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sábado, 4 de junho de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 20















Cristianismo e Paganismo

Alexandra Pinto Rebelo

Nos primeiros tempos de cristianismo, o império romano assistiu a um conflito crescente entre a nova religião e as outras praticadas um pouco por toda a parte. A nova religião tomava para si o estatuto de ser a única verdadeira, tal como tinha acontecido antes com o judaísmo. Mas, se o judaísmo tinha conseguido manter-se como uma reserva religiosa, sem pretensões de se impôr fortemente fosse a quem fosse, o cristianismo tentava aquilo que parecia impossível: aniquilar o pensamento pagão fazendo aquilo que pensava ser uma prova constante da sua falácia.

Para os pagãos, o cristianismo, era uma visão a um tempo nova e abominável do mundo. Essas primeiras tentativas de evangelizar, eram semelhantes a um terrorismo religioso a que o mundo nunca tinha assistido. Era absurdo uma religião assumir-se como a única verdadeira, tomando todas as outras como falsas, acusando-as publicamente dessa falsidade. Para um pagão, a questão da verdade religiosa não se colocava. Todas as religiões eram verdadeiras, bastando-lhes para isso existir. Só os crentes poderiam avaliar os bons resultados da sua própria religião.

Os cristãos primitivos, à semelhança do que fazem hoje as Testemunhas de Jeová, levavam a Boa Nova aos lares romanos. Conhecemos o seu modo de operar através de vários relatos de romanos desesperados. Os cristãos esperavam que o dono da casa saísse para os seus afazeres, e então batiam à porta. Falavam com as mulheres romanas, com os seus filhos menores, com os escravos. Quando eram escutados, faziam com que a paz do lar fosse corrompida para sempre. Vários romanos proibiram que os seus abrissem a porta ou falassem com tais seres instigadores da desordem familiar.

Este conflito entre dois mundos tão distintos, não terminava entre os devotos de uma ou outra religião. Existia igualmente entre os cristãos recentemente convertidos ao cristianismo. Refiro-me, também, aos seus conflitos interiores, sendo por um lado cristão devotos e, por outro, seres humanos oriundos de uma cultura pagã. É que, por mais que a sua comunidade os apoiasse no seu caminho exclusivista, essa via impunha-lhes pôr de parte todos os dados culturais com os quais se tinham norteado até aí. Se algumas coisas eram relativamente fáceis, como o não adorar imagens, ou entrar em templos pagãos, outras eram por demais difíceis como, por exemplo, pôr de parte Homero, Platão, Cícero e toda uma cultura literária que sabiam ser excepcional.

Jerónimo dá-nos um testemunho de tal conflito. Sendo cristão, sabia que não podia haver nada de certo na literatura antiga. No entanto, os textos cristãos eram bem inferiores, em termos literários, aos escritos da literatura que ele tinha como obrigação de colocar de parte. Quando não resistia e pegava em Cícero ou Plauto, jejuava por penitência, chorando entre parágrafos, por se sentir completamente dividido. O seu sentimento de culpa cresceu de tal forma que Jerónima adoeceu, tomado por uma febre que lhe ia tirando a vida. O mesmo Jerónimo nos conta que, num sonho em delírio, sentiu-se invadido em êxtase e transportado diante do tribunal do juiz. Tendo sido interrogado sobre a sua profissão de fé, respondeu ser cristão ao que o juiz, severo, respondeu: “Mentes, tu és de Cícero e não cristão: onde está o teu tesouro, está também o teu coração.”*

In Rougier, Louis, O conflito entre o cristianismo primitivo e a civilização antiga, Lisboa, Vega, 1995

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