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sexta-feira, 10 de julho de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 22

Às Moscas
Pedro Martins

Grande, negra, perturbante, a varejeira sobrevoou a nova sala do Museu de Évora, onde o majestoso políptico flamengo da Vida da Virgem se encontra exposto à admiração da grei. Ante a investida alada, o garoto, sete anos desarvorados em cinco réis de gente, deu um pulo, desceu os degraus que formam um pequeno anfiteatro e, com o boné de pala em riste, procurou dar caça ao insecto. Nessa altura, a funcionária circunstante tomou-se de brios e foi no encalço da mosca minaz. Ignoro a sorte que decidiu a refrega, se a houve: voltei costas ao magnífico retábulo quinhentista e dispus-me a percorrer as outras galerias da pinacoteca, agora valorizada por incontáveis trabalhos de restauro e investigação.
Entre nós, há por certo museus maiores e museus mais ricos (se esta última, benévola palavra se presta à nomeação de um ror de penúrias). Mas o acervo eborense, notavelmente ecléctico por mor do legado de Frei Manuel do Cenáculo, oferece raro panorama da pintura antiga portuguesa (entre o secreto Grão Vasco e o luminoso Sequeira, descobre-se, com surpresa, uma tela de André Gonçalves, A Sagrada Família, que quase desmente a pobreza pictórica do Barroco nacional). E isto a par da colecção de arte estrangeira, pouco menos do que impensável num museu regional, onde avultam os círculos de Gerard David, Guido Reni ou Rembrandt, e nomes ilustres como Morales, Teniers ou Avercamp. Há ainda o caso ímpar, mas equívoco, de Álvaro Pires de Évora, pintor português de nascimento, mas escolar italiano, ao modo aurífero de Siena.
Reaberto há poucos dias, o museu ressurgiu de um hiato: cinco anos de obras que custaram uns quantos milhões de euros. No sábado, ao começo da tarde, apesar da boa nova, e a despeito dos tesouros que guarda, não teria sequer uma dezena de visitantes nas suas salas. Há ali história, arte e pensamento que implicam a Nação – mas os portugueses vão perdendo os derradeiros vínculos à Pátria. Às vezes, percebo que nos tornámos uma gente crassa, e lembro-me daquela senhora, então Ministra da Cultura, que, vai para dois anos, afirmou haver demasiada arte portuguesa nos museus nacionais (ou coisa que o valha: cito de memória, está bem de ver). Com a violência de um insulto, tudo fica irremediavelmente no seu lugar. Tudo, ou quase…

No sábado, por várias vezes surpreendi Joaquim Oliveira Caetano, o entusiástico director do museu, vagueando pelas salas desertas. Inconfundível nos seus óculos de massa, reconheci-o por semelhança com a fotografia que o Público dera à estampa na segunda-feira anterior, dia da reabertura, amplamente divulgada em quatro páginas daquele jornal. Não sei o que o levaria a estar por ali, naquele dia, àquela hora: se uma dedicação tenaz, extremada ao ponto humílimo de suprir a falta manifesta do pessoal vigilante; se o maravilhamento de quem contempla na obra acabada a realização criadora de um sonho antigo; se a natural expectativa de uma afluência ridente, no primeiro dia de lazer desta nova era.
Revisitava a galeria da pintura portuguesa mais tardia, quando a funcionária zelosa se abeirou do seu director:
– Talvez o senhor doutor pudesse tratar da mosca que está ali pousada…
Eu ia jurar – quem saberá dizê-lo? – que era a varejeira, a grande mosca negra que perpassou o início desta crónica. Estava pousada na ombreira de uma janela, que a remodelação da galeria terá acrescentado à área de exposição. Resoluto, o director dobrou em quatro o jornal que estava a ler (era ainda o Público, mas afianço que se tratava da edição desse dia), deu dois passos em direcção à janela e, de um salto, desferiu sobre o insecto o golpe fatal que logo o deitou por terra.
Acaso haveria melhor remate para este relato? Cuidei que houvesse. E, com os bodegóns de Josefa de Ayala a dois passos, não resisti à chalaça pronta:
– Mais uma natureza-morta, hein?!
O director endossou-me um leve sorriso e afastou-se do local, não sem antes evocar a parecença da sua lide com o gesto famigerado de Barack Obama, que matou uma mosca durante uma entrevista televisiva. E eu, impenitente do humor fácil, dei comigo a pensar que este homem notável estava, ainda e sempre, à altura das circunstâncias. Mesmo num museu às moscas.

1 comentário:

  1. Esta doce crónica é uma verdadeira obra-prima, na forma elegante e elevada,na discreta erudição, no humor suave e pausado como o voo de uma mosca alentejana.
    Entre este belo museu deixado às moscas e os 85 mil que aplaudiram o nosso ídolo Ronaldo no coliseu de Bernabeu, fica a medida da pobreza deste nosso pobre país, não a secura provocada pela crise mas outra, antiga, irremediável, a do espírito.
    Admirável escrito este do Pedro, um murmúrio na tarde, um convite e um apelo, um hino ao Alentejo, à beleza e à arte, a pintura, a harmonia e o dedilhar mavioso das palavras...

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