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segunda-feira, 25 de maio de 2009

DA URBE E DO BURGO, 1

Pensadores portuenses

"Por «pensadores portuenses» não devemos entender somente os que nasceram neste velho burgo, mas também aqueles que, pelo espírito, se tornaram filhos espirituais adoptivos deste meio singularmente antinómico, terrenal e sideral, mercantil e lunar, pesado e levitante.

Entre outros filhos adoptivos há que incluir, por exemplo, Antero, Amorim Viana, Pascoais, Leonardo – quatro vultos do nosso pensamento vindos de lugares diversos, e que, em certos momentos, chegam a dar a entender que não se davam bem com o ar do burgo, a ponto de um deles (Antero) ter dito, um dia, com solenidade, que não se sentia compatível com as «terras impossíveis do Porto» e outro (Pascoais), num acesso de humor satírico, ter-lhe consagrado uma extraordinária novela, autobiográfica e sarcástica (Os Dois Jornalistas), em que define, de um modo insuperável, a atmosfera nocturna da Praça Nova, a fumaceira de tabaco e de sonho das antigas redacções dos jornais, o travo «metafísico» da velha Rua do Almada, cheia de forjas e de armazéns de ferro, o dandismo romântico e um tanto frustre do passeio das Cardosas, o sentido astral da Torre dos Clérigos que o poeta aponta, causticamente, como sendo o Porto espremido para cima

A verdade, porém, é que, com todos os seus «senãos», objecto do clássico escárnio tanto camiliano como queirosiano, o velho burgo sempre foi reconhecido como um inestimável ambiente de trabalho, não apenas transitivo, mas perene.

Um misto de burguesismo e de satanismo boémio paira na cidade inconfundível. É o ar húmido que, por um lado, endurece aqueles homens que fecham a sete chaves as suas burras, mas, em certos momentos, as abrem de par em par, para erguerem um Palácio de Cristal ou financiarem, por puro amor do risco, uma obra estupenda como foi a conclusão da via-férrea do Douro – e, por outro lado, inspira os tribunos de fulgor demosténico ou os poetas de olhos encovados e febris, profundamente religiosos, mesmo quando se dizem ou julgam servos de Satã.

Pois, – que é ser religioso?

Nas limitações do nosso espírito laico, julgamos poder responder:

Ser religioso é sentir, vivamente, que existe (ou deverá existir) uma fortíssima relação de solidariedade entre todas as formas ou expressões de ser, desde as realidades aparentemente inanimadas ou dormentes às formas mais levitadas ou anímicas: os génios, os anjos, as almas, as divindades, ou divindade.

Aqueles que pressupõem que as religiões são expressões puramente mitogónicas não consideram a verdadeira face dessa realidades; ou seja, não vêem o mais íntimo sentido do que se poderá chamar religião.

Há temperamentos que, de nascença, são constantemente atentos ao pressentimento da solidariedade universal. Outros, pelo contrário, são destituídos desse sentido.

O homem autenticamente irreligioso é o que, por idiossincrasia, se reconhece avesso ou alheado ao sentimento da incoercível força de conexão do visível com o Invisível. Por outras palavras: é aquele que admite somente a existência de um plano do ser.

Por isso é lícito dizer que todo o espírito panteísta é de raiz irreligiosa, visto que, para esse, não há senão um plano ontológico que podemos chamar simplesmente a Substância.

Entre o ser religioso e o ser irreligioso há o tipo idiossincrasicamente ambivalente ou de compromisso, normalmente de índole trágica ou dramática, que (à falta de melhor palavra) designaremos por tipo antinómico. Antero, Pascoais, Raul Brandão, foram, exemplarmente, espíritos dessa estirpe. São homens que, em regra, lutam entre o sim e o não. Ora aceitam o Possível, ora o recusam; ora crêem no Inalterável, ora reconhecem que a existência é uma espécie de voragem. São os poetas e escritores do tipo exasperado do autor do Hino à Manhã, das Sombras, dos Pobres, do Húmus. A frio, ninguém os pode ler – porque as suas obras e confissões são gritos vindos do interior sacro de uma floresta.

Os espíritos irreligiosos são naturalmente os que estão fadados a viver mais em perigo, pois cumprem o fatum separativo. (...)"

Sant’Anna Dionísio

(excerto de “Pensadores portuenses”, capítulo XXXI de Da Urbe e do Burgo, Lello, 1971, pp. 209 e ss.)

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