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sábado, 1 de agosto de 2009

FANTASIAS GRÁTIS E IMAGINAÇÃO À VENDA, 5*

Carlos Aurélio


(conclusão)
Coca-Cola sempre houve desde que há mundo publicitário e desde que trocaram o Menino Jesus pelo Pai Natal, esse velho negociante enchumaçado a branco e vermelho, capaz de vender refrigerantes de Verão no auge do Inverno. Foi todavia na década de 80 e após guerra fratricida com a Pepsi que a marca ganharia domínio global. Culminou na queda do Muro em Berlim o qual, diga-se, levou para leste o devaneio capitalista e trouxe, em troca, o marxismo ideológico para as elites dominantes a ocidente. Quando um muro cai tudo se aplaina em ambos os lados. Nestes anos 80 dominava um “espírito” Coca-Cola na atmosfera do mundo, a fantasia global coincidia com as imagens publicitárias de jovens a saltarem e a correrem no areal ardente das praias, engalfinhados atrás de risinhos supostamente felizes e sensuais. Uma geração rica, rasca e optimista, desinibida, muito fresca, “muito Coca-Cola”! O sonho imaginário do planeta cabia inteiro num cartaz saído de um frigorífico, gotinhas refrescantes agarradas à pele dos corpos e dos copos, as latinhas e as garrafas a dessedentarem a humanidade sedenta de consumo. Abriam-se as portas do paraíso, automáticas e livres à entrada de cada hipermercado, tudo saboreado a crédito e a dinheiro de plástico; ao mesmo tempo era o surf e a ginástica aeróbica, tudo à superfície e à tona da vida; eram os yuppies fanatizados em dinheiro e Bolsas, os desportos radicais para quem já não sabe que as raízes precisam de substrato vital; depois foi a sida, aterradora e terrível, a lembrar que há sempre a escuridão de um túnel no fim da estrada sensitiva e sombria em que transformámos a vida. «Ceci tuera cela» ─ sic transit gloria mundi.
Quando o ocidente americanizado entrou na década de 90, já estava quarentão sem ter amadurecido, grisalho sem perceber as coisas simples, desperdiçado, mimado, sem a descoberta genuína de uma nova puerícia capaz de rejuvenescer. Bastaria ter sentido o poder magnífico de uma brisa no rosto, a candura do sol, a fraternidade a sério.

Mas não foi assim. Veio o estilo de vida Benetton nos anos ’90, pleno no seu falso furor das cores lindas e outonais apropriadas a cinquentões nostálgicos, uns porque viveram o Maio de 68, outros porque adorariam ter isso no curriculum. Fomos invadidos pelo “politicamente correcto”, sentimental e voluntarista, utópico e estúpido na medida em que as utopias desviam da verdade existencial susceptível de evolução. Bem diz o aforismo que o óptimo é inimigo do bom. A estética Benetton montou-se à garupa das imagens do cordeiro inocente a dar marradinhas fraternais no lobo negro, outrora carnívoro, nos cartazes do padre, a preto, a beijar a freira de branco, nos três corações de músculo e sangue em três cores que anulam raças, nos beijos gays e no ruído da música techno, tudo em exibições de rua como se fossem feras dentro de jaulas em passeio contraditório no meio da selva mental. Tudo muito estridente no conteúdo, muito melífluo na forma, tudo Benetton, naquelas imagens da farda militar ensanguentada em realismo trazido da Bósnia, no homem, qual “Cristo”, agonizante entre lágrimas genuínas da sua família, num calvário que afinal serve para vender roupas com as cores da sida e da morte. A multidão aí vai como rebanho à tosquia, conduzida por “bons” sentimentos sociais, enfim… estamos no mundo das united colors of money!

A estética Benetton é a ditadura lamecha e sentimental do mundo exibicionista que proíbe a intimidade e impede, portanto, o verdadeiro amor, que é sempre subtil e íntimo para ser alto e fundo. Trata-se de uma vulgar estesia para sexo em massa, voyeurismo em que uma pocilga humana na TV pode descer a palco de Big Brother, em que esgares faciais fingem harmonia musical pelo Karaoke, em que o strip tease no masculino estupidifica o que resta de feminino, uma estética que anuncia e promove a era sem os dois géneros, donde, o fim da faísca criadora da arte entre os sexos, incluindo a progenitura. O estilo Benetton marca o fim dos últimos mitos humanos: o do amor, o da família, o do espírito. A estupidez geral gosta de traduzir os Mitos primordiais por mentiras para fazer passar essa abjecção de tornar o mundo como mera consequência social, fazer dele um espectáculo da multidão onde reine a clonagem sentimental, de almas parecidas e iguais, que é a malvadez suprema da fantasmagoria sensitiva no ataque à imaginação animada. Até aqui, os Mistérios e Mitos primordiais do mundo ainda se projectavam em Ritos religiosos capazes da mediação entre visível e invisível, e os Ritos em imagens de alma sublimavam a imaginação criadora ao alcance dos homens.

A Coca-Cola fez tudo “jovem”, para depois a Benetton moldar essa juventude de tipo “novo” na uniformidade em absoluto, tudo sem fronteiras de categorias de pensamento, sem distinção de conceitos. Ficámos no limiar da estupidez generalizada do relativismo, num mundo sem cores distintas de pensamento, tudo muito Benetton neste daltonismo que igualiza o substancialmente diferente.

Por fim, o ano do milénio trouxe a estética CSI, sim, essa dos filmes servidos em cores fluorescentes a néon, em luz fria de contra-picado que exala das autópsias e da exactidão científica, como se a vida fosse ela própria passível de ser fixada numa Crime Scene Investigation. Tudo agora é artifício puro, imagem virtual, seres abjectos em silicone sofisticado e vestidos a negro, cravejados a poros e a pêlos em alta definição de TV digital, tudo na ressaca estética do hiper-realismo americano, como se o mundo fosse um museu de cera gigantesco a derreter sob os holofotes do satanismo. Agora sim, triunfa a new age e a espiritualidade mórbida vendida pela internet em CD’s, estamos já no lado de lá desse “sobrenatural” que tanto odeia e vampiriza a natureza, nas tatuagens e nos piercings que fazem falar os corpos porque as almas já estão mudas, ou tão só, narcotizadas pelo odor subterrâneo. Chegámos ao grau zero da humanização, a um passo da evolução invertida que, pelo darwinismo, nos fará símios através do mimetismo generalizado das imagens planetárias.

Como nos afastámos de Victor Hugo e do seu romance, a Nossa Senhora de Paris! A bossa da corcunda de Quasímodo foi-se-nos passando das costas para o peito e por aí nos puxaram a alma. Sem espírito capaz de liberdade nada somos, sem palavras seremos pedras, mas pedras inertes e mudas como não são as da catedral gótica que se levanta em Paris. Ou então, pior ainda, abriremos a boca para nos saírem apenas sons metálicos, repetidos e clonados, enquanto gesticulamos fingindo que somos gente. «Ceci a tué cela» ─ isto matou aquilo, as imagens virtuais silenciaram as verdadeiras palavras humanas e agora, talvez estejamos a um passo de nos tornarmos tão só desenhos animados.

E no entanto, ao lado e na penumbra de tudo isto, o espírito vivo do amor que verdadeiramente tudo move assiste-nos e penetra-nos. Só ele é, desde as raízes das ervinhas, desde o alto das estrelas. E só ele será.

Maio de 2009

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* artigo originalmente publicado na edição de 1 de Julho de 2009 do Diário do Minho.


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