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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 31

António Carlos Carvalho

Quando, há uma semana, li a notícia da morte daquele que foi o último chefe da inssurreição no ghetto de Varsóvia, lembrei-me do autor que escreveu sobre ele uma página admirável – o escritor italiano Erri De Luca.
Por coincidência, foram entretanto publicados mais dois títulos deste autor: «O dia antes da felicidade» (Bertrand) e «Caroço de azeitona» (Assírio & Alvim). O primeiro, um romance, é de algum modo a continuação de «Montedidio» (Âmbar), ou seja, a narrativa da infância e da adolescência de um menino em Nápoles, a cidade natal do escritor, e a descoberta dos livros e da sabedoria da vida; o segundo, é uma recolha de textos sobre temas bíblicos, escritos por um homem que não é crente nem religioso, segundo diz, mas que nos espantam pelo respeito e até mesmo pela fidelidade que o autor demonstra escrevendo-os assim.
(E eu, escrevendo isto, faço-o de propósito no dia em que o último romance do Nobel português recebe honras antecipadas – para salientar a abismal diferença entre o coração aberto de um Erri De Luca e o rancor disfarçado de sarcasmo de um Saramago).
Em 2003, quando foi lançada a edição portuguesa de «Montedidio», Erri De Luca veio a Lisboa e eu tive a oportunidade (o prazer e a honra) de o entrevistar no Instituto Italiano. Conhecia as obras dele porque a antiga proprietária da Livraria Francesa, Béatrice Montamat, me chamou a atenção, no final dos anos 90, para os livros desse escritor italiano, para mim até então um completo desconhecido.
Fiquei logo apanhado, sobretudo pelas reflexões que ele fazia sobre temas bíblicos.
Convém referir que este napolitano nascido em 1950, depois de se ter envolvido em movimentos políticos na sua juventude, foi operário, trabalhou na construção civil em vários países. Um dia, decidiu aprender hebraico para ler e entender melhor a Bíblia. A partir daí, levantava-se todos os dias uma hora mais cedo para ler e traduzir mais uma passagem bíblica , que levava consigo, na memória, para o estaleiro das obras -- continua a fazer o mesmo ainda hoje, que já não é operário.

Erri De Luca

Quando fiquei frente a frente com ele, numa sala do Instituto, vi que tinha diante de mim um homem alto, de olhos azuis, seco de carnes – e mãos calejadas. As mãos do operário e do escritor. E as mãos do motorista de camiões de ajuda humanitária, durante cinco anos, na Bósnia, em plena guerra na ex-Jugoslávia.
Falámos dos livros dele, de «Montedidio», claro, mas sobretudo dos interesses que tínhamos em comum. Saí dali francamente impressionado. É tão raro ver um Homem por detrás do escritor. Um Homem solitário, sim – vive sozinho numa casa nos arredores de Roma que ele próprio reconstruiu --, mas também solidário. Com os outros e com a letra das Escrituras que lê, traduz e estuda.
Um Homem capaz de escrever:
«O hebraico das Santas Escrituras possui um magro vocabulário, pouco mais de cinco mil palavras. Essa pobreza contém uma intensidade de sentido que se perde muitas vezes nas traduções, quando um único verbo hebraico é deslocado em diversos sinónimos, traduzido com sentidos diferentes. Os verbos do trabalho e da guarda da terra, *avad* e *shamar*, são os mesmos, terrivelmente os mesmos, que os do serviço devido a Deus. Para esta escritura antiga, trabalhar a terra e servi-la são a mesmo palavra, a mesma solicitude devida ao serviço sagrado. (...) O hebraico antigo insiste em deixar juntos céu e terra, sagrado e solo, por intermédio de um verbo que os contém aos dois. A terra é confiada como escritura transmitida. Transmite-se alimento e sacramento com o mesmo verbo (...) Nós instalámo-nos bem longe desta escritura. Não voltaremos jamais ao solo com verbos semelhantes aos que são devidos a Deus. Dissociámos *avad* e *shamar*, servir e guardar, para podermos explorar a terra sem pensarmos na nossa condição de pulgas parasitas do planeta, mas tornando-nos senhores dele. O que foi certamente eficaz para os negócios mas, se tentarmos saber em que ponto nos distanciámos do sentimento sagrado de habitantes de um solo, é necessário regressarmos aos dois verbos hebraicos e sentir o golpe seco pelo qual separámos o céu da terra.»
«Ler as Santas Escrituras é obedecer a uma prioridade da escuta. Inauguro os meus despertares com um punhado de versículos e o curso da jornada toma assim o seu fio inicial. Posso em seguida deslizar o resto do tempo de acordo com as futilidades das minhas ocupações. Entretanto, retive para mim uma parte de palavras duras, um caroço de azeitona para virar e revirar na minha boca.»
«(...) Na linhagem dos seus antepassados havia uma progenitora cananeia, Tamar, e uma moabita, Ruth, porque o Messias é um mestiço e não um puro-sangue. (...) Se ele nascesse hoje, estaria num barco de imigrados (...) Depois dele, mais ninguém é residente, somos todos hóspedes à espera de visto. Nós, os bem alimentados do Ocidente, somos a coluna de estrangeiros em fila diante do último guichet.»
«Enquanto, a cada dia que passa, eu puder ficar debruçado nem que seja sobre uma única linha destas Escrituras, não consigo desfazer-me da surpresa de estar vivo.»
Além dos livros referidos de Erri De Luca, em Portugal estão ainda publicados «Três Cavalos» (Âmbar) e «Em Nome da Mãe» (Quetzal).
Resta-me a esperança de que os editores, e sobretudo os leitores, percebam que estamos perante um dos escritores mais importantes da nossa época – mesmo sem Nobel, ou talvez por isso mesmo.
Quanto a mim, agradeço a Deus o privilégio de ser seu contemporâneo e de um dia, ainda que fugazmente, o ter olhado nos olhos e visto um Homem sério e humilde.

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