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domingo, 14 de novembro de 2010

EXTRAVAGÂNCIAS, 108



O Grande Crime
Cynthia Guimarães Taveira

Às vezes é bom regressarmos às origens e debruçarmo-nos um pouco sobre as sociedades ditas primitivas. É bom porque, em principio, os pequenos núcleos de pessoas podem fornecer-nos informações muito úteis sobre o ser humano, de forma (e não “por forma”, como diz teimosamente o nosso primeiro ministro, fórmula que pegou na comunicação social e nos meios políticos; se o primeiro ministro o diz é porque está correcto, como se isso fosse assim, vejam-se as “correcções” esplendorosas que tem feito ao nosso país…), de forma ou de maneira, dizia, a que não nos deixemos cair no vazio e na confusão das massas de gente que se estupidificam num espaço de dias a uma velocidade vertiginosa.

Nas sociedades primitivas existem vários tipos de iniciação. Uma delas diz respeito à passagem da idade infantil para idade adulta. Normalmente os jovens são “apanhados” pela iniciação nos anos da puberdade e, em conjunto com provas físicas, por vezes dolorosas e difíceis, é-lhes dada informação preciosa sobre a sua tribo ou grupo. As razões das provas físicas são várias e, para além dos mitos (histórias verídicas, e não mentiras, como hoje se diz, como se um mito fosse naturalmente uma mentira -- a inversão das palavras parece não ter fim…) que as sustentam, servem também para uma melhor memorização daquilo que é transmitido.

Antes de António Damásio falar de inteligência emocional, já as tribos tinham há muito dado conta dela… assim, ao sofrer um pouco, o neófito não esquece o que lhe é dito, e o que lhe é dito é precioso. É-lhe dado um lugar no mundo, simplesmente. Exactamente o que nos falta hoje, andando meio mundo perdido no mundo. É-lhe dada a sua história, a sua proveniência, a razão dos seus gestos, dos mais sagrados aos mais quotidianos, enfim, é dada a esse ser a noção da sua situação no espaço e no tempo, bem como o propósito da sua existência. O neófito é assim agarrado exactamente na idade dos problemas existenciais e, antes que ele os faça crescer a ponto tal que se sinta perdido, os mais velhos dão-lhe as respostas antes que haja uma dúvida demasiado niilista. Assim, a iniciação, que requer a morte, é afinal um sinal fortíssimo de amor à vida.

Já tenho passado de carro pela 24 de Julho em Lisboa e caminhado pelas vielas do Bairro Alto, iluminada parcamente por uma lua triste. A quantidade de álcool e drogas ingeridas todas as noites por jovens confrontados com a sua primeira borbulha assusta-me. O que vejo ali são corações aflitos em busca de respostas. E entristece-me saber que este país tem as respostas, não tem é quem as transmita, não tem é condições para que essas respostas ecoem nos corações aflitos.

Na minha história pessoal tive sorte. Sorte com uma professora que nem era minha. No 8º ano, por via da amizade com colegas do 10º ano, dava por mim a ir a visitas guiadas da escola, dos alunos mais velhos do que eu. Conheci Fernando Pessoa através de uma professora que não era minha. A paixão com que falava e a importância que dava ao discurso pessoano agarrou-me por completo. O que o poeta dizia era importante. Foi assim que o poeta me foi apresentado. Muito cedo comecei a perceber o meu lugar no mundo por via de um poeta, e, procurando quem o estudasse, descobri Dalila Pereira da Costa. Antes das dúvidas em demasia já me estavam a ser dadas respostas: os mitos portugueses, as lendas, a poesia, a literatura, mais tarde a filosofia portuguesa, tudo me parecia falar ao coração. Facilmente foi entendido o papel de Portugal no mundo, e mais do que isso, o valor da diáspora, individuo a individuo, trazendo no estandarte a pomba do Divino Espírito Santo. E nem tive de passar por qualquer igreja para entender a mensagem. A mensagem portuguesa estava para lá de qualquer igreja ou religião. Era verdadeiramente universal e abstracta e fazia sentido porque no seu cerne estava o amor pela vida e o amor pelo próximo. E saber que hoje, neste momento, jovens bebem perdidos, jovens se drogam perdidos, passando-lhes tudo isto ao lado, não sabendo a riqueza que o país contém, riqueza de que poderiam usufruir e fazer frutificar.

Só posso apelidar de crime tal ocorrência. Um crime executado pelo Estado. Porque já não há ninguém que cometa um crime lesa Estado, não é preciso: o Estado lesa-se a si próprio e lesa aqueles que deveria proteger. Não só em termos económicos, mas também, e mais grave, porque é a base de tudo, em termos espirituais, não falo em religião, falo em espírito, em espírito que nos anima ou deveria animar. A verdadeira correcção não está na banda larga acessível aos infoexcluídos, parafraseando o estranho primeiro ministro, começava antes por valorizar a poesia, coloca-la num pedestal, e juntava-lhe a literatura, a história, os mitos, as intuições, as aspirações mais altas e, a pouco a pouco, as fracas almas se iriam curando, por via da palavra, por via da arte. De produtivos (que não somos, nem seremos enquanto formos prisioneiros da ignorância), passaríamos a artistas da alma (a produção é uma consequência da arte e não vice-versa), porque verdadeiramente transmutadores do mundo: “Não a nós, Senhor, não a nós mas ao Teu Nome dá glória”. O propósito templário continua actual e necessário.

1 comentário:

  1. Também me parece que não há, entre nós, a particular “doença” dos infoexcluídos, como diz o primeiro-ministro (podendo existir noutras sociedades), mas uma outra, bem mais grave, que já contamina toda a população escolar: a de um ensino que contempla cada vez mais a tecnocracia em detrimento do cultivo das artes, da poesia, da educação cívica, do verdadeiro sentido da nossa História, enfim de todo o conhecimento que faça florescer a SENSIBILIDADE. Goethe dizia que se um arco-íris demora mais de 10 minutos, já ninguém olha para ele. Ainda há bem pouco tempo, um amigo desabafava comigo, confessando que ninguém ouve um poema que tenha mais de 10 versos! No entanto, ouvimos as mesmas banalidades à mesma hora na televisão, parece que, a cada dia, mais ávidos de novidades. O público gosta da palavra novidade, pois não percebe que o conteúdo já não corresponde à forma em muitas palavras e conceitos, fruto da violentação do que Bom, Verdadeiro e Belo. O projecto templário continua vivo, e ainda bem que os verdadeiros templários tudo fazem para que ninguém os veja no sociedade com essa designação…

    Eduardo Aroso

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