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quinta-feira, 26 de março de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 3

António Carlos Carvalho





Consta da tradição chinesa que, um dia, tendo um dos seus discípulos perguntado a Confúcio o que faria se mandasse, o velho sábio respondeu: «Rectificava os nomes».
Lembro-me muitas vezes desta frase de Confúcio, proferida há 2500 anos, porque me vejo muitas vezes confrontado com o mesmo desejo imperioso. Deve ser um dos sinais destes tempos: os nomes estão cada vez mais trocados, adulterados, gerando confusões na linguagem que deveria ser meio de comunicação – termo que agora aparece substituído por «interacção», ou seja, as pessoas deixaram de comunicar entre elas, passando simplesmente a «interagir»... Há muitas formas de se ser bárbaro e, tal como aconteceu com o antigo Império Romano, os bárbaros há muito que atravessaram as fronteiras.
Rectificar os nomes: eis a tarefa essencial. Por isso, desde há muito tempo, tenho o costume de ler sempre com o lápis na mão ou à mão. Certa vez descobri que o George Steiner costuma fazer o mesmo, tendo mesmo afirmado que «o judeu é aquele que lê com um lápis na mão, corrigindo as gralhas.»
Seja como for, a verdade é que leio sempre com o lápis a postos para sublinhar e anotar o que vale a pena e também para corrigir constantemente o que encontro mal escrito. Aconteceu agora com um livro aliás magnífico, «Breviário Mediterrânico», do ensaísta croata Predrag Matvejevitch, acabado de reeditar pela Quetzal. Uma obra em que o autor, viajante incansável desse mar que é também nosso, acentua que «a Europa nasceu no Mediterrâneo», lugar de todas as misturas, as das gentes e as das coisas, das ideias e das culturas. Um lugar (digo eu) que nada tem a ver com Bruxelas ou Estrasburgo, por exemplo, e onde nunca houve uma «moeda única» (como se fosse o único valor que poderia unificar os europeus...)
Acontece que, várias vezes, ao longo do livro, aparece escrito «deserto do Sara» -- forma bárbara e absurda imposta pelos revisores tipográficos, tal como, aliás, consta agora dos dicionários. Ainda não há muito tempo que se escrevia «deserto do Sahara» ou «Sahará»; depois, de repente, alguém (certamente iluminado por uma lâmpada de néon) lembrou-se de transformar esse nome em «Sara». Sem se lembrar (ou sem saber) que Sara é o nome de uma das matriarcas da Bíblia, mulher de Abraham e mãe de Isaac; que Sara nunca andou por aquele deserto nem lhe deu o nome; que Sara é um nome feminino e que, portanto, nunca se poderia escrever «do Sara»...
Mas já que falamos de Sara, e de rectificação de nomes, tenho uma proposta a fazer aos meus colegas colaboradores dos «Cadernos de Filosofia Extravagante»:
Neste primeiro número, encontrei várias vezes escrito «abraâmicas». O que só faz sentido se adoptarmos de uma vez por todas o nome original: Abraham (e não «Abraão», que tão mal soa mas que aparece assim grafado nas traduções-traições correntes da Bíblia). Abraham, sim, e com o h que transcreve a letra que Deus inscreveu no nome original Abram – e que as edições Serra d’Ossa, aliás, tomaram para si como sinal distintivo. Mais uma razão para não nos esquecermos dessa letra essencial, que designa o feminino, a direcção, o questionamento, mas é também o artigo definido, o que particulariza o objecto ou o indivíduo. E corresponde ao número 5, o número mediano, o do equilíbrio do processo em curso. E corresponde igualmente ao chamado quinto dia da Criação, o da fecundidade, da multiplicidade das espécies vivas. É depois da mudança do seu nome, com a introdução do , que Abraham vai gerar Isaac, viver a aliança divina e pô-la completamente em prática, ao longo de uma vida sempre marcada pelas (dez) provações. E em Abraham se concretiza, finalmente, o projecto divino para o Homem, que Adam e os outros não souberam cumprir. Emmanuel Lévinas escreveu: «Todos os homens verdadeiramente humanos são descendência de Abraham.»
E já agora, para sermos rigorosos devíamos igualmente escrever Sarah (como a artista Sarah Afonso assinava os seus quadros), porque também Sarah, que se chamava inicialmente Saray («minha princesa»), mudou de nome – passando a incluir o de YHVH (repare-se que o Nome impronunciável inclui dois , mas também o Y (yod) de Saray...)
Tudo isto tem a ver com a questão dos nomes. Em termos bíblicos, sempre que alguém vê o seu nome alterado, sofre uma mudança de destino, de projecto pessoal, de acordo com a vontade divina. No caso de Abram, «pai elevado», passa a ser chamado Abraham, «pai de uma multidão de povos». Nada disto é um acaso ou uma insignificância; pelo contrário, tem uma relevância simbólica fundamental. Por isso, escrever «Abraão» ou mesmo «Abraam» é completamente diferente de Abraham.
Rectifiquemos os nomes – assim ajudamos a reparar o mundo.


Já agora fica aqui a referência do melhor estudo que conheço sobre a figura de Abraham:
«Abraham – ou la recréation du monde», de Raphaël Draï, ed. Fayard, 2007. Obra que esclarece totalmente as questões aqui levantadas.

1 comentário:

  1. Tenho receio de escrever o nome desse deserto, tantas foram as variantes lidas. Acho que a primeira que li foi "Saara".

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