Hermenêutica. Foi o que Pedro Martins procurou fazer ao Jesus Cristo em Lisboa, tragicomédia em sete quadros que Teixeira de Pascoaes escreveu em parceria com Raul Brandão, e que veio a lume no início de 1928. O resultado será, porventura, surpreendente: por detrás da aparente ortodoxia da peça, emerge uma cristo-angelogia que evoca a heresia de Prisciliano e o judeo-cristianismo dos três primeiros séculos da nossa era, que foi o da primitiva Igreja de Jerusalém, reunida em torno de Tiago, o Justo, e também o do ebionismo. Deixa-se ao leitor o começo do artigo.
Pedro Martins nasceu em Lisboa, em 22 de Janeiro de 1971, dia de São Vicente. Vive actualmente em Sesimbra, na Cotovia. Frequenta a tertúlia de António Telmo, em Estremoz.
Jurista de profissão, formou-se em 1993, na Faculdade de Direito de Lisboa. Entre 1998 e 2005, foi colaborador da Câmara Municipal de Sesimbra nas áreas da informação e da cultura, tendo sido um dos editores da agenda e revista cultural Sesimbra Eventos e um dos coordenadores da colecção Livros de Sesimbra. Colaborou nas revistas Sesimbra Cultura e Teoremas de Filosofia. Tem estado ligado à organização de vários colóquios de filosofia portuguesa: A Filosofia Portuguesa de Álvaro Ribeiro (Sesimbra, 2005); Agostinho da Silva e o Espírito Universal (Sesimbra, 2006); No Signo do 7 – 150 Anos de Filosofia Portuguesa (Sesimbra, 2007). Publicou O Anjo e a Sombra – Teixeira de Pascoaes e a Filosofia Portuguesa (Pena Perfeita, 2007); Palavras Que Fazem Ver – 57 Livros para a História da Filosofia Portuguesa (catálogo da exposição, Câmara Municipal de Sesimbra, 2007); e, na Serra d'Ossa, em 2008, O Céu e o Quadrante: desocultação de Álvaro Ribeiro. ____________
UMA HERESIA DE PASCOAES
Algumas notas sobre o Jesus Cristo em Lisboa
«E perguntados – conta Fernão Mendes Pinto – se tinhão
em sua lei que viera Deos em algum tempo ao mundo,
vestido em carne de homem humano, disserão que não,
porque não podia haver cousa que obrigasse a tamanho extremo;
porque pela excelência da natureza Divina estava livre de nossas misérias,
e muito esquecido de cobiçar thesouros da terra
porque tudo era pouquidade na presença de seu resplendor.»
Jaime Cortesão
O Humanismo Universalista dos Portugueses
Que Teixeira de Pascoaes cultivou a heresia, sabemo-lo pelo próprio. O poeta confessa-o na suma antropológica d’O Homem Universal
: “Sou um ignorante, no campo da ciência; e, no campo teológico, um herético”. Noutro passo do mesmo livro, Pascoaes retoma o rasto da confidência: “Quem glorifica um escritor? E um escritor herético para crentes e descrentes? E até para ele mesmo? (…) //Quem aplaude um escritor herético em todos os sentidos? Aplaudi-lo! Ou o queimam num auto-de-fé ou num auto contra a fé! Ou, mil vezes pior, escrevem, acerca dos seus trabalhos, baboseiras, nos jornais!” No lance, a acrimónia do escritor terá sobretudo ficado a dever-se à viva hostilidade com que o São Paulo
havia sido recebido, três anos antes, em meios antagónicos. Não fora essa, porém, a primeira vez que um livro do mentor do Saudosismo lograra suscitar controvérsia na opinião pública, ou publicada, por mor das ideias religiosas que nele eram veiculadas… Com efeito, e sem necessidade de maior regressão na escala cronológica, dir-se-á que já em 1928 a edição do Jesus Cristo em Lisboa
, tragicomédia em sete quadros escrita em parceria com Raul Brandão, tinha de pronto gerado celeuma junto de alguns círculos católicos, como os que eram representados pelo jornal A Voz
, um diário da capital em cuja edição de 24 de Janeiro daquele ano surge inserta violenta notícia sobre a peça. Nela se previne os leitores “de que o livro dos Srs. Pascoaes e Brandão não deve ser comprado nem lido pelos católicos”. O escrito, em que se transcreve parte de um artigo publicado, na véspera, no Diário de Lisboa
, chega a ser insultuoso para os dois escritores, a quem se atribui, pasme-se, um estado de acentuada decadência! Pascoaes não gostou e, acto contínuo, escreveu ao periódico católico. Poucos dias depois, dará a resposta devida ao Diário de Lisboa
, em defesa já subscrita também por Raul Brandão. A tónica que perpassa as duas reacções pode resumir-se nisto: a peça não ataca os dogmas do Catolicismo; tem apenas o intuito de acordar o espírito cristão no meio social. Não é herético representar Jesus num trabalho literário, como o não é pintar ou esculpir a figura de Cristo. Na verdade, não há vislumbre evidente de heresia à superfície deste livro admirável. Nem será, aliás, de crer que dois dos mais poderosos criadores literários do século XX português tenham amiúde e insistentemente citado ou glosado trechos dos Evangelhos (sobretudo do de Mateus, mas também dos restantes) para encobrirem supostas carências da sua imaginação. A pertinácia com que as personagens de Pascoaes e Brandão actualizam, pela palavra ou pelo gesto, as passagens do Novo Testamento, parece radicar no propósito preciso de colocar a acção dramática em perfeita conformidade com os ensinamentos de Cristo.
E no entanto…
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