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terça-feira, 8 de março de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 125



Um dia de tédio em pleno Carnaval

Cynthia Guimarães Taveira

Atravessara o vale das sombras. Conhecera-as uma a uma. Regressara esquartejado, ensanguentado. Como a guerra da alma pode ser violenta! Só Deus sabia em que planos tudo se passa. E que atitudes interiores tinham, afinal, repercussões?

É Carnaval hoje, e todos desfilam a sua máscara que não é máscara, mas a realidade da sua alma: homens peludos com baton e perucas desajeitadas, elas de biquinis de lantejoulas transversais à sua gordura. Não são travestis sequer, não têm a sua dignidade. E elas não encarnam a beleza. E pensa: aquele vazio interior desta época mostra-se hoje mais garrido, mais exteriorizado. O mundo não é um teatro mas a realidade pura e dura. O mundo não é uma ilusão mas uma verdade, entre muitas, pode ser, mas sempre uma verdade.

Afasta-se e delira. Sonha voar, em voo rasante à terra ainda não carcomida pelos homens. Ser leve, flutuar longe de dia 12 de Março quando o povo sair à rua. Sim, quando ele sair à rua, como entidade única (o falso uno diverso) protestando, dizendo não, o seu não será outro: fará uma pintura nunca antes feita, escreverá linhas estendidas no espaço e no tempo como jardins suspensos e o seu “não” será para dentro, recusa de dentro desse povo que é e será sempre carne para canhão, armas de arremesso de tubarões demasiado cobardes para se morderem.

Ai as lutas da alma! Ai se soubessem dos anjos e demónios em rápidos voos e dos olhos do gato que sai do esconderijo ainda bocejando, passando do sonho para o lado de cá com a delicadeza de um bem-aventurado. Os celtas diziam que os olhos do gato eram portas para outros universos. Talvez um outro universo nos espreite através dos olhos deles e sorria das nossas histórias.

Às vezes estamos próximos de Cristo só pelo tédio que ele também sentiu. Tédio criativo ou estéril, mas sempre preso ao movimento da vida, dos átomos. Mesmo em tédio os átomos se movem e se agitam e vivem.

Às vezes sentia-se num funeral perpétuo e como uma carpideira honesta chorava o seu Portugal:
“Ai meu Deus“, dizia, enquanto batia no peito e lágrimas de genuíno sabor caíam, “onde estão os cavaleiros e os reis, e as palavras de honra que bastavam?”

Chegara à conclusão que não poderia ter máscaras, porque não existiam máscaras. Não poderia haver o que não havia, como não poderia haver uma cor nova. Todas as máscaras eram afinal todas as verdades da alma e até em Veneza, onde os fantasmas do passado passam em gôndolas, sim, até aí, tudo era verdade. A verdade do mistério. Graças a Deus. Que seria de nós sem mistério?

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