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terça-feira, 24 de maio de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 133










O Império com pés de ouro

Cynthia Guimarães Taveira

Não se trata de salvar o mundo, trata-se, tão somente, de tentar reflectir com o coração para fazer as coisas bem.


Todos os Impérios político-económicos caíram. Apercebendo-se disso, Fernando Pessoa criou a ideia de um novo Império: o Império cultural. Nada que os Estados Unidos da América não tenham percebido logo no início do século XX. O que os EUA fizeram, e continuam a fazer, foi exportar um modo de vida, por via da indústria cinematográfica, para a Europa e para todos os continentes predispostos a serem evangelizados por ideias maniqueístas com laivos de comédias musicais românticas e autocrítica suficiente para sossegar qualquer tentativa de rebelião face à cultura evangelizadora: westerns e policiais para o jogo maniqueísta entre o bem e o mal, comédias românticas para o jogo dos afectos, filmes politicamente incorrectos com a crítica, quanto baste, ao estilo de vida e vícios americanos, para o jogo político que é necessário manter a qualquer custo. As empresas americanas entraram na Europa por via da cultura. A globalização foi a consequência desse Império político-económico com as roupagens do "american way of life".

Cá em Portugal alguns espíritos ainda com ideias medievais, coloridas por pinceladas milenaristas e uma fé transversal aos tempos, fazem subsistir, ainda hoje, a esperança, não num Império cultural, mas num Império do Espírito Santo. O caminho para se chegar a esse império só pode ser feito por via cultural, sem o factor “Império político-económico” como motor de arranque, porque esse factor, quando isolado, como todos sabemos, está condenado ao desaparecimento.

A ideia de Império é uma ideia natural, mas a sua origem é, bem lá no fundo, religiosa. Por dois motivos: a Criação é uma espécie de expansão, o resultado de um excesso, de um extravasar de qualquer coisa, seja do amor, seja da vida. A origem da vida é naturalmente Imperial: ela surge de algo que “tem a mais” para preencher algo que está vazio. As mulheres conhecem naturalmente esta dialéctica que está no seu próprio ventre e os homens conhecem também esse “excesso” nas sementes fecundantes que guardam: neste sentido, a criação e a criatividade existentes na natureza e na natureza humana são tão somente espelhos da grande Criação divina. Não vale a pena negar a Ideia de Império, pois ela é a génese de tudo: naturalmente há um big bang, toda a semente contém o Império da planta, toda a cria contém o Império do seu ser adulto.

Sabendo de antemão o poder dado pela cultura, dizia há pouco que a América, de uma maneira inteligente, usou e abusou desse poder, mas os propósitos estavam mais uma vez errados, pois os poderes materialistas como causa principal e final não possuem nem qualidade nem tempo de vida eternos. A Europa foi desmemoriada pela América da sua própria cultura e as grandes marcas tornaram-se o sonho europeu de globalização. Mas há um pequeno problema de fronteiras e de diversidade numa Europa que, como diz uma amiga minha, é apenas uma convenção: onde começa e acaba a Europa? Será que a Europa como todo cultural existe? O problema da Europa é que esta não era uma América povoada por alguns índios. Era um território povoado por uma variedade de culturas, por uma variedade de fronteiras, até mesmo naturais, que custaram muitas guerras e muitas vidas nas tentativas de decisão das identidades. A América fez-se a si própria, é um “self made country”, a Europa descobre-se a si própria, como se esta fosse constituída por inúmeros arquétipos sociais, culturais e religiosos. A descoberta pressupõe uma origem, a construção pressupõe uma conclusão.

A falta de jeito europeia para se constituir como potência político- económica reside no facto de ter cultura e diversidade a mais: há uma intuição europeia daquilo que constituí o verdadeiro Império - ele só pode ser cultural, caminhando para o espiritual. Nunca poderá ser apenas político nem económico devido à diversidade de culturas. No entanto, a economia e a política fazem parte da cultura, sem dúvida, mas são apenas elementos dela e, como elementos que são, deveriam ser tratados como especificidades.

No tempo de D. Dinis foram criadas as cortes itinerantes: a resposta mais inteligente ao problema da diversidade - a corte deixou de estar no singular para estar no plural. Não deixando de ser una, tornou-se em simultâneo múltipla pela sabedoria da especificidade de cada região.

Estes novos movimentos de cidadãos jovens, e não só, que acampam nas Portas do Sol à espera de um contrato de trabalho, estão agora com uma intuição parecida. Visam criar grupos de cidadãos que possam intervir de forma directa nas decisões políticas. A neutra Suiça (às vezes tão neutra que se torna entediante ou mesmo exasperante) já experimentou a democracia directa: a sua geografia permitiu a existência desta forma de poder; os cantões governavam-se pelos votos, acordos e desacordos dos seus próprios cidadãos.

A louca tentativa da Europa de abolir fronteiras e de aceitar a globalização como o melhor dos mundos, assim de chofre, pode, pela falta de conhecimento das suas origens, originar os nacionalismos, os fascismos, as ditaduras. É a resposta natural ao sufoco de um Império cultural, político e económico cujo modelo é americano e o desejo imperial continua a resistir e a residir nas grandes potências económicas europeias: a Espanha (que não sendo uma grande potência contém em si esse germe imperial político e económico), a Inglaterra, a França, a Alemanha e o já muito adormecido germe holandês, adormecido por via de uma prática de abertura ao outro, ao estrangeiro, bem como à lição retirada da Segunda Guerra Mundial.

O desejo Imperial é legitimo porque é natural. No caso humano é um desejo natural que caminha para o sobrenatural. No entanto, ele só se cumprirá quando forem respeitadas as fronteiras culturais: respeitadas e desenvolvidas, sem que estas se fechem sobre si próprias e assim estagnem, mas que estejam abertas às outras sem, no entanto, se diluírem nelas pelo factor desesperante da política e da economia. A globalização é diabólica, porque, sob o manto da beatitude do conforto tecnológico, mata este impulso natural de regressar a um tempo perdido. O mito do eterno retorno está sempre presente, pois, como bem observou Mircea Eliade, basta haver o sol e a lua para que os ciclos estejam presentes no imaginário humano.

A Europa sem a sua cultura e sem a sua diversidade é frágil, porque não tem alma. A Europa que põe os interesses económicos à frente dos humanistas é insegura como o euro. A moeda é tão somente um reflexo cultural. O facto de perdermos o escudo levou-nos a perder algo que nos defendia. Curioso nome que arranjamos para a nossa moeda.

Os povos só se podem entender por vida da cultura e das trocas culturais: a economia e a política são meras consequências disso. No entanto, só podem existir trocas culturais se existirem culturas. Uma só cultura impede a troca. Já não há nada para trocar. Quando se fala em Império Cultural, fala-se de trocas, de saberes, de conhecimentos, de aprofundamentos. Fala-se de sabedoria e esta é composta pelo conhecimento do diverso e apenas por esse conhecimento se atingirá o Uno sobrenatural tão desejado. Quanto ao Espírito Santo, quando esse nos invade, ele é Uno, Igual para todos, e aí sim, assistimos ao verdadeiro Império com pés de Ouro.

1 comentário:

  1. O seu artigo está cheio, linha a linha, de pontos de interesse, a começar pelo título, pois com pés de barro são os impérios do que é material e de cobiça. A democracia actual, toda ela mais ou menos tingida do modelo americano, sobretudo nos últimos anos, suscitou uma expressão genial ao Noam Chomsky que é a seguinte: «a propaganda está para uma democracia como o cacete está para um Estado totalitário». A propaganda (democrática), que é violência de toda a espécie sobre os espíritos, opõe-se obviamente à ideia de Império do Espírito. Neste há centro e ordenação; naquela diversidade, que em si não é mau, mas pela maior ou menor ausência de espírito, diversidade fragmentária ou mesmo caótica.

    É bem certo o que diz «Não vale a pena negar a Ideia de Império, pois ela é a génese de tudo: naturalmente há um big bang, toda a semente contém o Império da planta, toda a cria contém o Império do seu ser adulto». Destaco também «A origem da vida é naturalmente Imperial: ela surge de algo que “tem a mais” para preencher algo que está vazio».

    Esta sua afirmação daria para escrever um tratado!

    Cumprimentos

    Eduardo Aroso

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