O espírito do tempo
Joaquim Domingues
(...) Um tema tão abstruso como o do chamado acordo ortográfico pode, nesta perspectiva, valer como sintoma característico do presente estádio da sociedade portuguesa. Desde logo pelo facto de, não obstante um que outro assomo polémico, a discussão não ter conseguido despertar real interesse público, como se fosse questão de somenos importância. Com efeito, à míngua de convincentes razões filológicas para defender a norma em vigor ou para alterá-la, tem acrescido a ausência de outras motivações suficientemente claras e fortes para gerar um efectivo consenso.
Menos ainda se entende que, em vez de subir de instância, o problema tivesse transitado para o da política partidária, de onde por certo ninguém espera receber luzes esclarecedoras acerca da melhor solução para ele. Afinal, tão insubsistente se revelou a norma ortográfica decretada pelo Estado Novo nos anos quarenta ou a imposta pelo jacobinismo republicano de 1910 como a promovida agora sob o signo socialista. Quem se ufana de ensinar as crianças portuguesas a falar inglês, quem tão pouco preza a nossa língua como se constata nos pronunciamentos, nos documentos ou nos monumentos públicos, que autoridade tem para intervir no primacial factor da identidade portuguesa?
Apenas se confirma o crescente esforço pelo controlo sobre a vida mental, seja qual for a doutrina constitucional ou a obediência ideológica dos agentes da administração pública. A obsessão por legislar sobre as instituições do ensino, da comunicação e da cultura, pondo embargos ao livre voo do espírito e impugnando a normal diversidade, prenuncia a inevitável esclerose da sociedade, se é que não constitui já um sintoma dela. A proliferação das fórmulas, dos regulamentos e dos concursos há-de propagar os seus efeitos perniciosos até que uma geração heróica, agraciada por superior inspiração, ponha termo a este já longo e funesto ciclo.
(...)
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