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quarta-feira, 24 de junho de 2009

A DOR E O AMOR, 3

Antero de Quental
O drama da sua vida


I

Houve em gérmen, em Antero de Quental, um santo, um filósofo e um herói.
Herói, isto é, o idealista trabalhador, o visionário homem de acção, o revolucionário ardente e generoso, cuja figura impávida se destaca com um relevo bélico de atleta e uma fulgurância juvenil de aventureiro iluminado. É o Antero da mocidade. Conheci-o ainda. Mostraram-me há dias um retrato dessa época. Era ele, lá estava a mesma cabeça resplandecente e vigorosa: a juba de oiro leonina, a testa curta de Hércules Farnesio, o olhar azul, cheio de intrepidez e candura, e o lábio virgem, duma pureza helénica, duma frescura silvestre e matinal. Este Antero, impetuoso e combatente, alegre figura indómita de paladino, morreu novo.

O Grupo dos Cinco: Antero está ao centro; Junqueiro é o primeiro a contar da direita do leitor. Da esquerda para a direita, vêem-se ainda Eça de Queirós, Oliveira Martins e Ramalho Ortigão.

Filósofo, isto é, o espírito abstracto e metafísico, vivendo não a vida efémera e relativa das aparências e dos fenómenos, mas a vida invisível e íntima do universo, interrogando não o como, mas o porquê da existência, librando-se, ávido de infinito, no Tempo e no Espaço, a contemplar até à morte o enigma eterno.

Nas almas medíocres e superficiais actua sobretudo a realidade transitória das linhas e dos sons, das formas e das cores. As naturezas elevadas, ao contrário, são sempre subjectivas e metafísicas.

Explicar a existência, atingir o infinito, eis para elas o martírio cruciante, a necessidade inexorável. E à medida que os anos decorrem, que os apetites se extenuam, que a animalidade se adelgaça, mais o espírito idealista se vai libertando das exterioridades enganadoras do mundo tangível e material.

Em Antero foi inato e precoce, irresistível e orgânico, esse dom de filosofia, de curiosidade transcendente. Desde moço ao fim da vida cravou os olhos hipnotizados no mistério supremo do au delà.

As teorias duravam-lhe meses ou semanas, mas, aniquilada uma, arquitectava outra, porque o seu pensamento superior não podia exilar-se do infinito sem raias para a mesquinhez anedótica da estreita vida dos sentidos.

Enquanto novo e combatente, a acção equilibrou nele a contemplação, e a pletora de saúde e o movimento da luta não lhe deixavam derivar todas as energias anímicas para as regiões supremas e vertiginosas da eternidade e do absoluto. Era um balão cativo. A doença partiu o cabo, e lá foi o aeróstato levado pelos ares, através de nuvens, através de raios, através de estrelas, num voo de águia alucinada e fabulosa, até desaparecer e engolfar-se para sempre no abismo infinito, onde as miríades sem conta de nebulosas e de mundos são argueiros invisíveis e fogos-fátuos instantâneos.

O santo, isto é, a alma para quem a virtude é o fim único da vida, o motivo soberano da existência. Antero aliou à grandeza intelectual a grandeza moral. Ao talento correspondia o carácter. Razão vigorosa, consciência límpida. Há moralistas imoralíssimos. Em Antero, concordância plena, identificação ininterrupta do escritor com o homem. Mais bela ainda que os seus livros, a sua vida.

Mas nem o heroísmo, nem a filosofia, nem a virtude criariam, de per si só, o grande, o imorredoiro poeta dos dois últimos livros dos Sonetos. O poeta anterior era de segunda ordem. Quem operou então a maravilha? O sofrimento. A doença, aniquilando-o, imortalizou-o.

(continua)

Guerra Junqueiro

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