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quarta-feira, 16 de junho de 2010

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 2

O Boosco Deleytoso
(Uma aproximação ao seu estudo)

Elísio Gala


(...)
O Boosco Deleytoso e a Filosofia Portuguesa
A pátria é uma entidade espiritual cuja manifestação se dá respectivamente: numa filosofia da história moldada por uma causa final; numa filosofia do direito que pela reflexão das relações dos homens entre si e destes com o sagrado propõe o modelo de Justiça; numa filosofia da arte mediadora da relação do Homem com o Cosmos.
Uma pátria sendo o conjunto das gerações – as passadas, as presentes, as futuras – afirma a sua autonomia pelo único modo perdurável de o fazer: pelo primado da filosofia, pela liberdade de pensamento, por pensar Deus acima de tudo, posto que não haja subsistente filosofia sem teologia. Definida assim a Pátria, resta-nos saber se acaso ainda existimos como tal? Ou, formulando a questão de outro modo, ainda existe o povo português, o que se caracteriza pela propriedade do seu pensamento? É que um povo, sem o pensar do seu ser dificilmente poderá dilucidar as condições do seu existir.
Falar de Filosofia Portuguesa poderá nas actuais condições ter os seguintes sentidos: o que nunca existiu (posto que nunca tenhamos tido autonomia pensante); o que já deixou de existir (posto que tenhamos tido autonomia pensante, entretanto perdida); o que existirá (posto que se criem as condições para o exercício e o amor de um autónomo pensar).
Nos nossos dias, assistimos a uma conspiração de dissolução que atinge o homem no seu íntimo, extraindo-o ou distraindo-o de si mesmo, obstaculizando-lhe qualquer vida interior pelas tentaculares solicitações anuladoras de um espaço, tempo e silêncio próprios. Onde fica o sagrado «conhece-te a ti mesmo»? Urge que o Homem se reaproprie, se reconquiste, do interior para o exterior. Contudo, os dissolventes, os obstáculos, as solicitações, atiram o Homem para fora de si: seja para o mais evidente plano da produção e, portanto, da realização do indivíduo no campo do que lhe é exterior (falamos, por exemplo, do trabalho); seja para a subjectiva introspecção, mera espuma das ondas do alto mar que é o Homem, ou, numa linguagem recebida do Boosco, estreito caminho, tão distante do tálamo nupcial.
Podemos enquadrar o Boosco Deleytoso no horizonte da Filosofia Portuguesa? No Boosco há uma crítica implícita ao espírito de sistema, que o mesmo é dizer que o «conhece-te a ti mesmo» próprio da filosofia quer e não quer o espírito sistemático; a Sabedoria é entendida como unidade de saberes e não como uma soma de saberes; o peregrino sente as dores do caminho nos pés, imagem de uma filosofia que é descalça por contacto directo com a realidade. Há no Boosco lirismo e sentido de metafísica, se entendermos por isso que há mais mundo, universo e futuro; há consciência do enigma de que o norte filosófico é o divino oriente pelo qual todos os pontos cardeais são abrangidos; há tensão saudosa; há pensamento filosófico não esgotado em sistema, mas recriado em arte poética; há a revelação tomada como uma viagem e o homem como uma ponte; há a missionologia do testemunho, que mais do que converter pretender dar exemplo; há a altíssima relação da Justiça com a Misericórdia; há o elogio do ócio, essa disponibilidade do espírito, que fora das obrigações, manda que nos preparemos para novas obrigações, entre as quais a Paz, que depende da Justiça, tanto quanto esta depende da Verdade. Tudo isto é Boosco Deleytoso.
O atingimento da Sabedoria, crêmo-lo, e crêmo-lo para melhor o inteligir, dar-se-á com a união da alma do homem ocidental com a alma do homem oriental. Está por fazer a descoberta do novo caminho marítimo para a Índia, essa “Índia nova, que não existe no espaço», em busca de especiarias e incensos supraterrestres. Há que ouvir por isso, os poetas, os amantes, os homens saudosos, os profetas.
O Boosco é Filosofia Portuguesa. Mas ela é mais que o Boosco, é o Mar. Também ele deleitoso e da boa esperança, mas só após o vencimento das tormentas.
Muitos dirão que a Filosofia Portuguesa não tem muito nem pouco de próprio. Serão peremptórios: nada tem de próprio. Diremos: – Óptimo! Está então em condições de realizar o milagre da partilha. Como assim? É que na partilha, não se trata de quem tem muito dar muito, ou de quem tem pouco dar pouco, mas de quem nada tem dar tudo o que é, a sua altíssima pobreza, feita de despojamento. Esse é o carisma da Filosofia Portuguesa. Esse é o modelo do Boosco Deleytoso.

1 comentário:

  1. Sobre este último ponto, isto é, quanto aos que abnegadamente têm estado ao serviço da Filosofia Portuguesa (segundo as suas capacidades e sensibilidades próprias) há que recordar o seguinte: Agostinho da Silva dizia várias vezes «ai de alguns pobres se fossem ricos!» De facto assim é, pois se há pobreza que assola muitos milhões de pessoas e lhes pesa no seu dia-a-dia, não deixa contudo de ser a pobreza compulsiva que há nos mistérios da vida, tal como a sua “irmã”, a riqueza, material já se vê. Daquela pobreza nos fala Agostinho. Mas outra existe, como é sabido: a do despojamento (da qual o citado mestre é bom exemplo) e à qual poucos seres humanos ainda pertencem. Num país de tanta pobreza material como é o nosso, há poucos pobres do despojamento. Há contudo um "albergue" onde felizmente encontramos muitos, que é nos que rondam o grupo da Filosofia Portuguesa, no círculo mais interno, seja no mais externo -. Por isso (pois parece que ninguém quer ser pobre, seja de que maneira for!), a grande coluna de intelectuais e alguns pensadores portugueses querem ser ricos, pois, caso contrário, deixariam de ter as regalias que o actual sistema, democraticamente, confere a quem o alimenta de benigna tolerância.

    Eduardo Aroso

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