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domingo, 13 de dezembro de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 41

Notícia de última hora: Fernando Pessoa é contra o acordo ortográfico!
Pedro Sinde

Nem de propósito e a propósito do artigo mais recente de António Carlos Carvalho, ia eu hoje a passar numa livraria na baixa do Porto quando vejo um livro intitulado: “Casas em entornos naturais”. Voltei a olhar, pensando que lera mal o “em” por “en”, um erro de simpatia com a língua portuguesa perfeitamente justificável. Não. Era mesmo português porque estava escrito depois “naturais” e não “naturales”, como deveria ser se fosse castelhano.
Na dúvida, perplexo, cheguei a casa e procurei nos meus dicionários: No Lello, o meu amado Lello, não existe nada a não ser derivados de “entornar”; no Dicionário da Academia (ouço já os apupos… não, eu não gastei um tostão com este “dicionário” – é assim que se auto-intitula esta coisa – foi uma generosa oferta): nada, a não ser o mesmo “entornar”. Em desespero, consulto um dicionário prestigiado de português do Brasil, o “Novo Dicionário Aurélio”: aí está! Num dicionário de português do Brasil existe a palavra “entorno”. Afinal não é castelhano, é “português”! Talvez seja apenas uma coincidência e se trate de um “castelhanismo” que existe no português do Brasil, mas não no de Portugal.
O que é perfeitamente aceitável, naturalmente.
Esta palavra não foi definida pelo acordo, mas muitas outras foram e, isso sim, é de todo inaceitável. Fernando Pessoa tão citado conforme as conveniências de uns ou de outros, dizia isto, textualmente:
“A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito. O Estado NÃO TEM (o destaque, é claro, é meu) direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever numa ortografia que repugno, como não tem direito a impor-me uma religião que não aceito.” (Fernando Pessoa, “A Língua Portuguesa”, Assírio, p. 90).
Pessoa aceita que haja um acordo ortográfico, mas apenas para os documentos de Estado, nada mais. De resto, naquela época havia, de facto, uma profusão de grafias e, de algum modo, fazia-se sentir a necessidade de ordenar um pouco esse campo. Nada disto se passa hoje; Pessoa seria, certamente, integralmente contra este acordo, que não se devia chamar acordo, que etimologicamente designa um ato [sic] feito com o coração e este é apenas uma abstração [sic] feita a pensar em mercados e coisas escuras assim.

E por falar em etimologia, a tónica empirista que preside a este acordo está a matar a etimologia e, por isso, a Tradição. Quer dizer, se passarmos a tendencialmente escrever como falamos, vamos omitir letras que nos ajudavam a identificar a etimologia da palavra; pois, é verdade que não é nada democrático que uns poucos saibam e uns muitos ignorem, é melhor que todos ignoremos, pois claro, a teoria dos vasos comunicantes (água em cima num vaso, água em baixo no outro, ligamos um ao outro e ficam iguais em termos de quantidade; perfeito: Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, … todos iguais, todos diferentes). Tudo isto não passa de um artifício falso, de uma camisa-de-forças.
Se não soubermos a etimologia das palavras, não saberemos o que estamos a dizer quando dizemos, desconheceremos a sua origem, a nossa história, a nossa memória. Este acordo é em tudo contra a etimologia, porque privilegia a oralidade (haveria, de resto, que perguntar qual oralidade, porque cada um destes países tem uma oralidade maravilhosamente diversa. A propósito do plebeísmo deste acordo, cito o mesmo Pessoa, como se antecipasse em quase 100 anos o que agora está a acontecer: “A ortografia etimológica é a expressão gráfica da continuidade da nossa civilização e da nossa cultura com a civilização e a cultura dos gregos e dos romanos, em que aqueles tiveram origem e têm vida.” (Esta ideia está expressa, de resto, consequentemente, na “Mensagem”, quando Pessoa faz correr os impérios como uma sequência que Portugal vem a herdar espiritualmente – a luz vem do oriente grego desembarcar em Lisboa com o mito de Ulisses; assim Pessoa passa um pouco por cima de Roma, todos sabemos porquê).
Este acordo desrespeita esta maravilhosa diversidade, é apenas mais um elemento desta homogeneização a que por todo o lado assistimos. Quem quer ler o espantoso “brasileiro” de Suassuna em versão “pós-acordo”? Para não me alongar mais sobre este tema aqui, sugeria esta ligação:
http://novaaguia.blogspot.com/2008/01/ortografia-acordo-ou-desacordo.html
É claro que não se espera que uma língua permaneça sempre igual; ela é um organismo vivo e, como tal, vive no tempo e do tempo. Mas estas alterações eram feitas sabiamente pelo povo na oralidade, integrando com suavidade, por exemplo, os estrangeirismos. Mas a ação [sic] sutil [sic] da elite é apenas uma pobre atuação [sic] no espetáculo [sic] da economia, o único valor que hoje é aceite como “motor”; ou então tudo isto não passa de uma conjetura [sic] minha. Seja como for, é caso para ficar estupefato [sic]! Mas é a fatura [sic] a pagar pelo “progresso”, é um fato [sic] inegável e até mesmo um fator [sic] de “progresso”. Também podemos ver aqui o reflexo da hiperatividade [sic] caraterística [sic] desta época, que sempre tem de tudo destruir, como Picasso no seu ato [sic] de “canibalismo” a recriar (recriar é uma forma simpática de dizer “destruir”, mas hoje dir-se-ia antes “dialogar” com o passado) quadros antigos. Bom, mas talvez isto fosse apenas um traço do caráter [sic] de Picasso e não a expressão de uma época. Temos de usar de circunspeção [sic], sim, temos de ser circunspetos [sic] nos nossos juízos. Enfim, são os contrassensos [sic] da nossa época. No fim, todos os que, sem qualquer tato [sic] nos querem impor o acordo serão corresponsáveis [sic] por este ato [sic].
Será que já ninguém se lembra de um texto, tão tremendo e lúcido como maravilhoso, de António Telmo intitulado: “Como a perversão na linguagem leva à demência na sociedade”? Esta será a ocasião para ler o no seu livro “Filosofia e Kabbalah”, da Guimarães Editores.

Nota: O leitor pergunta-se, talvez, como é que eu descobri, detetei [sic] ou fiz uma inspeção [sic] a tantas palavras que sofrem alteração na grafia; é fácil: ofereceram-me um dicionário da Porto Editora que é bilingue: quer dizer, português antes do acordo e outra coisa qualquer depois do acordo – afinal, temos de estar preparados para aprender a falar com correção [sic]!
Todos temos de nos atualizar [sic] neste setor [sic] ou seção [sic] da língua portuguesa. Aqueles que gostam de futebol sempre podem esquecer estas dificuldades e ir ver a seleção [sic] a brincar ao bola-pé, como lhe chamava o nosso imenso Pascoaes; bom, no fim, no fim, agora até será mais fácil escrever, é quase só uma questão de subtração [sic] de letras. A menos que o leitor seja muito suscetível [sic] a estas questões de letras e outras coisas afins. Enfim, mas eu devo ser, como o António Carlos Carvalho, apenas um ultrarromântico [sic] ultrapassado que continua a achar que toda a volutuosidade [sic] da nossa língua se vai perdendo, deste modo, em secura agreste.

1 comentário:

  1. Oportuno, como sempre, o Pedro Sinde diz no seu artigo o seguinte: «se passarmos a tendencialmente escrever como falamos, vamos omitir letras que nos ajudavam a identificar a etimologia da palavra. (…) Se não soubermos a etimologia das palavras, não saberemos o que estamos a dizer quando dizemos, desconheceremos a sua origem, a nossa história, a nossa memória. Este acordo é em tudo contra a etimologia, porque privilegia a oralidade (haveria, de resto, que perguntar qual oralidade, porque cada um destes países tem uma oralidade maravilhosamente diversa).»

    Temos assim duas faces da mesma “moeda, e na complexa fixação e evolução da Língua elas influenciam-se continuamente. Porém – destaque-se – em níveis diferentes. Diz Pessoa «A linguagem falada é natural (itálico), a escrita civilizacional (itálico). A linguagem falada é momentânea (itálico), a escrita duradoura (itálico)».
    Na influência recíproca da oralidade e da escrita, sabemos que a primeira, num processo lento e natural – como também acentuou o Pedro Sinde – influencia a palavra escrita, fixando nesta determinados termos e expressões. Mas deve ser um processo natural, e não com acordos assinados à maneira dos políticos. Então, a palavra escrita, pela pena dos seus cultores, fixa, com o tempo, o que de melhor e mais significativo colhe da experiência do falar popular. Mas, curiosamente, até neste campo pode haver níveis diferentes. Vejamos dois exemplos. O primeiro o de um escritor que utiliza uma linguagem excessivamente regionalista de expressões e termos próprios, típicos de um falar do povo, e que, podendo conter certa riqueza linguística, a sua escrita poderá não ter um cunho e um perfil desejável, no sentido de ser universal - tendência de qualquer grande Arte. O outro exemplo pode ser o de Camões que fixa na escrita de «Os Lusíadas», nos que anseiam a aventura e na figura de negação que é o Velho do Restelo, o significado essencial de Urano e Saturno (movimento contra a inacção; revelação contra a cristalização; destemor contra o medo); ou então o exemplo de Pessoa quando escreve «Ó mar salgado, quanto do teu sal/ são lágrimas de Portugal!» Repare-se no quanto de SENTIMENTO E VIVÊNCIA SECULAR DE UM POVO E DE UMA PÁTRIA (por isso universal o poema) ESTÃO CONTIDOS nos verso pessoano! O poeta extrai e fixa, na escrita, a quintessência da alma de um povo.
    Resumindo: a simplificação simplista (seja-me perdoada a expressão) da ortografia do acordo apagará, no futuro, a memória da evolução (natural) da Língua. É claro que este acordo ortográfico está na corrente do mundo, a da “formatação de tudo”. Pessoa tinha razão e por isso alertou. O acto social que é o da palavra falada (pese embora o que possa ter de cultural de permeio) e pese ainda o facto da actual massificação da gravação da voz humana, é sempre o episódio quotidiano, como, mais ou menos, é o jornal diário no plano da literatura, salvo os tradicionais cadernos próprios (que já não existem), ou como é a linguagem de um contrato comercial que, no que refere, confere exactidão, mas não civilização!
    Ainda quanto à escrita - por só ficar o melhor do melhor para o futuro longínquo - é que Faguet se referiu à concisão como a condição necessária para passar a salvo de todas as mudanças na história. Mas há que meditar no facto de a memória da vida (que as palavras encerram) poder ser interrompida. Isto anda a par, pelo menos em Portugal, da pressa que se tem verificado em «repor a história», que mais não é do que fazer a história da actualidade CONTRA o que não é actualidade. Tudo isto facilita assim o que de tempos a tempos acontece: o aparecimento (a par mas subtilmente afastando os que sabem,) de muitos dispostos a “educar as massas”(!).

    Eduardo Aroso

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