A Grande Tareia Cynthia Guimarães Taveira
Este artigo tem a ver com as tareias que os ocidentais às vezes levam quando se metem em vias orientais. Lembro-me que uma vez, devido a problemas emocionais, tinha uma dor persistente na barriga. Percebendo que estava completamente desequilibrada, resolvi ir uma tarde a um estúdio onde se praticava zazen, ou seja, uma meditação budista que se pratica sentado. Fiz o que me mandaram, sentei-me na posição devida, e relaxei músculos e contraí outros (o zazen é muito interessante porque a ele preside o espírito barroco do contraste). Fiquei muito tempo na mesma posição, olhando um ponto fixo na parede branca muito perto de mim. Nunca tinha feito aquilo e reparei que o mestre desse templo estava atrás de nós com um pau. De vez em quando batia com o pau nos ombros ou nas costas de um dos meditativos. Pensei para os meus botões que não gostaria muito que ele me batesse, tive até um certo receio. No fundo, ele batia para despertar, porque estando muito tempo parado corria-se o risco de dormitar, perdendo-se assim a posição original. A verdade é que não levei com o pau e saí de lá a planar sobre a calçada portuguesa, leve, leve, como se tivesse asas. A dor de barriga (psicológica ou não) tinha desaparecido, e alguma coisa se equilibrou em mim com tal experiência. Foi este o meu único contacto com o Oriente face a face, corpo a corpo. E não me arrependi.
Se despertar já é complicado, mantermo-nos despertos é-o ainda mais. De algum modo é o acto violento porque é um pouco contra natura (a natureza é inconsciente, os animais não possuem o mesmo tipo ou nível de consciência que os humanos), uma vez que o homem tende a ir para além da natureza, a acrescentar-lhe algo, provavelmente o voo da sua alma e a consciência do seu espírito. Daí que haja violência no sagrado e não só nas religiões (produtos do homem religioso). Despertar é uma espécie de novo nascimento e os partos não são propriamente pacíficos.
Quando os mestres (quando os há) se propõem acordar os seus discípulos abrem a porta também a alguma violência. No Oriente, com milénios de experiência, provavelmente, esta acção funciona mais tempo e talvez com mais perfeição. O Ocidente, no seu percurso histórico, foi atravessado por vagas de amnésia que o fez esquecer de certas verdades ou tradições, ocupado que esteve em conhecer e manter em cativeiro novos mundos. A sensação de vazio daí resultante levou homens e mulheres a procurar a natureza humana perdida, ou a buscar o tempo perdido… essa natureza é altamente problemática, pois ela no seu intimo é uma supra natureza. Esta procura levou-os naturalmente ao Oriente, não só por uma questão simbólica (é no Oriente que nasce o Sol, ou seja, a luz) mas também porque, muito provavelmente, o Oriente teve outra história, com maior número de pessoas, menos preocupações territoriais, e mais nichos onde a tradição ou verdade puderam sobreviver por mais tempo. Assiste-se então a uma importação em bloco de tradições, muitas vezes parciais, deturpadas ou recombinadas, vindas das Índias, dos sufis, dos samurais, da China profunda. Essas importações cuja verdade pode e deve ser posta em causa resultam muitas vezes numa mixórdia em que matizes de gurus indianos se misturam com cátaros ocidentais (mas com ascendência ariana), ou ritos celtas (muitos deles imaginados por falta de fontes) com rituais iniciáticos sufis, e por aí adiante. É assim que no Ocidente surgem os nossos “mestres”, alguns até despertos, outros até capazes de despertarem o seu semelhante. O problema está no “depois” do despertar. Não é o despertar que nos torna mais perfeitos, tal como um grau maior ou menor de consciência não nos torna fatalmente melhores nos nossos instintos mais imediatos e instantâneos (é preciso muito para nos libertarmos de Freud…). Assim, um amigo me contava os maus tratos infligidos pelo seu mestre Ocidental importador de saberes Orientais e que acabou por abandonar, não sem antes ter sofrido transtornos psicológicos difíceis de ultrapassar. Assim, li há pouco que um “mestre de nome “Solazareff” não se incomodou nada em ordenar a um “discípulo” que comesse uma osga, acção praticada pelo noviço no imediato. Assim, Gurdjieff, o grande despertador, acaba por cansar, com as suas danças, Katherine Mansfield, levando-a ao encontro da morte. Devem ser inúmeros os “mestres” ocidentais que mais tarde ou mais cedo acabam por se revelar grandes ditadores, numa cegueira que não se coaduna com a luz do despertar. Por mais despertos que estejam, não deixam de ter mau feitio.
Há ainda um outro factor que é necessário ter em conta no Ocidente: o peso de algum judaísmo e de muito cristianismo (às vezes parcamente espelhado nas igrejas). Tanto uma religião como a outra provocam e mantêm um elevado sentimento de culpa. E mesmo os “ateus” ou os que seguem o curso de algumas religiosidades marginais, não estão livres de uma sociedade habituada a viver num clima em que o factor “culpa” e o contrapeso “inocência” são fortes incentivos às acções e aos pensamentos das pessoas. Esses dois factores, se suficientemente pesados, já são uma violência em si. Não é necessário infligir violência física porque a psicológica já é suficiente e tem raízes históricas que se estendem para dentro da memória mais escondida dos homens.
No Ocidente é extremamente difícil libertarmo-nos do nosso ego. A humildade é tida como fraqueza e indício forte de patetice. No Oriente, pelo contrário, a humildade é um lugar óbvio ao qual se chega.
ResponderEliminarAdorei o teu texto. Se houvesse por aqui a prática da humildade os teus textos seriam lidos com uma atenção extrema.