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quarta-feira, 11 de março de 2009

A PONTA DO VÉU, 14

Hermenêutica. Foi o que Pedro Martins procurou fazer ao Jesus Cristo em Lisboa, tragicomédia em sete quadros que Teixeira de Pascoaes escreveu em parceria com Raul Brandão, e que veio a lume no início de 1928. O resultado será, porventura, surpreendente: por detrás da aparente ortodoxia da peça, emerge uma cristo-angelogia que evoca a heresia de Prisciliano e o judeo-cristianismo dos três primeiros séculos da nossa era, que foi o da primitiva Igreja de Jerusalém, reunida em torno de Tiago, o Justo, e também o do ebionismo. Deixa-se ao leitor o começo do artigo.

Pedro Martins nasceu em Lisboa, em 22 de Janeiro de 1971, dia de São Vicente. Vive actualmente em Sesimbra, na Cotovia. Frequenta a tertúlia de António Telmo, em Estremoz.

Jurista de profissão, formou-se em 1993, na Faculdade de Direito de Lisboa. Entre 1998 e 2005, foi colaborador da Câmara Municipal de Sesimbra nas áreas da informação e da cultura, tendo sido um dos editores da agenda e revista cultural Sesimbra Eventos e um dos coordenadores da colecção Livros de Sesimbra. Colaborou nas revistas Sesimbra Cultura e Teoremas de Filosofia.
Tem estado ligado à organização de vários colóquios de filosofia portuguesa: A Filosofia Portuguesa de Álvaro Ribeiro (Sesimbra, 2005); Agostinho da Silva e o Espírito Universal (Sesimbra, 2006); No Signo do 7 – 150 Anos de Filosofia Portuguesa (Sesimbra, 2007). Publicou O Anjo e a Sombra – Teixeira de Pascoaes e a Filosofia Portuguesa (Pena Perfeita, 2007); Palavras Que Fazem Ver – 57 Livros para a História da Filosofia Portuguesa (catálogo da exposição, Câmara Municipal de Sesimbra, 2007); e, na Serra d'Ossa, em 2008, O Céu e o Quadrante: desocultação de Álvaro Ribeiro.
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UMA HERESIA DE PASCOAES
Algumas notas sobre o Jesus Cristo em Lisboa
«E perguntados – conta Fernão Mendes Pinto – se tinhão
em sua lei que viera Deos em algum tempo ao mundo,
vestido em carne de homem humano, disserão que não,
porque não podia haver cousa que obrigasse a tamanho extremo;
porque pela excelência da natureza Divina estava livre de nossas misérias,
e muito esquecido de cobiçar thesouros da terra
porque tudo era pouquidade na presença de seu resplendor.»

Jaime Cortesão

O Humanismo Universalista dos Portugueses


Que Teixeira de Pascoaes cultivou a heresia, sabemo-lo pelo próprio. O poeta confessa-o na suma antropológica d’O Homem Universal: “Sou um ignorante, no campo da ciência; e, no campo teológico, um herético”. Noutro passo do mesmo livro, Pascoaes retoma o rasto da confidência: “Quem glorifica um escritor? E um escritor herético para crentes e descrentes? E até para ele mesmo? (…) //Quem aplaude um escritor herético em todos os sentidos? Aplaudi-lo! Ou o queimam num auto-de-fé ou num auto contra a fé! Ou, mil vezes pior, escrevem, acerca dos seus trabalhos, baboseiras, nos jornais!” No lance, a acrimónia do escritor terá sobretudo ficado a dever-se à viva hostilidade com que o São Paulo havia sido recebido, três anos antes, em meios antagónicos. Não fora essa, porém, a primeira vez que um livro do mentor do Saudosismo lograra suscitar controvérsia na opinião pública, ou publicada, por mor das ideias religiosas que nele eram veiculadas…
Com efeito, e sem necessidade de maior regressão na escala cronológica, dir-se-á que já em 1928 a edição do Jesus Cristo em Lisboa, tragicomédia em sete quadros escrita em parceria com Raul Brandão, tinha de pronto gerado celeuma junto de alguns círculos católicos, como os que eram representados pelo jornal A Voz, um diário da capital em cuja edição de 24 de Janeiro daquele ano surge inserta violenta notícia sobre a peça. Nela se previne os leitores “de que o livro dos Srs. Pascoaes e Brandão não deve ser comprado nem lido pelos católicos”. O escrito, em que se transcreve parte de um artigo publicado, na véspera, no Diário de Lisboa, chega a ser insultuoso para os dois escritores, a quem se atribui, pasme-se, um estado de acentuada decadência!
Pascoaes não gostou e, acto contínuo, escreveu ao periódico católico. Poucos dias depois, dará a resposta devida ao Diário de Lisboa, em defesa já subscrita também por Raul Brandão. A tónica que perpassa as duas reacções pode resumir-se nisto: a peça não ataca os dogmas do Catolicismo; tem apenas o intuito de acordar o espírito cristão no meio social. Não é herético representar Jesus num trabalho literário, como o não é pintar ou esculpir a figura de Cristo.
Na verdade, não há vislumbre evidente de heresia à superfície deste livro admirável. Nem será, aliás, de crer que dois dos mais poderosos criadores literários do século XX português tenham amiúde e insistentemente citado ou glosado trechos dos Evangelhos (sobretudo do de Mateus, mas também dos restantes) para encobrirem supostas carências da sua imaginação. A pertinácia com que as personagens de Pascoaes e Brandão actualizam, pela palavra ou pelo gesto, as passagens do Novo Testamento, parece radicar no propósito preciso de colocar a acção dramática em perfeita conformidade com os ensinamentos de Cristo.
E no entanto…
(...)
Pedro Martins

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