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sexta-feira, 9 de julho de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 71

A Grande Tareia Cynthia Guimarães Taveira

Gurdjeff
Vi um filme que me deixou a pensar, chamava-se “Sozinha em Tóquio” e contava a história de uma rapariga americana em Tóquio em busca do seu amor que para aí tinha ido trabalhar. Chegada lá, o namorado afinal muda de ideias e decide, ou constata que afinal não gosta dela. Ela fica com um grande desgosto e chora lágrimas sem fim, perdida nas ruas estranhas de Tóquio. Um dia, no meio da chuva e de choros convulsivos, resolve pedir abrigo numa espécie de tasca oriental já fechada àquelas horas. O dono e a sua mulher, benevolamente, dão-lhe então uma sopa. Mas não é uma sopa qualquer, é uma sopa que a faz transformar completamente o seu estado de espírito, de triste passa a alegre, como se tivesse tomado um anti depressivo instantâneo. Instintivamente, a rapariga percebe que existe “arte” atrás daquela sopa e pede ao dono do restaurante que a ensine a fazer tal manjar. Este, que é um mestre na elaboração da sopa, vai recusando tal favor, cedendo apenas ao seu pedido de trabalhar na tasquinha. Nesse trabalho a rapariga é sujeita a todo o tipo de maus tratos por parte do seu dono: ele fá-la passar as “passas do Algarve”, obrigando-a a lavar latrinas, a estar de pé horas sem fim, a lavar panelas. Enfim, uma verdadeira provação oriental. No fim, claro está, ele acaba por ensiná-la a fazer a “sopa mágica” e a história acaba bem. A maior parte do filme é sobre essa relação tensa de amor-ódio entre mestre e discípulo. É da vivência do sofrimento mútuo que nasce a intimidade entre os dois, é do sentimento que nasce a sopa, é com ele e só com ele que esta é capaz de ter alma e de ser, enfim, mágica.

Este artigo tem a ver com as tareias que os ocidentais às vezes levam quando se metem em vias orientais. Lembro-me que uma vez, devido a problemas emocionais, tinha uma dor persistente na barriga. Percebendo que estava completamente desequilibrada, resolvi ir uma tarde a um estúdio onde se praticava zazen, ou seja, uma meditação budista que se pratica sentado. Fiz o que me mandaram, sentei-me na posição devida, e relaxei músculos e contraí outros (o zazen é muito interessante porque a ele preside o espírito barroco do contraste). Fiquei muito tempo na mesma posição, olhando um ponto fixo na parede branca muito perto de mim. Nunca tinha feito aquilo e reparei que o mestre desse templo estava atrás de nós com um pau. De vez em quando batia com o pau nos ombros ou nas costas de um dos meditativos. Pensei para os meus botões que não gostaria muito que ele me batesse, tive até um certo receio. No fundo, ele batia para despertar, porque estando muito tempo parado corria-se o risco de dormitar, perdendo-se assim a posição original. A verdade é que não levei com o pau e saí de lá a planar sobre a calçada portuguesa, leve, leve, como se tivesse asas. A dor de barriga (psicológica ou não) tinha desaparecido, e alguma coisa se equilibrou em mim com tal experiência. Foi este o meu único contacto com o Oriente face a face, corpo a corpo. E não me arrependi.

Frequentemente, nos esoterismos lê-se ou ouve-se falar em despertar. Reduzem-se vários despertares a um único despertar, mas a verdade é que são vários, talvez mesmo infinitos. Mas há de facto um primeiro despertar, provavelmente o mais importante, porque sem ele não há os outros. Mas de que se fala quando nos referimos a despertar? Fala-se num sentido de presença que se quer cada vez mais absoluta, cada vez mais apurada. E a presença está ligada ao corpo, às sensações do corpo, aos sentidos do corpo. Aqui, a filosofia parece encaminhar-se para os antípodas da iniciação, uma vez que dela se tem a visão de algo que é sobretudo cerebral, produto do pensamento, ainda que esse mesmo pensamento seja produto do espírito. Do sentido de presença que se tem: a nossa situação num espaço, a situação desse espaço noutro maior e por aí adiante, passa-se algo também no despertar que é o sentido do símbolo: intui-se e sente-se que as coisas são mais do que aquilo que aparentam. Intui-se e sente-se que nós mesmos somos símbolo vivo, com corpo, alma e espírito. E, parecendo quase sem querer (parecendo, uma vez que despertar exige esforço e concentração, a menos que haja uma hierofania) está-se enfim desperto e o homem desperto é o homem religioso, no sentido tão bem explicado por Mircea Eliade. Esse homem religioso está no centro do mundo, assim falava Leonardo Coimbra quando dizia que se podia imaginar que o pôr-do-sol se punha por nossa vontade. Estranhamente, essa sensação, chamemos-lhe assim, é profundamente efémera (forte porque se passa num tempo e espaços fortes e por isso inesquecíveis), mas profundamente efémera porque facilmente se adormece de novo, embora não se perca a memória do estar desperto. Daí poder afirmar-se: “sonhei que estava desperto” e não ser esta uma frase sem sentido.

Se despertar já é complicado, mantermo-nos despertos é-o ainda mais. De algum modo é o acto violento porque é um pouco contra natura (a natureza é inconsciente, os animais não possuem o mesmo tipo ou nível de consciência que os humanos), uma vez que o homem tende a ir para além da natureza, a acrescentar-lhe algo, provavelmente o voo da sua alma e a consciência do seu espírito. Daí que haja violência no sagrado e não só nas religiões (produtos do homem religioso). Despertar é uma espécie de novo nascimento e os partos não são propriamente pacíficos.
Quando os mestres (quando os há) se propõem acordar os seus discípulos abrem a porta também a alguma violência. No Oriente, com milénios de experiência, provavelmente, esta acção funciona mais tempo e talvez com mais perfeição. O Ocidente, no seu percurso histórico, foi atravessado por vagas de amnésia que o fez esquecer de certas verdades ou tradições, ocupado que esteve em conhecer e manter em cativeiro novos mundos. A sensação de vazio daí resultante levou homens e mulheres a procurar a natureza humana perdida, ou a buscar o tempo perdido… essa natureza é altamente problemática, pois ela no seu intimo é uma supra natureza. Esta procura levou-os naturalmente ao Oriente, não só por uma questão simbólica (é no Oriente que nasce o Sol, ou seja, a luz) mas também porque, muito provavelmente, o Oriente teve outra história, com maior número de pessoas, menos preocupações territoriais, e mais nichos onde a tradição ou verdade puderam sobreviver por mais tempo. Assiste-se então a uma importação em bloco de tradições, muitas vezes parciais, deturpadas ou recombinadas, vindas das Índias, dos sufis, dos samurais, da China profunda. Essas importações cuja verdade pode e deve ser posta em causa resultam muitas vezes numa mixórdia em que matizes de gurus indianos se misturam com cátaros ocidentais (mas com ascendência ariana), ou ritos celtas (muitos deles imaginados por falta de fontes) com rituais iniciáticos sufis, e por aí adiante. É assim que no Ocidente surgem os nossos “mestres”, alguns até despertos, outros até capazes de despertarem o seu semelhante. O problema está no “depois” do despertar. Não é o despertar que nos torna mais perfeitos, tal como um grau maior ou menor de consciência não nos torna fatalmente melhores nos nossos instintos mais imediatos e instantâneos (é preciso muito para nos libertarmos de Freud…). Assim, um amigo me contava os maus tratos infligidos pelo seu mestre Ocidental importador de saberes Orientais e que acabou por abandonar, não sem antes ter sofrido transtornos psicológicos difíceis de ultrapassar. Assim, li há pouco que um “mestre de nome “Solazareff” não se incomodou nada em ordenar a um “discípulo” que comesse uma osga, acção praticada pelo noviço no imediato. Assim, Gurdjieff, o grande despertador, acaba por cansar, com as suas danças, Katherine Mansfield, levando-a ao encontro da morte. Devem ser inúmeros os “mestres” ocidentais que mais tarde ou mais cedo acabam por se revelar grandes ditadores, numa cegueira que não se coaduna com a luz do despertar. Por mais despertos que estejam, não deixam de ter mau feitio.

Há ainda um outro factor que é necessário ter em conta no Ocidente: o peso de algum judaísmo e de muito cristianismo (às vezes parcamente espelhado nas igrejas). Tanto uma religião como a outra provocam e mantêm um elevado sentimento de culpa. E mesmo os “ateus” ou os que seguem o curso de algumas religiosidades marginais, não estão livres de uma sociedade habituada a viver num clima em que o factor “culpa” e o contrapeso “inocência” são fortes incentivos às acções e aos pensamentos das pessoas. Esses dois factores, se suficientemente pesados, já são uma violência em si. Não é necessário infligir violência física porque a psicológica já é suficiente e tem raízes históricas que se estendem para dentro da memória mais escondida dos homens.

Despertar não chega, porque depois de despertos, e conseguindo manter esse estado, é necessário o equilíbrio entre os quatro elementos da natureza que vivem dentro de nós: o fogo da paixão, a água da sensibilidade, a inteligência do ar, o pragmatismo da terra. Só em equilíbrio se evitam pequenas ditaduras, e evita-se também a contradição levada ao limite por Gurdjieff: o grande despertador, que levava as pessoas a dançar pela vida fora de maneira a que estas estivessem bem despertas, com o corpo alerta, com um permanente sentido de presença, capazes de reagirem por elas e não como se fossem máquinas, sim, esse grande despertador, acaba por morrer em consequência de um desastre de carro. E o desastre é o contrário da harmonia.

Quem dera a perfeição de um voo de um pássaro, assim, suave, harmónico, presente, ainda que inconsciente, perfeito…

1 comentário:

  1. No Ocidente é extremamente difícil libertarmo-nos do nosso ego. A humildade é tida como fraqueza e indício forte de patetice. No Oriente, pelo contrário, a humildade é um lugar óbvio ao qual se chega.
    Adorei o teu texto. Se houvesse por aqui a prática da humildade os teus textos seriam lidos com uma atenção extrema.

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