Nostalgia sem idade
Cynthia Guimarães Taveira
Maria de Lourdes Modesto falava na televisão. Ouvia-a atentamente e observava-lhe as expressões numa espécie de atenção oriental (o esquecimento de si e a entrada no fundo dos olhos do outro). Chorara, dizia, quando havia folheado um livro seu, já antigo, sobre a gastronomia tradicional portuguesa. Não percebia porque havia chorado. Mais espanto sentira, dias mais tarde quando um jovem, procurando-a por causa de uma tese, lhe contara que, ao folhear o mesmo livro, se emocionara também. Duas gerações, uma ponte grande de anos entre elas, no entanto, ambas choram perante o mesmo. Uma estupidez, uma futilidade de um livro de culinária. Uma idiotice que não se explica, a não ser pelas memórias, pelos cheiros contidos nessas páginas, pela cultura transmitida no segredo das cozinhas, pelas vivências da infância.
Como, porém, na oscilação do pêndulo se mantém o ritmo do movimento, sucede que tanto as qualidades que estão num limite da oscilação, como as que estão no outro limite, participam da mesma oscilação essencial. (…)
Os nostálgicos naturais da naturalidade de Portugal, da naturalidade do homem, da naturalidade do planeta, equilibram os vorazes do futuro tecnológico, os sedentos de robôs. Os que pressentem sabedoria nas rugas contrabalançam os que sentem a beleza na juventude. E a força comum destes sentimentos é o desejo. Lembro-me de ter sido educada numa família ateia: era-me dito, como um mantra, “se Deus existe, o problema é dele”. O meu irmão ouviu bem a lição e aperfeiçoou os mestres quando há pouco tempo proferiu a máxima que suplanta a original: “Se Deus existe, eu não sou problema para ele”. No meu caso, algo correu mal, na idade dos treze anos: numa cabine telefónica, a pensar apenas no número que ia marcar, um flash, uma súbita intuição, uma certeza vinda não sei donde, fez-me gritar no interior daquelas paredes de vidro que me isolavam do mundo: “É claro que Deus existe”. Nada disto tinha explicação. Perante as mesmas condições, dois filhos seguem rumos diferentes. Era a força do pêndulo a actuar, a mesma que actuou nesse jovem universitário sem que ele o percebesse. Assim se vê que a nostalgia não tem idade e que a missão dos que amam Portugal é tão importante como a daqueles que o procuram esquecer, destruir, aniquilar. É apenas uma questão de equilíbrio para que Portugal permaneça vivo. Talvez porque aos olhos de Deus, afinal, este país, valha a pena.
O Portugal subterrâneo – o que, pelos sucessivos governantes, foi empurrado para o escuro da existência -, o Portugal do Povo (com letra maiúscula, para se distinguir do “querido povo” votante) confere o referido equilíbrio e dá sentido a todo este estado de coisas, coisas e pessoas, pessoas coisificadas, estas que dizem que vivem num “Estado de Direito”. Um estado de coisas que já não tem nenhum Estado, para não falarmos da Nação e da Pátria. Mas, como eu disse recentemente num aforismo, se há um exercício pervertido do poder, então é porque existe um verdadeiro poder que, indubitavelmente, só poderá aprender-se e exercer-se na comunhão transcendente. E, assim, seja em que grau for, a História assume – pelo menos em determinadas épocas – um único sentido: o providencial.
ResponderEliminarAs minhas saudações
Eduardo Aroso