(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quinta-feira, 17 de junho de 2010

«SINGULARIDADES»: OS EXCERTOS, 3

Babel e a terceira queda


António Carlos Carvalho


Em que língua falou Deus com a primeira humanidade, adâmica? Qual era a língua de «Adam», Caim e Abel? Em que língua é que Deus deu instruções a Noé sobre a construção da Arca e estabeleceu com ele os desígnios da primeira Aliança, depois do Dilúvio? Em que língua Noé abençoou Sem (Shem) e Japhet e amaldiçoou a posteridade de Ham?
Desde o século VII que deparamos com esta busca da língua original, busca essa nascida destas e de outras interrogações -- Umberto Eco dedicou ao tema uma das suas obras, «À procura da língua perfeita» (Presença, 1996), que se deveria, mais apropriadamente, chamar «Depois de Babel» se não fosse esse o título do livro de George Steiner…
Na realidade, é nesse conjunto de livros a que chamamos «Bíblia», sucessão de histórias exemplares, que encontramos o relato essencial: no capítulo 11, em apenas nove enigmáticos versículos, o texto conta-nos que em toda a terra havia uma mesma língua, e aconteceu que, emigrando de um lugar a Oriente, «eles» encontraram um vale em Chinear e aí se instalaram; disseram uns aos outros, façamos tijolos no forno; e o tijolo foi a pedra deles, e o betume a sua argamassa; depois disseram, façamos uma cidade e uma torre que cheguem aos céus, façamos um nome, para que não sejamos disseminados sobre a face de toda a terra; Deus desceu, viu o que os homens faziam, concluiu que o povo era um e todos tinham a mesma linguagem e decidiu confundir a linguagem deles, dispersá-los pela superfície da terra, tendo eles cessado de construir a cidade e a torre; por isso foi chamada Babel porque aí o Senhor confundiu a linguagem de todos os homens.
Propositadamente, não citei nenhuma tradução específica deste texto bíblico, porque todas as suas traduções, deste e dos outros textos bíblicos, só nos deixam «à sua porta» (Raphael Draï). Por um lado, estamos perante um texto realmente enigmático, que só se deixa iluminar pelos comentários da tradição oral, como vamos ver. Por outro lado, «só se pode elucidar o sentido por círculos de interpretação cada vez mais apertados» (R. Draï) e não pela fixação de um texto único, definitivo (coisa, aliás, impossível no Hebraico: o texto bíblico é sempre «aberto») -- precisamos do que Draï chama «um pensamento paciente: saber escutar uma palavra na sua língua própria, respeitando o decurso da sua enunciação e a forma das letras em que ela é transcrita.»
Tratando-se realmente de uma narrativa exemplar, mesmo na sua concisão, e na estranheza da sua colocação no conjunto do livro do Génesis (Bereshit) -- entre a árvore genealógica dos filhos de Noé e a dos descendentes de Sem, mas logo seguida pela entrada em cena de Abraham… --, convém que dela tiremos as lições apropriadas para o nosso tempo: a Bíblia não é um livro bonito para arrumar na prateleira, é uma interpelação constante às nossas vidas, individuais e colectivas, nos dias de hoje.
E os tempos que vivemos são os do triunfo da famosa globalização, uma segunda «babelização» que afecta a nossa língua e a nossa cultura.

(...)

1 comentário:

  1. Como é sabido, a Bíblia é um corpo de vários textos separados no tempo por milhares de anos. Por exemplo, o Livro dos Salmos tem fronteiras de cerca de 800/900 anos. Segundo os maiores esoteristas, a Bíblia é um Livro iniciático, ou seja, o discípulo, seja qual for a sua etapa no Caminho, reve-se sempre nesta ou naquela passagem das Sagradas Escrituras. Por ser um Livro iniciátivo é que não se desactualiza, ao contrário do que pretendem alguns, deslocando o sentido espiritual mais profundo apenas para o plano histórico. Muito oportuno que o António Carlos Carvalho tenha vincado, no final do artigo, que a Bília «é uma interpelação constante às nossas vidas, individuais e colectivas, nos dias de hoje».

    Um abraço

    Eduardo Aroso

    ResponderEliminar