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domingo, 5 de setembro de 2010

O CAMINHO DO CAMINHO, 15

Cynthia Guimarães Taveira


Alegoria da Justiça
, de Albrecht Dürer


A respiração da justiça
Nascera com o estranho dom de sentir no corpo tudo o que se passava no seu país. Se colasse um mapa do seu país ao corpo coincidiam. O país era o seu próprio corpo. Não sabia porque tal tinha acontecido. Nascera fora desse país mas depressa, ainda com meses, fora obrigado a voltar pelas mão do destino. O destino não permitia que ele vivesse numa outra pátria. E assim, por estranhos acasos, um dia deu-se conta de que tudo o que acontecia no seu país de alguma forma tinha reflexos no seu corpo. Se havia um atentado, uma sabotagem com políticos que morriam e que, com a sua morte, mudavam o rumo do pais, logo o seu corpo entrava em choque sem razão aparente. A taquicardia iniciava-se num bailado descompassado e, por horas, não sentia outra coisa sem ser o coração a bater. Achava estranho este fenómeno. Ser português implicava sempre esta ligação ao corpo? Perante situações de injustiça a que assistia sentia-se cegar momentaneamente, e a ira tomava conta dele, ao ponto de perder a razão. A injustiça provocava-lhe a cegueira da justiça. Uma espécie de abismo que se abria perante ele, com nenhuma sabedoria oriental, capaz de morrer como um herói celta por uma causa, num ápice, numa entrega absurda. Sofria de tremores sempre que um político ganhava as eleições e dava com ele a culpabilizar o povo que, bem vistas as coisas, não era culpado de nada a não ser de se deixar manipular facilmente. Por outro lado, sempre que assistia a um acto extraordinariamente doce, sensível e humano do seu povo, desfazia-se em lágrimas de amor. Chorava convulsivamente sempre que um gesto de solidariedade genuína, de entrega ao próximo ou distante acontecia. Via ali a origem de um mundo novo, como um nascimento, um parto para a verdadeira luz. Mas erguia-se nas tabernas sempre que, juntos, os homens bebidos apontavam o dedo a quem não conheciam senão através dos ecrãs, numa espécie de vício nacional inquisidor. Erguia-se com vontade de lutar com todos eles. Amava a justiça e não o sabia. Por vezes sentia-se mesmo a justiça. Aconteceu-lhe um dia, fraco em tamanho e em corpo, erguer-se perante skinheads, e tentar agredi-los nessa justiça cega. Era uma ira sofrida. Porquê detestar um negro só porque é negro? Porquê esse ódio gratuito e diabólico? Porque é que o ódio dos outros o fazia ter ódio também? Seria isso justo? Por mais que digam que não, dizia de si para si, a justiça está ligada à vingança, só ela pode repor as coisas no seu lugar. A justiça, aliada à vingança, era o contraponto da injustiça. Os próprios Templários sabiam-no. Mas, dentro dele, e do seu corpo que era o seu país tinha a certeza serena de uma coisa: no fundo, bem lá no fundo da sua alma não poderia nunca julgar ninguém. Nunca teria todos os factos, nunca poderia ver todas as nuances da alma, nunca poderia ter uma perspectiva de todas as circunstâncias, contextos e condições, nunca saberia o “como” de entrar no coração dos homens. Nunca seria justo, porque justo só o era Deus. No entanto, o seu coração pulsava sempre quando assistia a uma injustiça. De onde viria esse valor? De que raiz divina provinha essa espontânea vontade de repor as coisas nos seus lugares e de elevar a verdade acima da mentira? Afinal, também a justiça era um enorme mistério, um segredo camuflado no reflexo dos espelhos da consciência. A respiração da justiça oscilava entre pólos de consciência. A justiça era um ser vivo, autónomo, belo, perigoso, que sendo de todos não era de ninguém. Assim como o amor. E Portugal era um corpo sensível como um dente-de-leão levado pelo vento: ora a caminho da sua destruição, ora a caminho do céu, da sua sublimação.

3 comentários:

  1. Bom dia!

    Se sentíssemos o corpo do nosso país como se fora nosso, ainda que em parte, haveria mais portugueses em Portugal, em vez de muitos aportuguesados e outros que nem isso são.

    Obrigado pelo texto

    Eduardo Aroso

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  2. Obrigada eu, O Bar do Ossian e Eduardo Aroso.


    Cumprimentos da Cynthia

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