(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



domingo, 31 de janeiro de 2010

O CAMINHO DO CAMINHO, 13

Cynthia Guimarães Taveira




(dedicado a António Carlos Carvalho)

O equilíbrio instável
Olhava aquela sala de sua casa. Os livros empilhavam-se de uma forma curiosa. Alguns, mais pequenos em baixo, serviam de apoio a outros grandes e pesados. No meio dessas pilhas, por vezes, papeis pequenos, marcadores de livros que não marcavam naquele momento livros, apenas ali estavam repousando, separando o espaço entre dois volumes como uma respiração e muitas notas tiradas dos livros em formato reduzido. Dicionários maiores eram as cúpulas de torres de romances, ensaios e poesias, como se o propósito final fosse o verdadeiro entendimento de todas as palavras. Bastava um brisa, um toque sem querer, um suspiro e essas torres de livros cairiam por terra, espalhando-se em prosas derramadas pelo chão. Os copos de vários formatos, cores e texturas, continham lápis. Cada copo era definido com uma tonalidade: alguns reuniam os lápis roxos, outros encarnados, outros verdes, outros azuis, mas se se olhasse com atenção, cada um deles, numa espécie de equilíbrio instável, continha um lápis de uma outra família de cor, assim, no meio do roxo um ponto azul, assim no meio dele, um ponto caótico, incerto, imperfeito e por isso, um ponto de liberdade, a garantia de que esse equilíbrio, embora instável, nunca seria desfeito... Os quadros, nas paredes, eram compostos de vários estilos: barrocos ocidentais, contemplações orientais, livros rectangulares, imagens de caracteres chineses desdobrando-se em rolos e ainda uma gueixa deitada e soberana repousava acima do sofá, numa espécie de descanso para além das nuvens.
Essa sala era o reflexo vivo de quem por estes caminhos se mete. A qualquer altura um sopro menos perfeito geraria o desequilíbrio e, no entanto, para que ele existisse era necessária alguma instabilidade.
Sabia que, a qualquer momento, o despertar se tornaria num pesadelo inconsciente e que todo o excesso, por mais ínfimo que fosse, despertaria fantasmas interiores indicando o caminho da loucura. Se amava o oriente sabia que ele estaria sempre distante e que não havia apenas um, mas sim várias chinas, vários japões. Sabia que o erro, o desequilíbrio seria tornar o diverso uno por força apenas da sua vontade. E o mesmo com as letras hebraicas que continham o espírito. Sabia que nunca as conheceria todas de uma só vez, que permaneciam sempre sarças ardentes e misteriosas mas impossíveis de tocar no seu todo, e assim era com todos os seus livros, os seu estudos. A qualquer altura o "demais" tornava tudo em "de menos" e esse risco residia exclusivamente na sua alma. O "despertar" nunca era definitivo, era uma chama alimentada por uma paixão refinada a cada instante o sono espreitava por entre cada página, por entre cada voo do pensamento, por entre a rotina diária e o trabalho extra necessário.
O caminho do caminho era tão fino como uma corda por onde saltita um acrobata, e a insegurança, o tremor era afinal a garantia que tudo estava bem porque simplesmente amava e enquanto amasse, era afinal livre.

EXTRAVAGÂNCIAS, 49




31 de Janeiro de 1891
Eduardo Aroso

Oculto sol que doiras ainda
A estrada sinuosa da liberdade
A contratempo na desavinda
Dama descarnada desta idade.
Fantasma do sonho que nos exorta
Pela sombra inquietante da viagem,
E junto ao abismo nos acorda
Em nova madrugada de coragem.

Janeiro de 2010

sábado, 30 de janeiro de 2010

AO REDOR DO 31 DE JANEIRO, 6

“Noite de esperança, noite de angústia, menos caliginosa e turva do que o claro dia subsequente, ensolelhado, em demoníaco sarcasmo.
Noite entenebrecida e cruel, onde o clangor amarelo do rebate, afeiçoando-as, pôs nas almas em sobressalto a nota romanesca das catástrofes. Noite densa, noite escura, ai de nós, a noite luminosa e viva.
Noite de sonho, noite de anelo, em que pelo ar perpassou a cândida imagem da liberdade e fulgurou, crepitante, o clarão sagrado do futuro. Noite de pesadelo, noite de agonia, em que rangeram os ferrolhos das prisões, ávidas da pitança, e o anjo-da-guarda da pátria, soluçando, escondeu o rosto, na dor, desesperada e alucinante, da derrota.
O anjo-da-guarda da pátria! Da pátria? Sem ela não podemos subsistir, na verdade. Mas será esta bem a nossa?
Assim como se não pode viver sem pão, diz o poeta que também se não pode viver sem pátria.
Porém entendamo-nos: – a Pátria não é uma zona qualquer onde acidentalmente nascêssemos, povoada por gente que connosco não participe ideias e sentimentos, que ria da nossa aflição e rejubile com a nossa desdita! Um homem não está preso pelo pé ao húmus como uma hortaliça, e a terra donde proveio é-lhe bem indiferente, se essa leira, dura e ingrata, nem sequer se deixa infiltrar de suas corrosivas lágrimas.
A Pátria é um princípio de solidariedade colectiva. A Pátria é uma religião. Ora, se no templo não temos ingresso, consoante no campo não sofrem que construamos a tenda, somos, evidentemente, de mais. A hostilidade moral expulsa os que escapem à intimação económica de pronto despejo. Para outros é que luz o Sol; escorraçados como leprosos infectos, mendigos morais, teremos de deitar a sacola aos ombros, volver as costas, partir.

Nós, republicanos, estamos hoje, na sociedade portuguesa legal, proximamente como nela se achavam os cristãos-novos no século XVII. Curiosa contradição, que a nossa pusilanimidade explica. Constituímos, de secção consciente, a maioria, e não temos direitos; somos provisoriamente permitidos, por tolerância e como que por caridade. Mas não falaremos, não escreveremos, não nos associaremos, sob pena de purgarmos na cadeia o delito de possuir sangue na cabeça para conceber ideias, sangue no coração para as propagandear.”

Sampaio Bruno, in O Brasil Mental, Lello & Irmão, 1898

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

PALAVRAS QUE FAZEM VER, 17

[Álvaro Ribeiro e Sampaio Bruno]

“José Pereira de Sampaio nasceu a 30 de Novembro de 1857 na cidade do Porto. Naquele tempo fundava-se em Lisboa o Curso Superior de Letras, que em 1870 seria transformado em centro de difusão do positivismo. Influenciado pelas obras dos alemães Feuerbach, Strauss e Büchner, publica Sampaio Bruno em 1874 o seu primeiro livro, intitulado Análise da Crença Cristã.
Não faltam, nos escritos do pensador portuense, elementos de autobiografia espiritual, segundo os quais poderemos reconstituir o movimento intelectual do Liceu do Porto e de outras instituições culturais da Cidade. Vinte anos de intensa doutrinação republicana, na qual Sampaio Bruno colaborara também como jornalista, tiveram por consequência o movimento militar de 31 de Janeiro de 1891. Comprometido na preparação da conjura revolucionária, o nosso compatriota teve de seguir para Paris, onde se dedicou a estudos filosóficos e religiosos.
Efectivamente, só com o livro Notas do Exílio (1892) é que Sampaio Bruno enceta a sua verdadeira carreira de escritor, em total independência perante o naturalismo, o socialismo e o ateísmo dos colaboradores das Conferências do Casino. Ao naturalismo em literatura opõe Sampaio Bruno o simbolismo, fundado no princípio da imaginação criadora; à sociologia internacional opõe a política nacional, segundo a doutrina republicana; ao ateísmo militante opõe o messianismo de A Ideia de Deus. Afastando-se de Antero de Quental, Oliveira Martins e Eça de Queirós, para acompanhar Teófilo Braga e Guerra Junqueiro, foi expondo o seu pensamento original em teologia, antropologia e cosmologia, tornando assim possível a fundação da filosofia portuguesa.
É discutível, mas inegável, a inferioridade da geração de Antero, Eça e Martins em relação à de Castilho, Garrett e Herculano. Apreciando pelos frutos as árvores que plantaram, comparando os efeitos dos escritos de uns e outros, não teremos dúvidas sobre quais artistas são mais leais a Deus, à Pátria e ao Rei. A discussão pode incidir apenas sobre questões de estilística, e se não estamos ainda suficientemente esclarecidos para considerar Castilho poeta superior a Antero, Garrett romancista superior a Eça, Herculano historiador superior a Martins, reconheceremos, todavia, que os homens da geração de 1870, se muito bem leram e muito bem escreveram, entre o ler e o escrever não se deram ao difícil trabalho de pensar.”
Álvaro Ribeiro

(excerto retirado de A Arte de Filosofar, Portugália, 1955)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

AO REDOR DO 31 DE JANEIRO, 5



“É que decididamente, havia então, há hoje só uma palavra: – República!
Hesita ainda, apesar de tudo, uma parte da nossa população letrada. E, inquieta, pergunta a si-mesmo o que seria, se em Portugal se implantasse a República.
Há pouco mo perguntaram, para que em público à pergunta respondesse.
Respondi começando por advertir que o pedido que me era feito me recordara certo incidente da história anedótica, literária e política, nossa contemporânea.
Com efeito, quando aqui há anos exerceu o seu efeito sobre a poesia portuguesa o simbolismo francês, uma das composições que apareceram e mais impressão causaram tinha o título fúnebre Quando a morte vier, e dizia os filosóficos desenganos das vaidades mundanais que no pó das sepulturas liquidam.
Logo nas colunas literárias duma folha política lisbonense se leu uma paródia a essa peça de versos, e esta paródia por título tinha: Quando a República vier, e dizia o descalabro dos egoísmos devoristas, que na igualdade democrática finalizam e concluem. Havia um ritornello típico. Era este:
Quando a República vier,
Ireis cavar pés de burro;
Ireis cavar pés de burro,
Quando a República vier.

E não teriam direito de queixumes aqueles que fossem dispensados por haverem gozado até ali do favoritismo que vive, parasitariamente, do trabalho nacional. Pois que só esses é que receio possam nutrir de que de os prejudique o advento da República. Visto como a República não é o governo dum partido nem o monopólio de tal ou tal casta de gente. A República é, pelo contrário, o governo de todos, por todos e para todos. A causa da República compreende todo o país e, no fim e ao cabo, a República é a Nação.
Se, pois, a República se implantasse em Portugal, o povo português adquiriria a consciência da soberania e ganharia as virtudes políticas que fundamentam a dignidade cívica. Ele tomar-se-ia a sério. Respeitar-se-ia, e o verdadeiro patriotismo faria pulsar os corações. Se a República se implantasse em Portugal, o progresso da civilização portuguesa seria ininterrupto e logo de início se assinalaria pelo timbre de grandíssimos avances efectuados. Se a República se implantasse em Portugal, o povo português viria novamente a contar na história do mundo, onde hoje, quando não é desprezado, passa despercebido.
Se a República se implantasse em Portugal, Portugal deixaria de ser aquele «sítio onde cinco milhões de egoísmos se exploram reciprocamente e se aborrecem em comum», consoante da definição pretérita de Eça de Queiroz. Portugal, porque reaparecesse um vínculo colectivo, voltaria a ser uma Pátria. E essa Pátria novamente se integraria na Civilização.
Consequentemente, ontem como hoje, hoje como ontem, ainda e sempre uma só palavra havia, uma só palavra há: - República!
FIM”
Sampaio Bruno, in A Dictadura, Lello & Irmão, 1909

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

SÁBADO, EM SESIMBRA E EM SETÚBAL

Começar. É já no próximo sábado, pelas 15 horas, que, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, se inicia o ciclo Portugal Renascente, com a realização do colóquio “Entre Guerra Junqueiro e Teófilo Braga” – Luís Paixão (que fará uma breve locução introdutória, alusiva ao 31 de Janeiro) Pedro Sinde e Rodrigo Sobral Cunha serão os oradores. A sessão completa-se com o lançamento do livro Cartas de Noé para Nayma, de Carlos Aurélio (Colecção Nova Águia), apresentado por Pedro Sinde, na presença do autor e de Renato Epifânio, director da Colecção Nova Águia. Esta é uma iniciativa conjunta dos Cadernos de Filosofia Extravagante e da revista Nova Águia, em parceria com a Câmara Municipal de Sesimbra.

clique na imagem para a ampliar

Ainda no dia 30, mas em Setúbal, na Casa Bocage, pelas 18h00, serão apresentados o 4.º número da revista Nova Águia e o livro A Verdadeira História de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, de Rodrigo Sobral Cunha (Colecção Nova Águia).

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 38

António Carlos Carvalho
No dia 9, quando fomos a Vila Viçosa festejar os Reis, uma das coisas mais surpreendentes dessa jornada foi o encontro que João Tavares nos proporcionou com um estranho cruzeiro ali existente: uma cruz envolvida por uma grande serpente.
Ficámos todos visivelmente impressionados com essa insólita imagem. No meu caso, por razões também pessoais: pouco tempo antes tinha sabido da notícia da morte de João Marques de Almeida, editor das Edições Acontecimento, que em 1994 me publicou um livrinho no qual tentei «exorcizar» a minha repugnância por serpentes: «As Duas Faces da Serpente».

fotografias de João Pedro Secca: clique, abaixo, na segunda imagem para a ampliar

Há quem consiga até conviver com tais bichos ou pelo menos quem os considere tão normais como um texugo ou um coelho ou outro qualquer. Não é esse o meu caso. Basta vê-los num simples documentário televisivo para ter de desviar os olhos ou mudar de canal, tal é o incómodo, o nojo, que me provocam.
E, no entanto, não posso ignorar o resto: que este lugar da Terra foi outrora chamado Ofiússa, terra das serpentes; que a serpente é um símbolo próprio da nossa «Pré-História»; que a serpente é um símbolo bíblico fundamental; que o Pessoa escreveu sobre «o caminho da serpente», identificando-a com Portugal; sobretudo que a serpente, mas alada, como um dragão, faz parte das Armas de Portugal.
Ou seja, por muito que me custe, eu tenho de lidar com ela...
E foi por pensar assim que escrevi o tal livrinho, no qual procurei salientar a sua importância para todos nós e para os portugueses em especial. Confesso que a minha repugnância não desapareceu só por cumprir tal rito de «exorcismo»...

E eis que agora, em plena Vila Viçosa, tão ligada à casa e à dinastia de Bragança, me deparei com uma enorme serpente abraçando uma cruz...
Abraçar é o termo exacto, porque a tal serpente de pedra tem mãos, e tem asas, ainda que pequenas, e até mesmo um rosto que parece humano...
Creio que tão insólita representação só se explica se tivermos em conta um facto geralmente esquecido ou até mesmo ignorado por muitos: as Armas de Portugal, na sua plenitude, incluem um timbre que é uma serpente alada, uma serpente capaz de voar, ou seja, que não só ultrapassou a condenação do eterno rastejar como adquiriu (ou readquiriu?) mãos e asas que lhe permitem erguer-se para o céu.
Estas são as Armas atribuídas a Portugal pela lenda (de fundação) de Ourique e que foram mantidas na sua totalidade, com o tal timbre, até muito tarde, tendo depois caído no esquecimento.
Há quem julgue, erradamente, que a Heráldica é coisa de nobres e de prosápia de «sangue azul», sendo portanto desprezível (e efectivamente desprezada). Mas a Heráldica, ciência auxiliar da História, é essencial para se entender muito dessa mesma História, e sobretudo fundamental para entrarmos na compreensão simbólica do brasão – representação figurada de um destino individual ou colectivo.
Lembro que até mesmo os antigos pescadores da Póvoa de Varzim tinham o seu brasão de família, com o qual marcavam os seus apetrechos de pesca e que aparecia depois nas suas pedras tumulares.
Lembro que os pedreiros medievais faziam o mesmo com as suas marcas inscritas nas pedras das construções.
Lembro também a heráldica municipal, que ainda se mantém, quanto mais não seja por costume.
Isto para sublinhar que a Heráldica diz respeito a toda a gente, mesmo aos mais republicanos (eles que me perdoem...!)
E que o estudo da simbólica da Heráldica merece a nossa atenção dedicada. No caso de Portugal, a serpente alada, com as suas referências bíblicas evidentes ao bastão-serpente de Moisés e à serpente de cobre colocada sobre uma haste, aparece em verdadeira glória na profusão das Capelas «Imperfeitas» (na verdade voluntariamente inacabadas) da Batalha, autêntico templo de uma História do Futuro, de cariz messiânico. Basta ir lá e ver, ver com olhos de ver.
No cruzeiro de Vila Viçosa, a serpente desce para a terra, ainda se arrasta pela cruz. Tem asas mas incipientes. Talvez precise ainda de descer até ao fundo para depois abrir asas maiores e finalmente voar, um dia... quando?
Creio que devíamos estabelecer um diálogo simbólico entre este cruzeiro de Vila Viçosa e as capelas da Batalha. Para então podermos decidir o que queremos, e devemos, fazer: continuar simplesmente a rastejar, como agora fazemos – ou abrirmos as asas e voarmos, cada um de nós, todos juntos, como país? O brasão, ainda que oculto, está aí. Mas a decisão é só nossa.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

AFORISMOS, 17

Eduardo Aroso

81 – Vamos pôr os pontos nos is, os únicos nos dois títulos seguintes: «O menino de sua mãe», de Fernando Pessoa, é D. Sebastião. A diferença é que no «plaino abandonado» africano, ausente de balas mas enxameado de espadas, o Rei poderia não ter a «cigarreira breve». Mas, não a tendo, havia contudo a breve cigarreira de um reinado que a Pátria lhe destinava, afinal, a cigarreira breve que a Mãe lhe dera…

82 – « … a república dos portugueses é uma daquelas comunidades, ou nações, que já existiam antes do Estado, da soberania e do próprio nacionalismo e que tinha hábitos de relação saudável com as comunidades infra-nacionais e supra-nacionais». Assim escreveu José Adelino Maltez. A isto se contrapõe a absurda ideia de regionalização em Portugal, em vias de ser lançada como mais uma epidemia.
83 – «… a Nova Águia, movida pela mesma ânsia de altura e altivez, assume a tradição futurante que mora no coração de um povo longamente humilhado». Assim escreveu o atento e sensível pensador Joaquim Domingues, no número 4 daquela publicação. Na tradição bíblica, a dos primeiros que serão últimos e dos últimos que serão primeiros, viceja a nossa esperança, iluminada pela alma saudosa dos poetas, entre tristes e nostálgicos, mas também abundantes do real e do longínquo. A lucidez maior será a do momento da máxima humilhação, porque «Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao teu nome dá glória».

domingo, 24 de janeiro de 2010

O PASTOR DE ESTRELAS, 3



Gota
Avelino de Sousa

Flébil gota que te aprontas
uma vez cheia, a tombar,
a gravidade que afrontas
não te impede de brilhar.

És acme de puro orvalho,
lembrança de extinta sede
e, intacta, rolas no galho
da árvore que de ti bebe.

Flébil e rotunda gota,
da haste tenra és o pus,
pétala de flor ignota
que abre corola de luz.
[Pastor de Estrelas, de Avelino de Sousa: pedidos para serradossa@aeiou.pt]

sábado, 23 de janeiro de 2010

AO REDOR DO 31 DE JANEIRO, 4


“A bandeira Nacional é a idealidade duma raça, a alma dum povo, traduzida em cor. O branco simboliza inocência, candura unânime, pureza virgem. No azul há céu e mar, imensidade, bondade infinita, alegria simples. O fundo da alma portuguesa, visto com os olhos, é azul e branco.

Desse fundo saudoso, de harmonia clara, de lirismo ingénuo, ressalta, estudai-o bem, o brasão magnânimo: em campo de heroísmo… vermelho ardente, sete castelos fortes inexpugnáveis, cinco quinas sagradas e religiosas, e à volta, num abraço bucólico, duas vergônteas de louro e de oliveira. É o escudo marcial e rural dum povo cristão de lavradores, que, semeando, orando e batalhando, organizou uma pátria. A coroa, que foi do escudo o fecho harmonioso, converteu-se há mais de dois séculos numa nódoa sinistra. Rajadas de aurora limparam-na ontem para sempre. O nobre estandarte não tem mancha. Glorifiquemos o escudo, coroemo-lo de novo com diadema épico de estrelas: estrelas de sangue e estrelas de oiro, estrelas que cantem e que alumiem. Substitua-se apenas o borrão infame por um círculo de astros imortais.”

Barca-de-Alva, 13 de Outubro de 1910.

Guerra Junqueiro, in Horas de Luta, 1924

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O PASTOR DE ESTRELAS, 2


Oliveira

Avelino de Sousa

Milenares, centenárias oliveiras,
do meu país,
firmai vossas raízes.
Que as negras azeitonas
No lagar se transformem em azeite.
Que com ele exista a luz primeva.
Glória seja à verde oliva.
É hora de acordar e de cuidarmos
que em nossas lâmpadas
e lucernas luza o nosso azeite.
[Pastor de Estrelas, de Avelino de Sousa: pedidos para serradossa@aeiou.pt]

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

AO REDOR DO 31 DE JANEIRO, 3

“Viagem do Snr. D. Carlos ao Porto, depois do 31 de Janeiro: Mais dum ano decorrera, antes de sua majestade se abalançar à viagem. Serenados os ânimos, mete-se a caminho. Os estudantes, em Coimbra, assobiam-no. Chega ao Porto. Desfila o cortejo. Ao lado do carro de sua majestade seguia um chefe de esquadra, a pé, durindana ao vento. Entala-se-lhe o gládio numa das rodas, partindo-se em bocados. O monarca desembainha, veloz, a sua espada, de comandante em chefe, e bizarramente lha entrega com donairosa cortesia. Lá está na esquadra.
Baile do ministro inglês, em Sintra
: No verão de 1892 dava o ministro inglês uma festa pomposa em honra do Snr. D. Carlos. Sua majestade aceitou-o. O ministro inglês, naquele instante, era a Inglaterra. O soberano de Portugal era a nação portuguesa. Pois o rosto que levara a bofetada sangrenta ia ver-se aos espelhos do animalejo que lha dera! Ia limpar os escarros ao guardanapo de quem lhos atirou!
Um rei que a fatalidade inexorável, que o destino impiedoso submetesse, algemado, a semelhante vergonha, choraria de raiva lágrimas de sangue, a não guardar no íntimo da alma, como D. Carlos, o retrato de D. João VI, num pataco falso. Desejaria eu ver, em lance de tal ordem, a grande e melancólica figura de Pedro V. Que trágica altivez e que dorida nobreza não exprimira o seu olhar! E D. Carlos? D. Carlos, em toda aquela noite pavorosa jogou descuidadamente o bleuff, espécie de batota, com dois casquilhos elegantes do mundanismo que se diverte. Verifiquem, lendo o Jornal do Comércio, que relatou o baile. Acrescento mais: quem o relatou assistiu a ele.
Dissolução das cortes. Primeiro golpe d’estado
: O Snr. D. Carlos, um belo dia, farto de atirar às perdizes, alveja à queima-roupa o código político da nação. Com que fim? Salvar-nos, salvar a pátria. Era a vida da pátria, que, em risco iminente, o constrangia à ditadura. Espezinhava os códigos, para manter a nacionalidade, sacrificando (com que mágoa!) o juramento do rei à existência do reino.”

Guerra Junqueiro, in Pátria, 1896

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O PASTOR DE ESTRELAS, 1

Nota bibliográfica
Joaquim Domingues

Pastor de Estrelas, de Avelino de Sousa, constitui uma composição poética, sob a forma de tríptico, de que saem agora a lume o primeiro e o segundo livros. O terceiro, sob o título Bosque Cerrado, veio à luz em 2003, em edição assaz restrita. Composição poética em prosa e verso, diga-se, mas também inspirada e meditada; que as discriminações clássicas, académicas ou escolares não têm primazia sobre o livre adejar do espírito.
Embora conhecida e reconhecida, premiada até, a arte de Avelino de Sousa não sacrifica às modas literárias o ofício das musas, o vetusto culto prestado às divindades da roda de Apolo, atributos da luminosa sabedoria descida do alto. O ensurdecedor ruído que nestes dias perturba a clara audição dessa música sublime explicará talvez a discrição do autor. Se o inesperado só se revela a quem o espera, conforme o dito de Heraclito, não basta estar atento, acordado, pois cumpre estar acorde, aperfeiçoar a afinação interior sem a qual nenhuma ressonância sairia das cordas da lira.
Aos cinco títulos publicados em livro por Avelino de Sousa – Nostalgia, edições Vega, Lisboa, 1988; Retratos Apócrifos, seguidos de Doze Canções, Átrio, Lisboa, 1991; Folhagem de Sombras (sob o criptónimo Nuno David Elias), Universitária Editora, 2000; Poemas, edição do autor, Pinhal Novo, 2005; e o já referido Bosque Cerrado, M J Real imo/edição do autor, Setúbal, 2003 –, acrescem os textos dispersos em publicações periódicas dispersas – ‘Arca do Verbo’, de O Setubalense; Sirgo, de Castelo Branco; Colóquio/Letras, de Lisboa; Teoremas de Filosofia, do Porto; Cadernos de Filosofia Extravagante, de Vila Viçosa… Abundante como é a nossa literatura poética, raro se lê uma arte tão rica na forma quão ampla no horizonte e elevada no tom, onde nada falta do que de essencial cumpre atender. Ao sopro da sua voz, a razão se dilata e exalta, sem refugar a natureza e a humanidade, que é como quem diz, a transitória dor e o contingente mal, que são o aguilhão do poeta.
Se os volumes anteriores saíram sóbria, mas cuidadosamente ilustrados – o segundo com um desenho do autor onde a lira se desdobra em fogosa floração ascensional –, a este coube enriquecê-lo Carlos Aurélio. Artista dos mais completos, com notável obra plástica, designadamente no desenho, pintura, escultura e fotografia, também cultiva com mestria as artes da palavra. Além dos textos dispersos, designadamente nos Teoremas de Filosofia, publicou dois volumes de índole reflexiva – Mapa Metafísico da Europa, Fundação Lusíada, Lisboa, 2003, e Considerando os Filósofos, Tartaruga, Chaves, 2008 – tendo pronto para o prelo o terceiro – Cartas de Noé para Nayma.
O Pastor de Estrelas, pela força do verbo, tem a magia poética capaz de se animar de vida própria ao calor de cada leitura compreensiva. Assim às imagens criadas por Avelino de Sousa perfeitamente se casam as de Carlos Aurélio, traçadas entre a terra e o céu, sinal da comum frequência daquele mundo de que os sonhos são feitos. Pela graça geradora e regeneradora do espírito se afirmam as novas gerações, de quem fiamos o nosso futuro, certos de que a cadeia sem fim que tudo liga e religa se movimenta teleologicamente.
[ Pastor de Estrelas, de Avelino de Sousa: pedidos para serradossa@aeiou.pt]

DIVULGAÇÃO





terça-feira, 19 de janeiro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 48


Os (In) Distintos

Eduardo Aroso

Os heróis de agora
Vivem no país ausente
Onde toda a gente mora.
Vão garbosos a passar,
Aprumados um a um.
Um dia estarão a repousar
No panteão da vala comum.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

NOS PRÓXIMOS DIAS: «O PASTOR DE ESTRELAS», DE AVELINO DE SOUSA

Enfoque. A edição do livro O Pastor de Estrelas, da autoria de Avelino de Sousa, do círculo dos Cadernos de Filosofia Extravagante, foi um dos bons acontecimentos editoriais do final de 2009. Nos próximos dias, aqui traremos alguns dos poemas que integram esta obra, ilustrada pelo pintor e filósofo Carlos Aurélio, bem como a nota bibliográfica que a encerra, da autoria de Joaquim Domingues. Será, aliás, por este último escrito que iniciaremos a apresentação do novo livro de Avelino de Sousa, que pode ser pedido para o nosso e-mail: serradossa@aeiou.pt. O custo é de 8 euros, a que acrescem as despesas com os portes de correio.

AO REDOR DO 31 DE JANEIRO, 2

“Os portugueses, desde o princípio do século XV até à colonização do Brasil, a mais vasta e mais perfeita colónia de todas as nações da Europa, derramaram-se pelo mundo, mas não se enfraqueceram. É a começar no século XV que se manifesta o sentimento de uma Pátria portuguesa, essa união afectiva dos espíritos através das distâncias, e que tendo por objectivo o território onde se passaram os anos felizes da vida da família, se torna o mais poderoso incentivo da actividade individual heróica e altruísta. O sentimento de Pátria foi o elo da nossa coesão nacional; enquanto esse sentimento se propagou, fomos fortes e grandes. Os homens de Plutarco não excedem os navegadores e guerreiros portugueses; devemos a esse sentimento as mais belas manifestações da Arte e da Literatura com que entrámos a uma altura digna no grande certame estético, científico e filosófico da Renascença. Somente quando esse sentimento de Pátria foi atrofiado pelo regímen intelectual e moral da educação jesuítica, é que Portugal caiu na incorporação da unidade castelhana sob o julgo da Casa de Áustria, e a nobreza se vendeu a Filipe II no intuito de dar força ao poderoso sustentáculo da unidade católica.”

Teófilo Braga, in A Pátria Portuguesa, Lello & Irmão, 1894

domingo, 17 de janeiro de 2010

PORTUGAL RENASCENTE: O PROGRAMA



Janeiro a Dezembro de 2010
Biblioteca Municipal de Sesimbra

Colóquios . Lançamentos . Exposição Bibliográfica*

2010 é o ano em que se comemora o centenário da implantação da República Portuguesa, na sequência do bem sucedido golpe militar de 5 de Outubro, radicado em Lisboa. Mas – verdade que muitos desconhecem – a trajectória da ideia republicana esteve para ser outra, logo em 1891, na cidade do Porto, com o pronunciamento do 31 de Janeiro, que acabaria por malograr.

Quando se compara os altos perfis de Sampaio Bruno, Guerra Junqueiro e Basílio Teles, pensadores e escritores que dão sentido à revolta nortenha, com as figuras de Afonso Costa, António José de Almeida e Bernardino Machado, políticos que emergem dos sucessos havidos na capital, é preciso reconhecer que, na volta do século, não mudaram apenas os homens, e a envergadura que os impõe, mas também as ideias que defendem e os ideais que os animam.

Ao estreito ateísmo de feição positivista que constituiu a matriz ideológica da revolta da Rotunda, e que acaba por determinar o curso atribulado e turbulento da I República, irá a revista A Águia, significativamente surgida em 1 de Dezembro de 1910, procurar contrapor uma orientação de pendor espiritualista, patriótico e democrático, que, firmando as suas raízes no lado luminoso da tradição lusíada, se propõe alterar o rumo dos acontecimentos.

Esta orientação tornar-se-á particularmente visível a partir de Janeiro de 1912, na segunda série da revista, que se inicia sob a direcção literária de Teixeira de Pascoaes e a direcção artística de António Carneiro. Então, A Águia surge-nos já como o órgão oficial da Renascença Portuguesa, movimento cultural gerado na Invicta e que, além do poeta do Maranos e do pintor do Tríptico da Vida, congrega vultos como Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão, Fernando Pessoa, António Sérgio e Raul Proença, sob a égide discreta, e já algo distanciada, de Bruno e de Junqueiro.

A despeito dos diversos caminhos que os seus expoentes virão a tomar, a Renascença Portuguesa constituiu, porventura, o mais importante movimento cultural do século XX português. Pretendendo, nas palavras de Cortesão, dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana, a sua acção notável far-se-á sentir ao longo de duas décadas, em que promove a maior cultura do povo português, por meio da conferência, do manifesto, da revista, do livro, da biblioteca e da escola. Por reacção ou por sucessão, a ela se irão referir correntes literárias ou filosóficas tão relevantes como o Orpheu, a Seara Nova, a Presença ou a Filosofia Portuguesa.

Com a organização do ciclo Portugal Renascente, cujo programa o leitor pode agora consultar, a revista Nova Águia e os Cadernos de Filosofia Extravagante pretendem celebrar, com um amplo programa cultural, as duas efemérides assinaladas, evocando o passado glorioso do movimento renascentista, o modo como esse movimento procurou infirmar o descalabro da República Velha e o legado que ele nos deixou, numa projecção que se deseja prospectiva e futurante. Fazem-no, como sempre, em estreita colaboração com a Câmara Municipal de Sesimbra, por esta parceria se significando, uma vez mais, a profunda ligação do movimento da Filosofia Portuguesa à Piscosa que Camões cantou n’Os Lusíadas.

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30 de Janeiro, 15h00
“Entre Guerra Junqueiro e Teófilo Braga”
Oradores: Pedro Sinde ("Guerra Junqueiro") e Rodrigo Sobral Cunha (“Teófilo Braga”)
Lançamento de Cartas de Noé para Nayma, de Carlos Aurélio (Coleçção Nova Águia)
Apresentação de Pedro Sinde
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27 de Março, 15h00

“A Situação Cultural de Hoje”
Oradores: António Carlos Carvalho, Miguel Real e Renato Epifânio
Apresentação do nº 5 da NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI
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24 de Abril, 15h00

Lançamento de Poemas da Montanha, de Frei Agostinho da Cruz (Serra d'Ossa Edições)
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29 de Maio, 15h00

“Anarquia, Monarquia e República”
Oradores: António Cândido Franco ("Anarquia e República”) e António Telmo (“Monarquia e República”)
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26 de Junho, 15:00

Lançamento do 2.º número dos CADERNOS DE FILOSOFIA EXTRAVAGANTE
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30 de Outubro, 15h00

“Sobre a República, 100 anos depois”
Oradores: Pedro Martins (“Sampaio Bruno”), Elísio Gala (“Guerra Junqueiro”), Luís Paixão ("A Arquitectura na República”) e Joaquim Domingues (“A República Pombalina")
Apresentação do nº 6 da NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI
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9 de Novembro a 11 de Dezembro

Exposição bibliográfica "A Águia, a Renascença Portuguesa e Teixeira de Pascoaes"
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*A estes eventos poderá ainda acrescer a apresentação de algumas obras a lançar durante o ano de 2010, em datas a anunciar oportunamente.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

PALAVRAS QUE FAZEM VER, 16


[Álvaro Ribeiro e Teófilo Braga]

“O Estado Português ainda não pagou a gratidão devida a Teófilo Braga. Dizemos o Estado, para que o substantivo maiusculado seja também concreto, e, portanto, vulnerável à crítica mais penetrante da inteligência definida. Não dizemos a Pátria, porque já morreram os pais dessa realidade conceitual a que os imaginários atribuíram a perfeita, mas última, acepção de República.

Sim, a verdade é que foi Teófilo Braga um dos últimos «pais da Pátria». Toda a actividade espiritual desse homem obscuro, modesto, malsinado se resume, sem receio de erro, numa série de livros que representam cinco decénios de pensamento actual e actuante, manifestado em lições, conferências e discursos. Ao proceder como historiador das principais expressões da alma nacional, Teófilo Braga teve em mão milhares de documentos sobre os quais exerceu o seu juízo analítico e reflexivo, para explicar em termos fáceis de narrativa imaginosa a luta do nosso pensamento pátrio e varonil contra as sucessivas invasões das legiões estrangeiras.

Foi certamente Teófilo Braga o último romântico, não só na acepção dada pelos literatos em contraste com o termo clássico, mas na exactidão histórica de quem defendeu o princípio cultural das nacionalidades, inspirado na tradição do medievalismo. A sua posição retardatária, irreverente, fora da moda, conferiu às páginas dos seus melhores livros uma característica que poderemos dizer anacrónica, e que por seu tanto afasta os leitores menos pacientes e menos diligentes. Dir-se-á que Teófilo Braga pertenceu muito mais à família espiritual de Alexandre Herculano e de Almeida Garrett, do que à de Antero de Quental, Oliveira Martins e Eça de Queirós.

Um homem que dedicou a sua vida a demonstrar a liberdade, a autonomia e a independência do pensamento português merece uma posição de relevo na história da nossa filosofia. Foi Teófilo Braga um filósofo romântico, mas, disciplinado pelo racionalismo de Augusto Comte, resistiu, como «homem de um só livro», aos ataques petulantes dos literatos seus contemporâneos. A feição historicista que imprimiu aos seus escritos de arte – produto da vontade, do sentimento e da memória – não turvou nem obscureceu a inteligência poderosa de um génio atraído pela estética do sublime, a ética do amor, a ideia do infinito.”

Álvaro Ribeiro

(excerto retirado de “O Último Romântico (1843-1924)”, originalmente publicado em Escola Formal, n.º 2, Julho de 1977, e posteriormente em Dispersos e Inéditos, III (1961-1981), INCM, 2005)

NO DIA 30: PORTUGAL RENASCENTE

Sesimbra. É já no próximo dia 30, sábado, pelas 15 horas, que, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, se inicia o ciclo Portugal Renascente, com a realização do colóquio “Entre Guerra Junqueiro e Teófilo Braga” – Pedro Sinde e Rodrigo Sobral Cunha serão os oradores –, e o lançamento do livro Cartas de Noé para Nayma, de Carlos Aurélio (Colecção Nova Águia), que será apresentado por Pedro Sinde. No começo da semana que vem, divulgaremos, na íntegra, o programa desta iniciativa conjunta dos Cadernos de Filosofia Extravagante e da revista Nova Águia, em parceria com a Câmara Municipal de Sesimbra.
Ainda no dia 30, mas em Setúbal, na Casa Bocage, pelas 18h00, serão apresentados o 4.º número da revista Nova Águia e o livro A Verdadeira História de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, de Rodrigo Sobral Cunha (Colecção Nova Águia).

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

AO REDOR DO 31 DE JANEIRO, 1

“Balanço patriótico:

Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que já nem com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, – reflexo d’astro em silêncio escuro de lagoa morta;

Um clero português, desmoralizado e materialista, liberal e ateu, cujo Vaticano é o ministério do reino, e cujos bispos e abades não são mais que a tradução em eclesiástico do fura-vidas que governa o distrito ou do fura-urnas que administra o concelho; e, ao pé deste clero indígena, um clero jesuítico, estrangeiro ou estrangeirado, exército de sombras, minando, enredando, absorvendo, – pelo púlpito, pela escola, pela oficina, pelo asilo, pelo convento e pelo confessionário, – força superior, cosmopolita, invencível, adaptando-se com elasticidade inteligente a todos os meios e condições, desde a aldeola ínfima, onde berra pela boca epiléptica do fradalhão milagreiro, até à rica sociedade elegante da capital, onde o jesuitismo é um dandismo de sacristia, um beatério chic, Virgem do tom, Jesus de high-life, prédicas untuosas (monólogos ao divino por Coquelins de fralda) e em certos dias, na igreja da moda, a bonita missa encantadora, – luz discreta, flores de luxo, paramentos raros, cadeiras cómodas, latim primoroso, e hóstia glacée, com pistache, da melhor confeitaria de Paris;
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro;
Um exército que importa em 6.000 contos, não valendo 60 réis, como elemento de defesa e garantia autonómica;
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do país, e exercido ao acaso da herança, pelo primeiro que sai dum ventre, – como da roda duma lotaria;
A Justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara a ponto de fazer dela um saca-rolhas;
Dois partidos monárquicos, sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, na hora do desastre, de sacrificar à monarquia ou meia libra ou uma gota de sangue, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, – de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar;
Um partido republicano, quase circunscrito a Lisboa, avolumando ou diminuindo segundo os erros da monarquia, hoje aparentemente forte e numeroso, amanhã exaurido e letárgico, – água de poça, água inerte, transbordando se há chuva, tumultuando se há vento, furiosa um instante, imóvel em seguida, e evaporada logo, em lhe batendo dois dias a fio o sol ardente; um partido composto sobretudo de pequenos burgueses da capital, adstritos ao sedentarismo crónico do metro e da balança, gente de balcão não de barricada, com um estado maior pacífico e desconexo de velhos doutrinários, moços positivistas, românticos, jacobinos e declamadores, homens de boa fé, alguns de valia, mas nenhum a valer; um partido, enfim, de índole estreita, acanhadamente político-eleitoral, mais negativo que afirmativo, mais de demolição que de reconstrução, faltando-lhe um chefe de autoridade abrupta, uma dessas cabeças firmes e superiores, olhos para alumiar e boca para mandar, – um desses homens predestinados, que são em crises históricas o ponto de intercepção de milhões de almas e vontades, acumuladores eléctricos da vitalidade duma raça, cérebros omnímodos, compreendendo tudo, adivinhando tudo, - livro de cifras, livro d’arte, livro de história, simultaneamente humanos e patriotas, do globo e da rua, do tempo e do minuto, forças fluidas, forças invencíveis, que levam um povo de abalada, como quem leva ao colo uma criança;
(…)”

Guerra Junqueiro, in Pátria, 1896

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 47


A Festividade do Dia de Reis*
João Tavares

«Tradicionalista, como sou e sempre fui, - por muito que pese a quem imagine o contrário, - acredito no Volkgeist e no folclore, como acredito também no Espírito Santo. Onde e quando se reúnam homens de boa fé há-de pairar um espírito subtil, invisível, comum, que nos anime para realizações de prodígios. Tal é, aliás, o princípio da assembleia dos fiéis ou, seja, o princípio da Igreja. Eis porque me repugna aplicar o método individualista da análise luterana ou cartesiana, o livre exame, no estudo de tradições tão vivas, tão boas condutoras de calor humano e de calor divino, como é a tradição que agora celebramos.»

«… e por lenda quero dizer aquilo que leu e está lendo nos Evangelhos (o génio português, subentenda-se) »


(De As Portas do Conhecimento, de Álvaro Ribeiro)

~
Receberam-vos dois presépios: um, uma celebração das gentes raianas do Alentejo, de cariz popular; o outro, um presépio tradicional do Algarve rural. Em ambos, mas por modo diferente, se poderá adivinhar como era inspirado o povo pela lenda dos reis magos.
O presépio do Alentejo raiano
Em alto em choça acolhido, aquecido pelo boi bento e pela doce jumentinha está o Menino em manjedoira deitado, acompanhado pela Virgem Maria e S. José.
Os Reis Magos, de viagem vindo, caminham guiados por uma Estrela.
Toda a Natureza, harmoniosa e diferente vive essa Luz.
A Vida, silenciosa, também se encaminha para lá.
Presépio do Barrocal Algarvio
Um Menino, coroado, sobre Pedra rude, alevanta-se sobre três mundos que se incluem, cobertos por linho alvo trabalhado em arte feminina. Alegram-no «searinhas» (sementeiras de trigo em pratinhos) envoltas em flores, murta e cedro. Laranjas, quais sóis, completam o quadro.
A coroa do Menino é imperial encimada por pomba esvoaçante, asas abertas sobre o Globo do Mundo.
Dirijamo-nos, agora, ao Mosteiro de Santa Maria de Belém, vistas que foram duas manifestações folclóricas, ou de Nossa Senhora Dos Reis Magos.
Convidava-vos a aceitarem por guia o texto que António Telmo escreveu no seu livro «Horóscopo de Portugal»
Explicação
«O horóscopo trouxe-nos de novo ao Templo, em Belém, da Senhora dos Reis Magos. Continuo a pensar, vinte anos depois, que não foi em vão que os Boitacas deixaram escrita na pedra a transcendente mensagem. Não tem sentido pensar que edificaram o Templo para gozo dos turistas e dos historiadores de arte antiga ou para lugar de solenidades públicas de efémera repercussão. Quem morreu não foi Deus, como pensou o alemão ateu, quem morreu foram os monges e o que foi criado para lugar de oração é, mesmo sem monges e invadido por uma multidão informe ou por políticos sem Pátria, uma oração de pedra, que excede infinitamente.»

Valete Fratres

Relembre-se que a Oração de Pedra que excede infinitamente, foi mandada edificar no Dia de Reis e que o fora por sobre uma ermida alevantada pelo Senhor Infante de Sagres e consagrada a Nossa Senhora da Estrela.
Pedia-vos permissão para convosco partilharmos o que pensamos ver em dois dos seus Portais:
- O Portal Ocidental;
- O Portal Sul.
O que é que nos chama no Portal Ocidental?
Os três nichos que o coroam, alusivos ao Menino:
- A Anunciação do Anjo;
- O Divino Nascimento;
- A Adoração dos Reis Magos.

O centro é a cena do nascimento. O Menino deitado em berço de vime entrançado (o vime protector, o vime que salvou Moisés, o vime associado ao Logos…), é adorado pelos reis D. Manuel e D. Maria (impressiona a semelhança entre as figurações que existem nas colunas do Portal, referentes ao seu matrimónio!).
O nicho descansa sobre as asas de dois anjos que seguram em suas mãos o Escudo de Armas de Portugal, fendido desde que o nosso rei Sebastião se ocultou em Alcácer-Quibir, mistério, enigma revelado por António Telmo, e que, até hoje, ainda assim se encontra…

O Portal Sul

A sua Beleza nos toma!

Para o que hoje mais importa libertemos o nosso olhar na coluna axial, a coluna do meio, elevando-o.
No meio dos meios está Nossa Senhora com o Menino ao colo. O Menino sustém o Globo Mundo – o seu pomo – em uma das suas mãos, empunhando na outra o ceptro.
A Senhora caminha de vaso na mão (o Graal?), transportando os dons que os Santos Reis Magos haviam deposto aos seus divinos pés.

O Bolo-Rei

Vemo-lo como uma coroa aberta, um zodíaco por onde correm as sortes. Porém é no seu centro que ousaríamos pedir que a imaginação de cada um de nós se animasse para nele libertar o Menino que guardamos e Lhe oferecêssemos do oiro, do incenso e da mirra, por ser rei de um Império Novo, pois que os Reis Magos haviam deixado aos seus pés as primícias dos seus dons, soltando-se das cadeias do tempo velho – Urano, Saturno, Zeus -, regressando às suas terras e gentes, libertos, porém esperançosos do advento de uma nova era.
Chegados somos ao momento da partilha do oiro, do incenso, e da mirra, digo, da côdea, do aroma, do miolo do Bolo-Rei no centro da nossa mesa.
Peço-lhe, António Carlos Carvalho, a quem a sorte do ano anterior conferiu o poder de o partir e repartir por todos nós, que distribua generosamente o que é doce expressão do trabalho, da arte, e do jogo.
Espero que a fava encontre alguém de mando brando, e que o brinde assinale aquele que, de coração, continue tão bela tradição.
Confiemos na sábia soberania do jogo!


Festa da Epifania de 2010

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* Lido pelo autor no passado sábado, dia 9, no encontro de celebração dos Reis, em Vila Viçosa.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 46


Dois poemas
Eduardo Aroso

NEVE
À memória de Augusto Gil

Tempo breve,
Demorado olhar!

Mas a nós,
Senhor,
Porque nos dás
Tanta cor?!

11-01-10


À ESPERANÇA DE UM NOVO ANO

Perdoa-me, oh tu que me tens em segredo,
Amada minha que não escuto o ano inteiro.
Perdoa-me, agora, se eu te fito com medo,
Te ouço apenas no primeiro dia de Janeiro!
A tua voz suave e firme bem me segura,
Tu que me vês no afã inquieto de mudança,
Perdoa-me se somente agora eu sou digno
E hoje te abraço minha doce esperança!

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 37

António Carlos Carvalho

Quando se mora há 62 anos na mesma cidade, e essa cidade é Lisboa, que tantas transformações tem sofrido (sofrer é o verbo exacto) ao longo destes anos, é uma fatalidade dar-se conta de agressões praticamente diárias. A loucura geral também deixa traços no tecido da cidade.
Moro num bairro exemplar, Campo de Ourique, hoje quase um oásis no meio de tanta degradação urbana. Não o trocaria por nenhum outro lugar de Lisboa. Mas também este bairro não está imune a problemas – aqui há de tudo, menos cinemas ou casas de espectáculos, espaços maiores para acontecimentos culturais.
O cinema Paris, na Rua Domingos Sequeira, continua em ruínas, uma mancha obscena nessa rua simpática. Quanto ao Europa, meu vizinho na Rua Almeida e Sousa, permanece encerrado, apenas habitado pelos pombos na fachada.
aqui falei dele em tempos, glosando a metáfora do seu nome, Europa, e relacionando-a com o estado da chamada União Europeia.

Interior do Cinema Europa
Eis que agora me chega às mãos um panfleto desesperado, divulgado pelo Movimento SOS Cinema Europa, nascido em Fevereiro de 2005, na sequência de notícias sobre a demolição daquele edifício para a construção de um condomínio. Apesar de tudo o que foi feito (reuniões públicas, acções de sensibilização da população, panfletos e cartazes no bairro, abaixo-assinado com cerca de 2200 assinaturas, intervenções na Assembleia Municipal e sessões públicas do executivo), «não foi possível travar a demolição do edifício e a construção de um condomínio que, segundo consta, será iniciada dentro de um mês.»
No entanto, acrescenta ainda o panfleto dos moradores desesperados e preocupados, no projecto aprovado para o local, o Município reservou por dois anos o rés-do-chão do novo edifício, com cerca de mil metros quadrados, para a instalação de um equipamento cultural, embora sem ter tomado ainda uma decisão definitiva «quanto à oportunidade e conveniências de tal reserva.»
Apesar de não ser o ideal, o movimento apresentou uma candidatura ao Orçamento Participativo de 2009 para a instalação de um «espaço cultural de base local» no piso reservado pela Câmara no novo edifício. A candidatura encontra-se em fase de votação até dia 15 deste mês. Quem estiver interessado em salvar este nicho cultural (é o que nos resta ...) pode consultar o site
Por mim, depois de cumprir o meu dever de voto (nestas coisas ainda voto), concluo, tristemente: Europa vai agora ser apenas um condomínio – um sinistro destino metafórico para este continente raptado de si mesmo, não pelo touro-Zeus mas pelo euro endeusado: a única união que realmente existe ou a que temos direito. Quanto à famosa cultura, vamos lá ver se ainda cabe num rés-do-chão, bem rasteirinha... Os crentes dirão: valha-nos São Vicente, padroeiro da cidade. Os outros, como eu, talvez sonhem com os corvos que guardavam as relíquias do santo e que agora bem podiam dar umas valentes bicadas nos vendilhões deste templo laico!

domingo, 10 de janeiro de 2010

O CAMINHO DO CAMINHO, 12

Cynthia Guimarães Taveira



O Banquete
O telefone tocou a meio da refeição. António Telmo atendeu. Era um amigo. “Onde estás?”, adivinhava-se a pergunta do outro lado. António Telmo respondeu: “Estou num Banquete”. E estava.

No Caminho do Caminho acontecia-lhe, por vezes, a amplificação do mundo. Como a poesia o é. E naquela mesa, acontecia, de facto uma banquete. Uma mesa comprida, cabendo nela todo o Portugal. Nela, situada no centro de Vila Viçosa (como nome poético de Portugal), havia um centro dentro e fora dela, porque o sonho estava assim, suspenso em tempos negros de crise. Foi no dia 9, três dias depois do Dia dos Reis, três voltas dadas no tempo. Duas crianças, que ainda não percebiam porque se reuniam aqueles homens e mulheres, mas ainda a tempo de uma memória, também lá estavam para completar as gerações várias. E de tudo havia ali um pouco, nobrezas antigas já esquecidas, filósofos incapazes de se dissociarem da paixão, arquitectos de olhos vivos, olhando, suspensos como o sonho, a chave da abóbada, artistas alimentando as cores, funcionários públicos que serviam uma causa maior, mecenas, curiosos sem saberem porquê, matriarcas vigilantes e pais com o dom da oratória.

As iguarias sucediam-se, queijos derretidos com orégãos, ovos com espargos, chouriços, paios, maioneses suaves, pão alentejano, passas dentro dele, bacalhau em torre, migas perfumadas e frutas em espetada.

E Portugal ali estava nas conversas cruzadas. Por essa mesa passava o Camões cujo mistério parecia crescer com a passagem do tempo, e Pessoa, e o Padre António Vieira, o Brasil. Álvaro Ribeiro também por lá passou, assim como o Agostinho da Silva, Leonardo, José Marinho e António Quadros, e a Dalila percorrendo como uma fada o seu jardim interior. O vinho escorria, e a mesa cresceu, os sons amplificaram-se. Todos conseguiam ouvir as conversas de todos e captar-lhes o sentido. Por ali passaram tapetes de Aladino a voar no requinte islâmico, ao mesmo tempo que passava um católico convicto, em passo firme, direito e atento. E passaram judeus com palavras cabalísticas a decifrar, muitos hereges, cristãos que se lembravam apenas das palavras de Cristo e que tinham contornado as igrejas por duvidarem delas, e sinas pagãs nas palmas das mãos e astrologias persas, e o Espírito Santo também lá estava, escondido no fundo do olhar de todos eles. O V Império apareceu sobe a forma de um V saltitando pela mesa fora.
E falou-se de paisagens e monumentos, e da abóbada celeste das capelas imperfeitas que deixaram os corações loucos de saudades do céu.

E, assim como entraram, saíram, e foram andando até à estranha serpente crucificada, feita de pedra, que os esperava. Olharam-na e descobriram-lhe umas asas. E souberam que era Portugal que estava ali, serpente alada crucificada. Pronta a renascer, a qualquer momento, em qualquer mesa, em qualquer lugar do mundo. Portugal era apenas um sonho que acontecia subitamente, tão simplesmente como o sopro do Espírito Santo e tão rico como um banquete.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

AGOSTINHO DA SILVA, IPSIS VERBIS

"Quando se fala da ditadura em Portugal..."

"Quando se fala da ditadura em Portugal, a ditadura que houve em Portugal foi uma revolução também. Porque a primeira República era um regime em que não se procurava fazer avançar o país, pôr-se em dia com o país, não havia maneira. Então houve uma revolução, foi uma revolução conservadora, digamos, foi uma revolução de direita, mas foi uma revolução, porque a primeira República não preparou as coisas para não haver a revolução. Os políticos esta­vam na sua comodidade e não naquilo que havia a fazer no país. Ou temos pelo lado da Rússia ou do lado de outros países que tiveram revoluções digamos de esquerda, revoluções comunistas, a mesma coisa. Também o regime anterior não preparava para o futuro, então a explosão deu-se. Mas em Portugal, depois, a revolução conservadora durou quase cinquenta anos, meu caro Amigo, e não foi brincadeira. Muito menos violenta, claro, que outras ditaduras que tinha havido noutros lugares, menos violenta, mas houve violência e houve dureza nessa revolução. Simplesmente, foi uma revolução que montou uma situação que não tinha grande futuro, acabou por se desfazer por si e não estava inserida no tempo histórico geral. Conservou o problema das colónias, poderia ter-se resolvido já na República, não se resolveu. Não é abandonar esses países como no fim se abandonaram, deixando-os em situações extremamente difíceis, mas era ir fazendo com que esses países, rapidamente, o mais rapidamente possivel, aprendessem a viver como nações independentes. Não havia razão nenhuma para Angola ser inteiramente independente ou para Portugal ser inteiramente independente de Angola."

Agostinho da Silva
, inédito

Consulte outros textos on-line em:

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

PARA LER: PORTAL DA FUNDAÇÃO ANTÓNIO QUADROS

Sítio. A Fundação António Quadros, recentemente instituída, já tem uma página na Internet, que pode ser consultada em http://fundacaoantonioquadros.pt/. Merece, por certo, uma visita demorada e uma atenção regular.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 45

Extravagância ou oferta do espírito
em Dia de Reis
Eduardo Aroso

Sob o nosso signo Filosofia Extravagante, ao qual já chamei Filosofia Extravasante, fui-me interrogando ao longo do ano, há dias findo, lentamente como o movimento de translação da Terra, também seguro de que haveria de passar nos equinócios e solstícios… Na nossa vida consciente há momentos em que também cruzamos esses pontos, pequenas flores que vamos cultivando no meio de uma imensa seiva cósmica que mal entendemos ainda. Vem isto também a propósito da resposta – aqui registada no essencial - que dei a um amigo que estranhou o título Extravagante num blogue de pensadores, filósofos, artistas e outras pessoas de «suposto equilíbrio do ser», tais as palavras com que me interpelava o amigo.

Adoração dos Magos, do Retábulo da Sé de Viseu: clique na imagem para a ampliar
A extravagância do pensamento e do espírito - afinal o que aqui existe - nunca é de mais. Bem pelo contrário. Seria como se afirmássemos que o amor é demasiado! O sentido de extravagante comunga perfeitamente com a natureza daqueloutro revelado pelo e no Espírito Santo, expresso na palavra abundância. Assim, estes dois termos, carregados do suco que apenas existe dentro, e por isso não se vê na montra, junto à etiqueta, estão bem longe do sentido economicista e mundano, que deste modo soariam mal em qualquer mercado, e decerto provocadores de injustiças sociais. Todavia, no plano do pensamento e na elevação do espírito, extravagância e abundância (num Portugal seco e mirrado pelo materialismo e ideias importadas em caixinhas para vender ou oferecer, conforme o caso) são as águas benditas que ainda vão orvalhando aqui e acolá, para quem, bem entendido, queira pôr os pés na água! São (por vezes) altas labaredas de esperança; o furor de almas inquietas na busca da luz e na procura de modos de pensar para melhor educar, para melhor agir e viver. Bondade, generosidade e verdade abundantes e extravagantes que, sem licença camarária, possam irradiar nos espaços públicos e nos quintais dos vizinhos, com a receptividade destes. Do pensamento queremos verdade, o mel.

De abelhas sabendo que é na sua colmeia - a que podemos também chamar pátria e nação – que começa o labor e o amor, consciente de que há congéneres suas que, querendo fabricar mel em todas (!) as colmeias do planeta, não chegam, obviamente, a fazer nenhum, “fugitivos universais” que não conhecem sequer um chão relativo (seja mesmo a “ tenda” de que falava S. Paulo) onde os pés catapultem a alma para uma séria meditação/reflexão.

Seja assim o possível mel de colmeias do real e do ideal, extravasando e enxameando o universal. Seja então este presente a dar aos homens e mulheres de boa vontade. Que o ano de 2010 seja extravagante nos «ofícios de Minerva» e abundante no sopro do Espírito Santo.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

SÁBADO, 30 DE JANEIRO, EM SESIMBRA E EM SETÚBAL

Parceria. O ciclo Portugal Renascente, iniciativa conjunta dos Cadernos de Filosofia Extravagante e da revista Nova Águia, em parceria com a Câmara Municipal de Sesimbra, de que em breve aqui daremos informação pormenorizada, começa já no próximo dia 30, sábado, pelas 15 horas, na Biblioteca Municipal de Sesimbra. Do programa constam a realização do colóquio “Entre Guerra Junqueiro e Teófilo Braga”, tendo como oradores Pedro Sinde e Rodrigo Sobral Cunha, e o lançamento do livro Cartas de Noé para Nayma, de Carlos Aurélio (Colecção Nova Águia), que será apresentado por Pedro Sinde. Ainda nesse dia, no eixo da Arrábida, mas já às 18h00, na Casa Bocage, em Setúbal, serão apresentados o 4.º número da revista Nova Águia e o livro A Verdadeira História de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, de Rodrigo Sobral Cunha (Colecção Nova Águia).

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

PARA LER: EDUARDO AROSO

Sugestão. Vasta e multímoda é a valiosa colaboração de Eduardo Aroso, do círculo dos Cadernos de Filosofia Extravagante, na página Triplov, que o leitor poderá agora (re)descobrir. Um desenvolvido apontamento bio-bibliográfico dedicado ao autor acompanha o índice desta sua colaboração.

domingo, 3 de janeiro de 2010

O CAMINHO DO CAMINHO, 11

Cynthia Guimarães Taveira



A Obra
Via agora imagens num livro sobre pirâmides, essas da América latina, de antigos povos. E lembrou-se desses estranhos rituais de sangue em que homens eram assassinados em nome de um deus. À medida que ia caminhando duvidava cada vez mais das grandes religiões, dos grandes aglomerados, das grandes massas. Mas talvez fosse apenas uma fase. Uma fase de questionamento. Para que serviriam essas grandes religiões que arrastavam multidões, e erguiam ídolos visíveis ou invisíveis, e erguiam mortos mártires, e queimavam com bombas e inquisições, e perseguições, e convenciam e convertiam e corriam sempre o risco de um fanatismo? Todos os fanatismos forçam a nota. Não amam, exigem amor. Que deuses e Deus eram esses que se associavam tão facilmente ao poder do carisma, da força, das armas, dos gritos secretos exigindo mais dos outros? Não questionava os deuses ou Deus porque não os conhecia na intimidade, e alguém conheceria? Questionava o valor das religiões quando, no final, restava o homem sempre nu, o mais indefeso ser dentro da natureza e também, o mais mortífero e o mais criativo. O divino, no meio desse caminho, nunca definitivo, nunca parado, incessante nas questões, estava na natureza como fonte de todos os males e origem de todas as virtudes. Para além dos deuses, que restava ao homem senão a natureza e a sua própria natureza? As religiões eram edificadas em símbolos que, por sua vez, sustinham os rituais, e tendiam cada vez mais a uma abstracção do divino, do politeísmo ao monoteísmo, da pluralidade de sentidos até ao sentido último inatingível. Mas esses símbolos estavam gravados na própria natureza. Sua geometria, seus animais, seus elementos, seus mistérios tão próximos, tão presentes e tão velados. A vida e a morte sempre pulsando no princípio e no fim. A perfeição intuída no centro da imperfeita natureza. Nada mais importava senão ela, essa natureza magnifica, capaz de tudo, capaz de em si conter tudo, até o próprio Deus, esse desconhecido misterioso. Homens vinham lembrar princípios éticos esquecidos, homens divinos ou divinizados em seguida, tornando-se, sem querer, os primeiros de uma nova religião. E assim nasciam mais massas cegas para o mundo, tendo olhos apenas para crenças que se unificavam no olhar de um único ponto, numa única luz, sem saberem que esta era em si mesma diversa..
A natureza permanecia indiferente a todos estes casos de amor dos homens por figuras, por ideias. E permanecia no seu mistério de tudo conter. O homem, indefeso, permanecia também no seu mistério de conter em si toda a natureza. Toda a natureza continuava a conter em si todos os modelos sociais possíveis: seus modos de viver, suas regras nos seus predadores, seus rituais de acasalamento, sua solidariedade ou não, e tudo isto sem uma consciência palpável. Essa consciência estava apenas no homem que a tinha como uma espécie de bónus por lhe ter sido dado o jardim do paraíso e suas árvores misteriosas, da vida, do bem e do mal e do possível conhecimento… Pensava em jeito de herói solitário que todas as religiões deveriam parar por instantes o seu percurso, tantas vezes fraudulentos e longe da verdade e da dignidade. Parar um pouco. Continuamos nus e indefesos perante a natureza e perante a verdade, assim parados nos deuses, parados em Deus que assim pára um pouco também, talvez para respirar ou suspirar… Se há a percepção no homem da perfeição e este é tão da natureza como do céu, esta, tal como ele, caminha para a redenção. O que rege este universo é a imperfeição, uma vez perfeitos passamos para outro, mais perfeito, e lá, talvez haja a possibilidade de um mais-que-perfeito, mas disso nada se sabe…. a não ser desses magníficos nomes de tempos de verbos como, por exemplo, pretérito imperfeito e sua noção de que o passado não é perfeito…
Assim parados, por breves instantes, numa marcha sem fim, talvez entendêssemos que há modelos culturais, tão diversos como aqueles latentes na natureza e que esta é apenas fonte de todos eles e fonte também da sua imperfeição. E talvez entendamos também que ao homem foi dado esse fogo destruidor e transmutador, de si e da natureza que o rodeia e o “como” nem sempre está nas imperfeitas religiões dos homens, apenas dentro dele e na sua proximidade ou não aos céus. O “como” está na Arte, aquilo que vai para além da própria cultura: se a cultura é tudo o que se acrescenta (e retira da natureza), a arte é tudo o que se acrescenta a uma cultura (e dela se retira), tornando o onírico matéria e despertando o onírico para a matéria, em vias de sonho subtil (não de sono), que se ergue em esferas acima em direcção ao Espírito perfeito tão intuído. As artes, todas elas: música, pintura, etc, e a suprema Arte Real, ou alquimíca, são o fundamento do homem que se diz religioso. E o homem religioso é sempre mais consciente de que qualquer massa de pessoas que funcionam em pensamento único face a uma religião.
Diz-se que Deus, numa tradição rabínica, criou já várias humanidades e que esta última não seria flagelada por uma catástrofe, sendo essa promessa simbolizada numa aliança que, por sua vez, foi simbolizada no arco-íris . E se fosse verdade? E se Deus, o demiurgo, ou o deus de mil faces do politeísmo, ou a força cósmica, ou chamem-lhe o que quiserem, tivesse mesmo criado várias humanidades numa tentativa de aperfeiçoamento do homem e da sua natureza envolvente e endógena? Será Deus o grande artista e daí sermos nós feitos à sua imagem e semelhança? De que nos servem as religiões se não existir uma consciência artística? Fundamentalmente, servem para passar o tempo, como um jogo de cartas que se limita a esgotar todas as possibilidades de probabilidades. O jogo em si não muda, nem as cartas. E não mudar não faz parte do espírito artístico e talvez não faça parte do espírito de Deus.
Assim parado, no meio do caminho, pegou numa flor, delicada, bela, quase-perfeita. “Assim seja a obra de todos nós… dentro ou fora das religiões“. Embora soubesse, que, como dissera António Telmo, num sussurro quase mudo, num jantar, em que vozes se confundiam com o barulho da televisão e o agitar dos talheres, “é necessária muita coragem para se ser religioso e não se pertencer a nenhuma religião”.

sábado, 2 de janeiro de 2010

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sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

OS POETAS LUSÍADAS, 29


À MUDANÇA DA VIDA


Tempo foi que pastava neste prado
Bem fora de cuidar que poderia
Tornar a ver-me nele inda algum dia,
De tantos mil cuidados descuidado.

O Senhor, que me trouxe a tal estado,
Quando castigos graves merecia,
Dando-me muito mais do que pedia,
Para sempre já mais seja louvado!

Estas águas correntes, estas flores,
Estes bosques cobertos de verdura,
Os passarinhos neles escondidos,

Aqui Lhe dem comigo mil louvores,
Sem fim o louve toda a criatura,
Não sintam outra cousa meus sentidos.
Frei Agostinho da Cruz
Na imagem: Arrábida, de George Vivian, 1839