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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 10



“Uma história íntima do meu reinado.”

Alexandra Pinto Rebelo

Como muitos sabem, a 1 de Fevereiro de 1908, foram assassinados, no Terreiro do Paço, o rei D. Carlos e o príncipe herdeiro, D. Luís Filipe. Por esses tempos, tal como em todos, existiam pessoas de bem entre adeptos da monarquia e adeptos da república. A maior parte dos republicanos viu esse momento como a oportunidade certa para declarar o novo regime. No entanto alguns bons homens entre eles não consentiram que a República se erigisse sobre um crime, apoiando a subida ao trono do muito jovem e devastado, D. Manuel.

O que poucos sabem é que D. Manuel escreveu algumas páginas de notas pessoais sobre o acontecido no Terreiro do Paço. Os excertos seguintes pertencem a esse texto, bem como o título encimando estes meus parágrafos. Note-se a expressão “história íntima”, só possível depois da estética romântica do séc. XIX, dando à Europa algo que nos parece hoje tão banal como o conceito de eu e algumas das suas aplicações como intimidade ou individualidade.

21 de Maio de 1908

“Há já uns poucos de dias que tinha ideia de escrever para mim estas notas íntimas, desde o dia 1 de Fevereiro de 1908, dia do horroroso atentado no qual perdi barbaramente assassinados o meu querido Pai e o meu tão querido Irmão. (...) Isto é uma declaração que eu faço a mim mesmo. Como é uma história íntima do meu reinado vou iniciá-la pelo horroroso e cruel atentado. (...)

Minha Mãe vinha-me a contar como se tinha passado o descarrilamento na Casa Branca quando se ouviu o primeiro tiro no Terreiro do Paço, mas que eu não ouvi: era sem dúvida o sinal: sinal para começar aquela monstruosidade infame, porque pode dizer-se e digo que foi o sinal para começar a batida. Foi a mesma coisa do que se faz numa batida às feras (...).

Eu estava olhando para o lado da estátua de D. José e vi um homem de barba preta, com um grande “gabão”. Vi esse homem abrir a capa e tirar uma carabina. Eu estava tão longe de pensar num horror destes que disse para mim mesmo, sabendo o estado de exaltação em que tudo isto estava “que má brincadeira”. O homem saiu do passeio e veio se pôr atrás da carruagem e começou a fazer fogo. (...)

Meu Deus, que horror. O que então se passou. Só Deus minha Mãe e eu sabemos (...).

Imediatamente depois do Buiça começar a fazer fogo saiu de debaixo da Arcada do Ministério um outro homem que desfechou uns poucos de tiros à queima-roupa sobre o meu pobre Pai (...) depois disto não me lembro quase do resto: foi tão rápido! Lembra-me perfeitamente de ver a minha adorada e heróica Mãe de pé na carruagem com um ramo de flores na mão gritando àqueles malvados animais, porque aqueles não são gente “infames, infames”. (...)

Quando de repente já na Rua do Arsenal olhei para o meu queridíssimo Irmão, vi-o caído para o lado direito com uma ferida enorme na face esquerda de onde o sangue jorrava como de uma fonte! Tirei um lenço da algibeira para ver se lhe estancava o sangue: mas que podia eu fazer? O lenço ficou logo como uma esponja (...).
Quando a minha adorada Mãe saiu da carruagem foi direita ao João Franco que já ali estava [no Arsenal] e disse-lhe ou antes gritou-lhe com uma voz que fazia medo “Mataram El-Rei: Mataram o meu Filho”. A minha pobre Mãe parecia doida. E na verdade não era para menos: Eu também não sei como não endoideci. (...)

O que se passou então naquelas horas no Arsenal ninguém pode sonhar! A primeira coisa que perdi completamente foi a noção do tempo. (...)

A minha pobre e adorada Mãe andava comigo pelo Arsenal de um lado para o outro com diferentes pessoas: Conde de Sabugosa, Condes de Figueiró, Condes das Galveias e outros falando sempre num estado de excitação indescritível mas fácil de compreender. De repente caiu no chão! (...) Depois vi bem o que era: o choque pavoroso fazia o seu efeito! Minha Mãe levantou-se quase envergonhada de ter caído. É um verdadeiro herói. (...)

Pouco tempo depois de termos chegado ao Arsenal veio ainda o Major Waddington dizendo que os Queridos Entes ainda estavam vivos; mas infelizmente pouco tempo depois voltou chorando muito. Perguntei-lhe “Então?” Não me respondeu. Disse-lhe que tinha força para ouvir tudo. Respondeu-me então que já ambos tinham falecido! Dai-lhes Senhor o Eterno descanso e brilhe sobre Eles a Vossa Luz Eterna Ámen!”

In Miguel Sanches de Baêna, Diário de D. Manuel e estudo sobre o regicídio,
Lisboa, Publicações Alfa, 1990. (págs 43-55)

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