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segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 37

António Carlos Carvalho

Quando se mora há 62 anos na mesma cidade, e essa cidade é Lisboa, que tantas transformações tem sofrido (sofrer é o verbo exacto) ao longo destes anos, é uma fatalidade dar-se conta de agressões praticamente diárias. A loucura geral também deixa traços no tecido da cidade.
Moro num bairro exemplar, Campo de Ourique, hoje quase um oásis no meio de tanta degradação urbana. Não o trocaria por nenhum outro lugar de Lisboa. Mas também este bairro não está imune a problemas – aqui há de tudo, menos cinemas ou casas de espectáculos, espaços maiores para acontecimentos culturais.
O cinema Paris, na Rua Domingos Sequeira, continua em ruínas, uma mancha obscena nessa rua simpática. Quanto ao Europa, meu vizinho na Rua Almeida e Sousa, permanece encerrado, apenas habitado pelos pombos na fachada.
aqui falei dele em tempos, glosando a metáfora do seu nome, Europa, e relacionando-a com o estado da chamada União Europeia.

Interior do Cinema Europa
Eis que agora me chega às mãos um panfleto desesperado, divulgado pelo Movimento SOS Cinema Europa, nascido em Fevereiro de 2005, na sequência de notícias sobre a demolição daquele edifício para a construção de um condomínio. Apesar de tudo o que foi feito (reuniões públicas, acções de sensibilização da população, panfletos e cartazes no bairro, abaixo-assinado com cerca de 2200 assinaturas, intervenções na Assembleia Municipal e sessões públicas do executivo), «não foi possível travar a demolição do edifício e a construção de um condomínio que, segundo consta, será iniciada dentro de um mês.»
No entanto, acrescenta ainda o panfleto dos moradores desesperados e preocupados, no projecto aprovado para o local, o Município reservou por dois anos o rés-do-chão do novo edifício, com cerca de mil metros quadrados, para a instalação de um equipamento cultural, embora sem ter tomado ainda uma decisão definitiva «quanto à oportunidade e conveniências de tal reserva.»
Apesar de não ser o ideal, o movimento apresentou uma candidatura ao Orçamento Participativo de 2009 para a instalação de um «espaço cultural de base local» no piso reservado pela Câmara no novo edifício. A candidatura encontra-se em fase de votação até dia 15 deste mês. Quem estiver interessado em salvar este nicho cultural (é o que nos resta ...) pode consultar o site
Por mim, depois de cumprir o meu dever de voto (nestas coisas ainda voto), concluo, tristemente: Europa vai agora ser apenas um condomínio – um sinistro destino metafórico para este continente raptado de si mesmo, não pelo touro-Zeus mas pelo euro endeusado: a única união que realmente existe ou a que temos direito. Quanto à famosa cultura, vamos lá ver se ainda cabe num rés-do-chão, bem rasteirinha... Os crentes dirão: valha-nos São Vicente, padroeiro da cidade. Os outros, como eu, talvez sonhem com os corvos que guardavam as relíquias do santo e que agora bem podiam dar umas valentes bicadas nos vendilhões deste templo laico!

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