num plano diferente daquele em que o querem tantos encerrar.
Um exemplo disto mesmo, e talvez até o mais nuclear de todos, é a importância atribuída por Álvaro Ribeiro à oração mental. São várias as passagens em que Álvaro Ribeiro chama a atenção para a importância da oração, o que de resto é duma enorme coerência com a sua mensagem.
O exemplo mais flagrante disso é talvez aquele que se encontra numa carta publicada nos Teoremas de Filosofia pelo seu director Joaquim Domingues (Teoremas de Filosofia, 9, 2004):
“Habituei-me a relacionar o pensamento com a oração. Creio que o pensamento, se actua pela palavra escrita e proferida, mais bem se derrama pela oração mental. […] O meu teologismo exige-me concentração a que me habituei já nas horas em que vou de casa para o trabalho, e em que venho do trabalho para casa. Ser-me-á lícito exprimir em livro as verdades religiosas? Não deverei continuar com a prudência, que parece secura e rigidez, em que tenho escrito até agora?” (p. 37, os itálicos são meus)
Como se vê, Álvaro Ribeiro destaca nitidamente dois aspectos da sua intervenção: uma exterior, pública, em que mostra apenas o que quer mostrar e outra toda interior em que praticava a oração mental com concentração, de tal modo que isso constituía já um exigente hábito praticado peripateticamente nas viagens entre a sua casa e o seu trabalho.
Mas não precisávamos, sequer, que uma carta privada se tornasse pública, bastaria lermos os seus livros com aquele olhar livre de preconceitos. Um exemplo pode ser este que se segue, tirado d’A Arte de Filosofar, p. 233:
“O pensador que praticar as virtudes teologais, vivendo sempre em oração, dará no seu ambiente social a prova mais eloquente da existência de Deus.”
A hermenêutica desta citação pode levar o seu leitor a lugares antes insuspeitados, se estabelecermos a relação entre a prática das virtudes teologais como uma manifestação ou uma expressão, quer dizer, uma consequência de se viver sempre em oração; sempre. Esta última expressão poder-nos-ia levar a suspeitar, pelo menos, que se trata de algo como a oração jaculatória, dhikr, mantra ou o que quer que se lhe chame. Mas este ensino não se destinava a todos, apenas aos que tinham ouvidos; em todo o caso, se tivermos olhos para ler, poderemos deixar de cometer a injustiça banal de continuar a encerrar Álvaro Ribeiro no corpete de um formalismo meramente exterior. O seu patriotismo é só isto: temos de partir apenas de um porto, que é aquele no qual estamos necessariamente. Ser português não vem condicionar o homem, como se tivéssemos que nos libertar disso para ser “livres”. Ser português é a forma geral do barco da nossa alma e temos de a conhecer para saber se podemos navegar à bolina ou se o mastro quebra com ventos contrários. Conhecendo a forma que somos, podemos iniciar a viagem para o Absoluto; se nos ignorarmos, estamos apenas a fingir que navegamos. Somos humanos, não somos anjos; nascemos numa terra que tem certas qualidades; somos filhos destes pais e não daqueles; temos um determinado traço de carácter e não outro. Quem se der ao trabalho de ler o capítulo “Autognose” d’A Razão Animada, logo verá que Álvaro Ribeiro coloca aí apenas o início. De resto, se Álvaro Ribeiro fosse espanhol e não português, teria sido patriota por Espanha, por saber que o nosso mundo é heterogéneo.
Portugal, para Álvaro Ribeiro é esse cais de embarque a que não podemos fugir, porque é o nosso; não podemos fugir, nem fingir que estamos já para lá das condições qualitativas, heterogéneas, em que vivemos. Pelo contrário, Álvaro Ribeiro sempre insistiu que temos de partir delas, aperfeiçoá-las pela prática da oração incessante e da virtude. Por esta razão, se não podemos negar a terra onde nascemos, também não podemos ficar presos a ela. Não é à toa que Álvaro Ribeiro dá como ponto essencial do universo o movimento; como o universo, também as almas se devem mover em movimento perpétuo.
Um ponto final muito importante, para a compreensão do seu pensamento, é que Álvaro Ribeiro sabe que este mundo é para se levar a sério; quer dizer, se é certo que há qualquer coisa de onírico no meio de tudo isto, as almas, no entanto, são reais (!) e a sua obra, como a de Agostinho da Silva, de resto, é toda a pensar que o que se faz aqui é consequente; não estamos cá apenas para nos libertarmos, mas para criarmos, para sermos dignos da teofania simultaneamente maravilhosa e terrível que nos envolve e penetra. Não podemos fingir que somos orientais se, na verdade, formos ocidentais.
Há outro Álvaro Ribeiro para lá deste que nos aparece à superfície.
Quem melhor compreendeu o ponto da montanha em que se situa Álvaro Ribeiro foi António Telmo nestas palavras de 1989 (!):
“Prudentemente começa a Universidade a ensinar José Marinho e Leonardo Coimbra, Sampaio Bruno e Antero de Quental. Só Álvaro Ribeiro não é mencionado, a não ser para pôr sobre os seus livros o sacer esto [pelo qual se repelia um indivíduo de uma comunidade] dos mistérios romanos.” (Filosofia e Kabbalah, p. 99)

6 comentários:

  1. Nos dias que correm, fico sempre com um sentimento ambíguo quando algo me surpreende de modo negativo. Digo isto porque é tal o estado das coisas que penso sempre já ter visto todo o mal. Sei que tal é uma impossibilidade, mas é esse o sentimento.

    Fiquei chocado com o que li no blogue da Nova Águia, e por muitas razões. Aliás, já não é a primeira vez que tal acontece. Há muitos nomes para honrar associados à Nova Águia, e é preciso que alguém honrado e corajoso faça algo para que termine o lamentável espectáculo que por lá se assiste.

    Esta mensagem fica anónima para que a ênfase seja dada à mesma e não ao autor.

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  2. Os umbigos da nação, versão caldo verde sem o imprescindível chouriço, nunda deram rumo, ou porque estão muito lá embaixo, ou porque é uma digestão que não nutre o espírto...

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  3. P. S. Traz-me boas recordações esse final de década em que tive pela primeira vez o «Filosofia e Kabbalah» nas minhas mãos, belos tempos, bela década; tudo parecia harmonioso no Grupo da Filosofia Portuguesa, e os mais jovens honravam-na, mesmo se passados alguns excessos, como o de querer que Agostinho da Silva se candidatasse às Presidenciais como Alferes da Pátria... Sentíamo-nos vivos.

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  4. Caro Pedro Sinde,

    Só venho aqui porque me chamaram a atenção para o seu comentário ao meu comentário. É claro que Álvaro Ribeiro foi muito mais do que um patriota, mas não foi isso que optou por destacar publicamente e é perante isso, e os seus efeitos, que me posiciono criticamente. A meu ver, voluntariamente ou não, e decerto mais por incapacidade dos discípulos, o magistério alvarino não resultou plenamente, pois, em vez de libertar os espíritos de preconceitos judicativos, gerou em muitas mentes um maniqueísmo grosseiro contra os maus, os inimigos – os estrangeiros e sobretudo os estrangeirados, para já não falar dos universitários - , e um lusocentrismo arrogante, reduzindo em boa parte o filosofar a uma hermenêutica da (sua) cultura e a um belicismo doutrinal. Digamos que, por erro de estratégia do mestre ou por defeito dos discípulos ou por ambas as razões, o “Problema da Filosofia Portuguesa” prevaleceu sobre “A Razão Animada”.

    O que me diz mostra que aceita incriticamente alguns lugares-comuns da dita “filosofia portuguesa” – a de Álvaro ou dos alvarinos - , sendo incapaz de compreender que as pátrias, as nações e suas culturas não são mediações necessárias para todos, sobretudo para aqueles que reconhecem haver algo em si que não é nem nunca foi humano e à luz do qual se revela bem irreal e ilusório muito do que temos por mais substancialmente real, incluindo o ser-se oriental, ocidental ou o quer que seja. Ou seja, incapaz de compreender sequer o que ensina - além de todas as grandes tradições - outra vertente da mesma filosofia portuguesa, a que vem de Prisciliano e floresce em Antero, Bruno, Pascoaes, Pessoa e Agostinho da Silva. E que, para um leitor mais atento, se pode encontrar também em Álvaro Ribeiro, nomeadamente nas considerações veladas sobre a “nudez essencial” (p.43) e a “liberdade mais pura” e “essencial” (p.46), na 1ª edição de “A Razão Animada”.

    Álvaro terá ou não tido as suas razões para não enfatizar publicamente este aspecto da sua doutrina, mas isso não pode considerar-se fora de uma estratégia circunstancial, relativa ao seu tempo e ao jogo de forças de então, também de natureza política. Querer continuar hoje nessa linha é a meu ver completamente anacrónico e só pode resultar em manter a filosofia portuguesa nas catacumbas que referi no meu comentário.

    Em vez de se reduzir a experiência radical do filosofar a apologias doutrinais e patrióticas, a hermenêutica cultural ou a ideologia política exorto a que, se querem ver florescer a filosofia portuguesa, dentro e fora de fronteiras, pensem firmamental e fundamentalmente o ser, a verdade, a existência e a vida, pensem radicalmente as grandes questões da humanidade contemporânea, em diálogo não só com a própria cultura, mas com todas. Isso é ser Português, “homem de todo o mundo”, no dizer de Vieira, tão bem retomado por Pessoa e Agostinho da Silva. O resto, lamento repetir, é provincianismo. Que de facto não pode ser acolhido, senão criticamente, pela Universidade, que tem como vocação abrir as mentes ao Universal.

    E, se me permitem, cuidado com certos apoios e aplausos. Matam tudo em que tocam.

    Cordialmente

    Paulo Borges

    P.S. – Parabéns pelo nome e estética da vossa revista.

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  5. Esqueci, obviamente, de incluir José Marinho e Eudoro de Sousa na galeria de autores que referi.

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